Marinho Neto: O maior tesouro da vetusta casa de Afonso Pena

Amanhã, dia 25 de setembro, a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) outorgará à sua professora titular Misabel de Abreu Machado Derzi o título de professora emérita desta renomada instituição. Não queremos aqui enumerar todas as razões acertadas para a outorga do título em questão, porque beiram à obviedade. Com efeito, elas transbordam, ultrapassam os limites de qualquer escrito que pretenda fazê-lo. Mas o risco deste pecado é válido.

A professora Misabel Derzi

Divulgação

De início, cumpre observar a profunda responsabilidade devotada pela homenageada à sua instituição. Com efeito, Misabel dedicou mais de meio século à Faculdade de Direito da UFMG, onde ainda leciona nas aulas de pós-graduação. Em sua trajetória, a professora orientou dezenas e dezenas de dissertações de mestrado, teses de doutoramento e trabalhos de conclusão de curso. Somadas às centenas e centenas de palestras que proferiu, no Brasil e no exterior, a professora tem sempre levado o nome da Vetusta Casa por onde passa, contribuindo para a divulgação de nossa querida universidade.   

É um truísmo dissertar sobre a jurista Misabel Derzi.

Em Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, resultado de sua tese de doutoramento, a professora Misabel Derzi explica com clareza absurda a distinção entre tipos e conceitos, entre os modos de pensar tipológico e conceitual, bem como a prevalência deste ou daquele conforme os princípios informadores de cada ramo jurídico, brindando a comunidade do Direito nacional com uma verdadeira aula de Metodologia Jurídica.

Não por outra razão Geraldo Ataliba assinalou, em prefácio à primeira edição da obra citada, que “Misabel conhece o direito em geral e já percorreu diversas de suas sendas, de tal forma a saber, criteriosamente, qual a exata dimensão do significado da unidade geral do sistema”, para arrematar, ao final, categórica e acertadamente, que o livro advinha de uma “inteligência privilegiada, serena, objetiva, digna de qual das melhores instituições europeias”.

Já em Modificações da jurisprudência no Direito Tributário, obra com a qual alcançou a titularidade em Direito Financeiro e Tributário na UFMG, a professora Misabel inaugura o estudo da proteção da confiança em matéria tributária entre nós, a partir dos aportes teóricos sistêmicos de Niklas Luhmann. Reafirma a irretroatividade do Direito (e não apenas das leis), para alcançar também as decisões judiciais, servindo de fundamento para que os contribuintes possam requerer a modulação dos efeitos das decisões que modifiquem a jurisprudência dos tribunais (especialmente os superiores). Quantas obras no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG não se serviram da professora como marco teórico! 

Ainda no âmbito de produção acadêmica desta jurista, não se pode deixar de mencionar as brilhantes atualizações de Direito Tributário Brasileiro e Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, ambas de Aliomar Baleeiro. As longas atualizações feitas pela Professora servem de consulta para todo tipo de pesquisa: acadêmicos, mestrandos, doutorandos e professores bebem desta fonte em seus trabalhos, ao mesmo tempo em que juízes, desembargadores e ministros se utilizam daquelas linhas para fundamentar suas decisões.

No âmbito profissional, a advogada Misabel Derzi sempre se destacou na defesa do interesse de seus clientes e de toda a coletividade. Faremos uma única menção: no bojo do julgamento do RE 405.267/MG, o STF reconheceu a imunidade tributária recíproca da Caixa de Assistência dos Advogados da OAB-MG. Em sustentação oral perante a Suprema Corte, a advogada em questão proferiu as seguintes palavras: “No Estado de Direito, as partes falam por meio de seus advogados”. Esta advogada combatente é hoje Conselheira Federal da OAB e presidente da Comissão de Direito Tributário da CFOAB.

Mas também na advocacia pública a professora se destacou, tendo sido Procuradora-Geral do Estado de Minas Gerais e Procuradora-Geral do Município de Belo Horizonte, oportunidades nas quais sempre primou pela realização do interesse público, pelo respeito aos direitos individuais dos cidadãos e pela luta intransigente em favor do federalismo.

Todas essas razões, por si só, justificariam todas as homenagens a esta gigante do Direito brasileiro. Mas gostaríamos de prestar uma homenagem pessoal à professora Misabel, na sua qualidade de verdadeira professora e orientadora, a partir de nossa própria experiência. Em suma, o impacto da professora em nossa própria vida e formação.

A primeira vez que vi  e ouvi  a professora Misabel foi na ocasião da defesa de titularidade do professor Marcelo Cattoni, na Sala da Congregação da Vetusta Casa, em sessão por ela presidida. Chamou-me a atenção a voz firme daquela professora. Ela falava e todos ouviam, atentos e calados. Complemente calados. Conseguia-se ouvir o barulho da caneta do professora Cattoni à mesa, anotando alguns pontos para as respostas às arguições da banca. Nesta oportunidade, o ministro Barroso, componente da banca, logo que tomou a palavra, cumprimentou a todos e disse que para ele era uma honra estar ao lado da “musa do Direito brasileiro”. Feliz a expressão do ministro. A este ponto retornaremos mais adiante.

