Mariana Almeida: Garantia dos meios para o exercício da cidadania

A aplicação da teoria da imprevisão nas relações contratuais é um assunto que esteve bastante em pauta nos últimos anos nos julgamentos do STJ (Superior Tribunal de Justiça) [1], seja em decorrência da da Covid-19 (REsp 1.998.206 e 1.984.277), em decorrência da maxidesvalorização cambial (REsp 1.321.614) ou ainda no âmbito da resolução de contratos agrícolas (REsp 945.166).

A jurisprudência do STJ tem inúmeros precedentes envolvendo a problemática da revisão dos contratos, tanto sob a ótica do Direito Civil, quanto sob a ótica do Direito do Consumidor.

Prevista nos artigos 478 a 480 do Código Civil, a teoria da imprevisão permite a modificação ou resolução de contratos em que a prestação de uma das partes se torne muito onerosa, com demasiada vantagem para a outra parte.

A referida teoria se enquadra na visão de efetiva justiça contratual, uma vez que constitui um instituto que permite a flexibilização do pact sunt servanda para preservação do equilíbrio contratual.

Historicamente, o ato de firmar um contrato estava atrelado à ideia de assumir uma obrigação, sendo certo que na concepção clássica contratual este ato teria como consequência natural a restrição de liberdade que somente ocorreria se necessariamente consentida pelos contratantes.

Nesse contexto, embasado em uma concepção jusnaturalista, o contrato estaria imperiosamente vinculado à autonomia da vontade, sendo este o elemento central contratual, acentuando o individualismo no ato de contratar.

Com fulcro neste pensamento e nessa estrutura contratual, as diferenças eventualmente existentes entre os indivíduos contratantes eram ignoradas, partindo-se de uma equivocada premissa de igualdade, bem como era desconsiderado o meio em que os contratantes viviam, destacando-se ainda mais o individualismo outrora mencionado.

No entanto, a sociedade é dinâmica e a alteração das bases dos valores sociais traz consigo a necessidade de adequação do sistema jurídico. Nesse ínterim, o contrato se torna um ato social e não mais o mero ajuste entre os indivíduos.

Esta concepção da Teoria Moderna dos Contratos parte da premissa da efetiva justiça contratual, com a finalidade intrínseca de fortalecer a estabilidade e a segurança das negociações, adequando o contrato ao meio social em que é produzido.

Não houve a exclusão da liberdade e da autonomia contratual, ao contrário, estas seguem sendo um dos principais eixos dos negócios jurídicos, no entanto, o indivíduo deixou de ser percebido isoladamente e passou a ser tratado como ser social, necessariamente inserido em um contexto social.

Inclusive, este é o teor do Enunciado nº 23 CJF/STJ que foi aprovado na I Jornada de Direito Civil:

“A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.” [2]

Portanto, considerando a primazia da justiça contratual, torna-se legítima a intervenção do judiciário quando houver ruptura do equilíbrio contratual, visto que este fator constitui elemento determinante da efetiva justiça nos contratos.

Sobre estes aspectos, pontua o jurista Flávio Tartuce:

“É um grave equívoco aceitar e compreender o contrato com sua estrutura clássica, concebido sob a égide do ‘pacta sunt servanda’ puro e simples, com a impossibilidade de revisão das cláusulas e do seu conteúdo. Surgem princípios sociais contratuais como a boa-fé objetiva, a função social dos contratos, a justiça contratual e a equivalência material. Diante de um campo minado negocial, em que muitas empresas cometem abusos no exercício da autonomia privada, tais princípios mitigam sobremaneira a força obrigatória do contrato, em prol de uma interpretação mais justa, baseada na lei e nos fatos sociais.” [3]

Relevante mencionar que o equilíbrio deve ser observado tanto no plano econômico, quanto no tocante à relação de proporcionalidade entre os contratantes, de modo a evitar que uma parte tenha prevalência sobre a outra.

A busca pela justiça contratual amparada em efetivo equilíbrio entre as partes contratantes se mostra de especial relevância quando tratamos do contexto brasileiro, uma vez que o Brasil ainda é um dos países com maiores níveis de desigualdade social e de renda do mundo.

Assim, o desafio da cidadania no Brasil é buscar se afastar da classificação tradicional do constitucionalismo europeu, a fim de reconhecer o multiculturalismo que é a característica central dos países latino-americanos. Nas palavras de Enzo Bello:

“Demandas de grupos vulneráveis e de segmentos étnicos (historicamente segregados) têm sido reconhecidas como direitos de cidadania, proporcionando não só a inclusão desses sujeitos entre o rol de beneficiários de prestações estatais, como também o reconhecimento de novos tipos de direitos multiculturais.” [4]

No tocante à efetiva justiça contratual, é necessário realçar que o direito de estabelecer contratos justos e válidos se enquadra no denominado elemento civil da cidadania, ao lado de direitos como a liberdade individual e direito à justiça, que são direitos de suma relevância para a instauração de uma democracia.

Nas palavras da especialista em ciências políticas, Ana Maria Magalhães de Carvalho:

“A liberdade e a igualdade dentro de um sistema de governo do povo e verdadeiramente para o povo  ou seja, segunda a preferência do povo  não podem estar desvinculadas do dia a dia concretamente vivido por cada componente deste povo. A democracia exige liberdade e igualdade como direitos passíveis de serem vivenciados individual e coletivamente.” [5]

Sob a ótica dos direitos concretamente vividos pelos componentes do povo é que vemos muitas vezes os povos latino-americanos frustrados pela falta de oportunidades, pelos altos níveis de desigualdade, pobreza e exclusão, o que acarreta em perda da confiança no sistema político [6].

A desigualdade se torna ainda mais acentuada ao observarmos os grupos de poder nas democracias latino-americanas. Vejamos trecho do relatório elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento sobre as democracias na América Latina:

“Dos consultados da América Latina, 80% ressaltam o poder acumulado, na última década, pelos empresários, pelo setor financeiro e pelos meios. Eles são o principal grupo de poder que limita o poder de decisão dos governos.

O condicionamento imposto pelos poderes fáticos aos regimes democráticos favorece a noção de que se conta com governos e partidos políticos que não podem responder às demandas da cidadania. ‘O grande poder fático da incipiente democracia é o poder econômico privado’ (…).” [7]

Dessa forma, a efetiva garantia dos meios necessários para o exercício da cidadania na América Latina demanda a implantação de uma democracia inclusiva, que tenha a igualdade como valor essencial ou, em uma visão mais realista para o momento, que almeje ao menos a diminuição das desigualdades, de forma a possibilitar que os indivíduos usufruam das liberdades juridicamente garantidas.

É sob este viés que a justiça contratual apresenta especial relevância no Brasil, uma vez que busca aplicar aos contratos princípios como a valorização da dignidade da pessoa humana, solidariedade social, bem como a igualdade ou isonomia, consolidando a denominada horizontalização dos direitos fundamentais, que significa o efetivo reconhecimento da aplicação dos direitos e princípios constitucionais na relação entre particulares.

Mariana Almeida Dias Oliveira é especialista em Direito Penal pela Faculdade Damásio de Jesus, mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e advogada especialista em Tributação no Agronegócio.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor