Matheus Martins: Terceirização na administração pública

À época do Estado liberal, a atividade pública se restringia quase exclusivamente à defesa externa e segurança interna, de modo que não se havia grande necessidade de descentralização das atividades administrativas, mesmo porque as funções de polícia são, em geral, indelegáveis, pelo fato de implicarem em autoridade, coerção sobre o indivíduo em benefício do bem-estar geral; com relação a elas, são incompatíveis os métodos do direito privado, baseados no princípio da igualdade (DI PIETRO, 2001, p.347).

Todavia, “à proporção que o Estado foi assumindo outros encargos nos campos social e econômico, sentiu-se necessidade de encontrar novas formas de gestão do serviço público e da atividade privada exercida pela administração. De um lado, a ideia de especialização, com vistas a obtenção de melhores resultados, e que justificou e ainda justifica a existência de autarquias; de outro lado, e com o mesmo objetivo, a utilização de métodos de gestão privada, mais flexíveis e mais adaptáveis ao novo tipo de atividade assumida pelo estado” (DI PIETRO, 2001, p. 347).

Por essa razão, a Administração Pública brasileira, em meados da década de 1980, iniciou um processo de reforma, com o intuito de reduzir o tamanho do seu aparelhamento administrativo. Daí surgiu o instituto da privatização, que compreendia, entre outros, a quebra do monopólio de atividades exercidas exclusivamente pelo Poder Público, a delegação de serviços públicos aos particulares e a terceirização, na qual se buscava a colaboração de entidades privadas no desempenho de atividades acessórias da Administração (DI PIETRO, 2008, p. 28).

O Estado objetivava com essa colaboração a economicidade, entendida não apenas como a economia de recursos, mas também em termos de rendimento pelo capital empregado, ao se buscar prestadores de serviços especializados fora dela e redução de custos com a gestão dos serviços executados (SOUTO, 2001, p. 373).

Ramos (2001, p. 40), de forma clara, aborda o conceito de privatização em sentido lato e onde se situa a terceirização nesse contexto:

“O termo (privatização) abrange uma acepção ampla e outra restrita. Genericamente pode-se englobar no conceito amplo de privatização todo um conjunto de medidas adotadas com o objetivo de diminuir a influência do estado na economia, ampliando a participação da iniciativa privada em uma série de atividades antes sob controle estatal. Essa concepção ampla abrange a venda de ativos do Estado, notadamente com a transferência do controle acionário de empresas estatais (desnacionalização); a desregulamentação, diminuindo a intervenção do Estado no domínio econômico, inclusive com a flexibilização das relações trabalhistas e a desmonopolização de atividades econômicas; a concessão, permissão ou autorização de serviços públicos e a adoção, cada vez mais frequente, de contratações externas, com a celebração de ajustes para que a iniciativa privada desempenhe atividades no âmbito do setor público. Essas contratações têm sido, no direito brasileiro, denominadas de terceirização”.

A gestão do serviço público refere-se à forma pela qual ele é administrado e pode ocorrer em três níveis: gestão estratégica, gestão operacional e execução material. A primeira está ligada a definição das estratégias e macro objetivos. A gestão operacional refere-se à forma como as atividades serão realizadas e o último nível caracteriza-se pela simples execução material das atividades (SEKIDO, 2010, p. 25).

Na terceirização (em sentido estrito), o Poder Público não delega a gestão estratégica nem operacional, apenas repasse a execução material de determinado serviço (RAMOS, 2001, p. 116-118).

Ramos (2001, p. 121) com o fito de demonstrar a diferenciação entre os institutos da concessão e da terceirização, leciona:

“Vê-se que a concessão não se confunde com a terceirização, pois na primeira o concessionário recebe a gestão operacional do serviço público e presta-o em seu próprio nome. Inclusive a remuneração por ele recebida é realizada diretamente pelos usuários dos serviços. Na terceirização o contratado é mero executor da atividade (que lhe foi atribuída pelo gestor operacional, que é quem o remunera por meio de contrato), a qual constitui apenas elementos ou tarefas anexas ao serviço público com ausência de laço contratual com os usuários do serviço público. Além disso, o objeto da concessão é todo um serviço público, enquanto na terceirização é apenas uma atividade específica;”

Assim, conclui-se que, por meio da terceirização, a Administração se utiliza dos meios privados da execução dos serviços para transferir a execução material mantendo, contudo, a titularidade do serviço público, a qual é constitucionalmente atribuída a ela.

O Decreto Federal nº 9.507 de 21 de setembro de 2018 é que “dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”.

Referido decreto transporta consigo um fato curioso, que reside na omissão em especificar as atividades passíveis de terceirização no âmbito da Administração Pública, mas trazendo, em seu artigo 3º, quais são vedadas:

“Artigo 3º Não serão objeto de execução indireta na administração pública federal direta, autárquica e fundacional, os serviços:

I
 – que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle;

II – que sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias;

III – que estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção; e

IV – que sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.