Algum tempo após aquele evento, ainda jovem estudante do terceiro período, ingressei no meu primeiro estágio, no escritório Sacha Calmon Misabel Derzi  Consultores e Advogados. Sem saber rigorosamente nada de Direito Tributário (nem ao menos o conceito de tributo) e àquele tempo ainda monitor de Teoria Geral do Direito Privado, resolvi apertar a gravata, como diria o grande Chico.

Certa feita, em uma pesquisa sobre a distinção entre erro de direito e erro de fato, para fins de revisão do lançamento tributário, senti a necessidade de pesquisar melhor sobre este tema. A professora estava em sua sala, com as portas abertas. Encorajado pelas queridas Patrícia Pires Pena e Deborah Secchin, bibliotecárias do escritório, fui ao encontro da Professora e nos falamos pela primeira vez. Naquele momento ela me daria sua primeira orientação: disse-me que seria indispensável a leitura de Castanheira Neves. Ademais, deu-me um exemplar de seu Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, dobrou uma página (a que eu deveria ler) e desejou-me bons estudos. Além de um sorriso maternal. Saí dali encantado.

Dois anos após este ocorrido, a maior honra de minha vida: eu me tornei seu monitor, na disciplina Direito Tributário I. Cumpri esta função por dois maravilhosos anos. A professora me orientou em minha monografia de final de curso e hoje é minha orientadora no mestrado. E por conta dessas experiências é que pude ver a grande professora Misabel em ação, tendo nascido para isso. Ser professora define sua essência.

Dou alguns breves exemplos.

Merece menção o banco de questões que a professora possui, para fins de montagem das provas. Isto além da arguição oral de Hipótese de Incidência Tributária do Ataliba. Quem foi aluno da professora não consegue se esquecer. Os resumos, os quais ela própria preparava e fazia distribuir aos seus alunos. Em suma, o cuidado. Ela cuidava de seus alunos, cuidava de suas aulas.

E por falar nas aulas, eram verdadeiros espetáculos. Todos os presentes boquiabertos, sem reação, em virtude da clareza de cada raciocínio. A paixão em ensinar Federalismo Fiscal. A aula sobre espécies tributárias. O exemplo do perfume francês para explicar a seletividade no IPI e no ICMS. A não cumulatividade desenhada no quadro. A distinção entre renda e patrimônio. A legalidade. A igualdade. A irretroatividade e a proteção da confiança.

Na pandemia, após um hiato para que a universidade pudesse se preparar para o ensino virtual, as aulas retornaram. Professora Misabel preocupou-se profundamente, sempre me indagando se eu achava que os alunos estavam mesmo aprendendo. Esta pergunta me foi dirigida incontáveis vezes. A ênfase no “mesmo” me fez entender o grau da preocupação.

Na pós-graduação, os espetáculos não eram menores. Vi a professora Misabel Derzi ensinar a teoria de Hans Kelsen. Querido leitor(a), imagine um clássico falando sobre outro clássico. Como não mencionar a oportunidade na qual a Professora, provocada por nós, seus alunos, resolveu falar por 1h30min sobre a distinção entre tipos e conceitos? Uma aula arrebatadora (e professor Thomas Bustamante é testemunha). A integridade em Dworkin. O Estado de Direito. E tantas outras aulas brilhantes!    

O fato é que esta genialidade jurídica, e isto é o que realmente precisa ser dito, é a maior jurista de seu país. O maior tesouro da UFMG. O ponto mais alto da Vetusta Casa de Afonso Pena. Isso não apenas em virtude de sua insuperável autoridade intelectual, mas também porque nasceu para ensinar. Sua vida foi dedicar-se inteiramente a gerações e gerações de ministros, desembargadores, juízes, promotores, procuradores, advogados, defensores públicos, et cetera, ensinando-lhes o Direito (muito além do Direito Tributário). E mais: formando outros professores. A professora ensinou muita gente a ensinar.  

Afinal de contas, como diria o ministro Barroso, estamos falando de uma musa.

André Comte-Sponville afirma, em A felicidade, desesperadamente que a meta da filosofia é a sabedoria e sábio é aquele que vive bem. E a professora Misabel, muito mais que uma Professora, é uma sábia. É uma honra conviver e aprender com ela. Temos consciência de nossa sorte. E é maravilhoso que UFMG também tenha esta mesma consciência.

José Antonino Marinho Neto é mestrando e bacharel em Direito pela UFMG, especialista em Direito Constitucional pelo IDP, pesquisador do Observatório da Macrolitigância Fiscal e Aditus Iure (IDP), membro e assessor Especial da Presidência da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-MG e advogado.

Consultor Júridico

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