Matheus Bazzi: A pena de prisão está a serviço de quem?

O Direito Penal é a forma de ingerência mais invasiva que o Estado tem à disposição, porque, após a condenação, surge a possibilidade de se aplicar e executar uma pena criminal, limitadora, por excelência, do direito fundamental à liberdade de locomoção. Então, a difícil tarefa do profissional do Direito é justificar, com o intuito de legitimar, a privação da liberdade através da pena.

Cumpre ressaltar, nesse caminho, que a principal forma de manifestação do direito é a coerção, sob a máxima de que “não há direito sem sanção”, e a pena não é nada senão uma previsão legal que autoriza, dentro de certos limites, o Estado a coagir [1]. Esse é o ponto que distingue o direito de outras formas de controle social.

Tradicionalmente, são trabalhadas dois grandes grupos de teorias na cadeira de penologia [2], sendo elas as absolutas e as relativas, com o intento de se buscar a racionalidade da punição. Para o primeiro grupo, a pena seria produto de uma retribuição ao mal causado pelo injusto, enquanto o segundo vincula a punição a uma função exógena: a prevenção (geral ou especial).

As teorias que procuram justificar a pena criminal visam, em último plano, causar uma conformação social através da racionalização reduzida em forma de conceito jurídico. É dizer: uma das tendências de explicação da pena criminal é produzir, politicamente, a aceitação da sua existência, sob a máxima de que os seres humanos não são irracionais e sabem o que estão fazendo. Nesse sentido, a pena emana(ria) uma certa finalidade racional e teria uma função legitimamente definida.

Desse modo, as ações ou omissões que agridem bens jurídicos de terceiros são reprimidas pelo Poder e explicadas pelos estudiosos do direito, de modo que toda a orientação sobre a qualidade ou a quantidade de pena, no processo de incriminação, é pretensamente justificada a partir da adoção de uma matriz teórica. Daí a relevância de se investigar o pensamento condutor de um sistema criminal.

Há, ainda, que se considerar a relação umbilical entre Estado e pena, na medida em que o uso da força pelo sequestro de tempo é elemento essencial para a soberania estatal. Portanto, “se fosse possível constatar o grau de civilidade de determinada comunidade, tarefa […] impossível empiricamente e inconcebível cientificamente, pensamos que um dos principais critérios utilizados seria a avaliação do sistema penal em sentido amplo” [3].

No início deste ensaio opinativo, foram apresentadas as teorias que procuram justificar a aplicação da pena, isto é, em explicar a tomada de certo tempo da liberdade do cidadão por conta da violação de um dever jurídico de abstenção de ação ou de agir mandamental. Porém, o que verdadeiramente interessa ao debate não é o especial contorno das ilusões operadas pelo discurso oficial, mas a ampliação do campo de discussão, avaliando-se a consequência empírica da pena para, então, voltar os olhos à sua legitimação jurídica.

Isso porque é muito fácil responder à questão proposta no título a partir das teorias que já são, há muito, difundidas pela literatura criminal. Difícil é, ao revés, negar o discurso para, efetivamente, buscar suas causas e consequências no campo da empiria. Aliás, esse dever, possivelmente, foge ao Direito e se aproxima da Criminologia.

Entretanto, para se compreender o tema a partir, tão só, do Direito, é necessário realizar uma leitura sistêmica e crítica da Constituição Federal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal. Ou seja, embora o nosso sistema preveja a (res)socialização (artigo 1º, LEP), a retribuição e a prevenção (artigo 59, CP), precisamos conceber o Código Penal e a LEP como o que elas são: legislações infraconstitucionais e anteriores à CF/88, eis que o CP é de 1940, cuja parte geral foi reformada em 1984, e a LEP é de 1984.

Nesse sentido, a investigação parte para outro caminho, qual seja, a nossa Constituição atribuiu algum sentido jurídico à pena? Essa resposta não pode ser outra, exceto o não. Isso porque não é possível encontrar nenhuma identificação de sentido à pena em nossa legislação, há apenas uma vedação de excessos [4].

Será, então, que essa omissão do constituinte foi proposital ou por acaso? Por qual razão a nossa Constituição Federal não atribuiu um sentido à pena, uma função? Ainda, as funções dadas à pena pela legislação infraconstitucional anterior à Carta Magna foram por ela recepcionadas?

Suprindo essa lacuna, a teoria agnóstica da pena de Zaffaroni  aquela que não atribui ou nega as funções da pena  encontra espaço na penologia brasileira, na medida em que, ao invés de atribuir função à pena, o texto constitucional optou por limitá-la.

Pode-se concluir, finalmente, que Tobias Barreto tinha razão ao enunciar que a pena não é problema do Direito, mas da política. A pena não é, com efeito, um conceito jurídico. A pena é um conceito de guerra e de demonstração de força irracional, não há como racionalizar a pena.

A partir desse paradigma, a punição está a serviço de quem? É essa investigação que devemos fazer, mas ela só se torna possível a partir do levantamento do véu da visão tradicionalista — e de mera repetição sem reflexão  das teorias da pena. Portanto, punimos porque ainda não conseguimos pensar em nada melhor e a punição não deve ser ampliada, mas controlada, limitada. O sentido da legalidade no Direito Penal, nesse caminho, é o de contenção de danos, que, embora insuficiente, é tudo o que temos.

Matheus Bazzi é advogado criminalista e professor de Direito Penal da Universidade de Cuiabá (Unic), mestrando pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), especialista em Advocacia Criminal pela Escola Superior de Advocacia da OAB-MG (ESA/MG) e ex-membro regular do Grupo de Pesquisa sobre o Grande Encarceramento da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Consultor Júridico

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