Marzagão e Bechara: Decisão do STJ no mercado secundário de crédito

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) contribuiu, com aguardado precedente, para o encaminhamento de uma questão há muito debatida perante os tribunais locais: o cessionário de um título de crédito, que não seja integrante do Sistema Financeiro Nacional (SFN), tem assegurado o direito de cobrar os incrementos financeiros disciplinados no tal título mesmo que esses incrementos superem as limitações impostas pela Lei de Usura (Decreto 22.626/33)?

O STJ decidiu que sim e explicamos as razões que levaram o tribunal a firmar entendimento nesse sentido, a importância da tese fixada e o possível reflexo no mercado de secundário de crédito.

O caso que deu origem ao precedente tratava de uma execução de título extrajudicial promovida por uma instituição bancária, que era credora de uma CCB (cédula de crédito bancário). O crédito executado foi cedido a um terceiro não integrante do SFN e a devedora, ao ser intimada da cessão, impugnou o valor da dívida alegando que, pelo fato de não ser mais devedora de uma instituição financeira, os incrementos do título deveriam ser reduzidos, ficando adstritos às limitações impostas pela Lei de Usura.

O tribunal local (16ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo) acolheu os argumentos da devedora, indicando que o fato de o novo credor não fazer parte do SFN impossibilitaria “o prosseguimento da demanda executiva com incidência dos encargos originalmente estabelecidos na Cédula de Crédito Bancário”.

 Em suma, para a corte estadual paulista, a qualidade do credor (integrante, ou não, do SFN) determinaria quais dos direitos creditícios seriam, ou não, recepcionados pelo novo credor em razão da cessão civil.

O Superior Tribunal de Justiça destacou, com acerto, que o instituto da cessão civil não restringe ou amplia direitos em razão da qualidade do novo credor. Havendo cessão, e sendo ela válida e eficaz, nela se incluem “todos os seus acessórios” (artigo 287, parte final, do Código Civil)  e os juros pactuados são, por definição legal, acessórios da dívida contraída.

Além de ser desarrazoado restringir o direito do cessionário à mingua de expressa regra nesse sentido no âmbito do instituto da cessão, outros três argumentos pesaram em favor da tese fixada: 1) o fato de o artigo 893 do Código Civil indicar que “transferência do título de crédito implica a de todos os direitos (dentre os quais os incrementos financeiros) que lhe são inerentes”, 2) o fato de o Supremo Tribunal Federal já ter decidido, ao fixar o Tema 361, que a “a cessão de crédito não implica a alteração da sua natureza” e 3) a recente alteração, havida em 2020, na Lei de Recuperação Judicial e Falências (notadamente no artigo 83, §6º, que passou a indicar que “os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação”).

Isso tudo, somada à constatação de que se reduzir os incrementos pelo simples fato de o credor ter sido alterado implicaria inegável enriquecimento sem causa por parte do devedor [1] (artigo 884 do já citado Código Civil), fez com que STJ se inclinasse pela solução de se preservar o quanto contratado, excepcionando-se, portanto, as limitações impostas pela Lei de Usura.

O que o STJ fez, ao validar a cessão com a manutenção dos incrementos originários independentemente da qualidade do cessionário, foi dar uma maior objetivação às operações de cessão de crédito, o que pode contribuir  e muito  para um mercado que só faz crescer no Brasil, notadamente em relação aos créditos vencidos e não pagos.

Estima-se que somente em 2021 esse mercado movimentou créditos em valores de face de mais de R$ 35 bilhões, com previsão de movimentações ainda maiores nos próximos anos.

A cessão de crédito é relevante instrumento de circulação de riqueza e movimentação da economia. A operação econômica permite que o credor originário transfira, usualmente a desconto, o crédito a um terceiro, não raro uma empresa ou gestora especializada na recuperação de ativos. Com isso, o credor recebe o preço de cessão e o cessionário retoma os esforços para recuperação do crédito, auferindo lucro na diferença entre aquilo que pagou pelo crédito e o que vier a receber do devedor, correndo, em contrapartida, o risco de solvência do devedor.

Exatamente para salvaguardar a alocação de riscos contratuais decorrentes da cessão de crédito é que a decisão do STJ também ganha relevância. Isso porque, o adquirente do crédito, seja ele instituição financeira ou não, tem a legítima expectativa de cobrar a integralidade daquilo que é devido pelo devedor, inclusive todos os acessórios, e não ser sujeito a restrição à cobrança de determinadas taxas ou juros não previstas em lei.

A decisão proferida pelo STJ não foi impugnada pela parte sucumbente (o acórdão transitou em julgado e acaba de ser baixado ao tribunal local). Temos, portanto, e por enquanto, apenas um leading case de uma única Turma do Superior Tribunal (existindo, portanto, apenas a manifestação de órgão fracionário da Corte).

O ideal seria que, em razão da existência de diversos casos semelhantes tramitando no país, o STJ tivesse lançado mão do mecanismo do artigo 1.036 do Código de Processo e tivesse, desde logo, emitido decisão com efeito vinculante para o tema.

De qualquer forma, a oportunidade de afetação ao rito dos repetitivos por certo será renovada em breve, pois novos recursos devem chegar ao Tribunal. Fazemos votos de que o Tribunal não perca uma segunda oportunidade e faça a inclusão do tema na forma do artigo 1.037 do CPC.

Newton Marzagão é sócio da área de Resolução de Disputas (Contencioso Cível/Arbitragem) do Demarest Advogados.

Consultor Júridico

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