§1º Os serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de que tratam os incisos do caput poderão ser executados de forma indireta, vedada a transferência de responsabilidade para a realização de atos administrativos ou a tomada de decisão para o contratado.”

Verifica-se que há no referido decreto três hipóteses de proibição de terceirização no âmbito da Administração Pública: a) a vedação para a realização de atividades que envolvam questões de grande repercussão no âmbito institucional ou estratégico; b) vedação para as atividades referentes ao uso de poder de polícia; c) vedação quanto à realização de atividades inerentes a atribuições legais de cargos públicos.

Diante desse cenário, pouco espaço sobra à terceirização no âmbito da Administração Pública direta, indireta, autárquica e fundacional de direito público, ficando claro que as hipóteses onde sua aplicação é possível, se trata de atividades secundárias e acessórias e desde que em harmonia com os incisos do aludido artigo.

Referida redação sustenta o corrente entendimento de que a atividade-fim da Administração Pública não poderá ser objeto de transferência a terceiros, uma vez que nela há a necessidade da presença de uma pessoa vinculada juridicamente ao ente público através do concurso público.

Não dá dúvidas de que o concurso público, instituto de observância obrigatória no âmbito do Poder Público, certamente reflete o princípio da isonomia, pois assegura o acesso equitativo aos cargos públicos e impede a prática do “apadrinhamento”, que permitia que pessoas desqualificadas e sem o mínimo de conhecimento técnico, adentrassem no quadro de servidores da Administração Pública, comprometendo a eficiência.

Contudo, Zockun (2017, p. 16), afirma que os conceitos de atividade-fim e atividade meio, no âmbito da Administração Pública, devem ser superados, porque o texto constitucional    não contempla tal distinção, tampouco dá sinais de que esse é o critério mais adequado para se aferir a possibilidade de trespasse de uma atividade administrativa para a esfera privada.

Ao contrário disto, o Constituinte originário teria feito uma distinção entre atividades internas e externas, bem como em temporárias e permanentes a serem cumpridas no exercício da função administrativa, classificação esta da qual poderia se extrair onde há ou não espaço para a terceirização. (ZOCKUN, 2017, p. 16)

Na tentativa de se averiguar a compatibilidade da terceirização com a regra do concurso público, o presente trabalho se utiliza de importante lição doutrinária de Bandeira de Mello (2012, p. 102), que divide a essência da função da administrativa em interesse público primário e secundário:

“Interesse público ou primário, repita-se, é o pertinente à sociedade como um todo, e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o interesse que a lei consagra e entrega à compita do Estado como representante do corpo social. Interesse secundário é aquele que atina tão só ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada.”

O Estado, tal como os demais particulares é uma pessoa jurídica, que existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado  pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais. (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 66)

Segundo Carvalho (1984, p. 2), “a principal meta a ser atingida pelos entes públicos é atender os interesses coletivos, uma vez que seu fim precípuo é gerir a ‘coisa pública’ em benefício de todos e não de si mesma, cabendo a qualificação do interesse público à Constituição ao definir qual a atribuição encarregada aos entes públicos. Para que o Estado exerça tais competências constitucionais necessita de pessoal para executá-las e para tanto ‘são necessários profissionais que, além da realização pessoal, componham uma estrutura voltada para a realização do interesse público primário'”.

Deste modo, o princípio da ampla acessibilidade e a regra constitucional do concurso público não estão vocacionados ao atendimento do interesse público secundário, mas ao primário (ZOCKUN, 2017, p. 18), ao passo que a terceirização, mesmo que contemplada por obra legislativa, é solução que visa a interesse público secundário do Poder Público (OLIVEIRA, 2014, p. 429).

É com esteio na análise da natureza do interesse público (público ou privado) que envolve determinada função pública, que se poderá verificar se é possível ou não transferi-la à iniciativa privada, através da terceirização (GASPARINI, 2016, p. 23), de modo que a mera conceituação de “atividade-fim” ou “atividade-meio” não foi a escolhida pela constituinte originário para se atender à regra constitucional do concurso público na conjuntura estabelecida pela Constituição Federal de 1988.

 

 

Referências

BRASIL. Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018. Dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2018/decreto/d9507.htm. Acesso em: 29. nov. 2021.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Acesso em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm. Acesso em: 29. nov. 2021.

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 29. nov. 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29. nov. 2021.

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 30. nov. 2021.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo – 29. ed., rev. e atual. até a emenda constitucional 68, de 21.12.2011. São Paulo: Malheiros, 2012.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Atlas: 2001

RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Terceirização na administração pública. São Paulo: LTr, 2001.

SEKIDO, Amélia Midori Yamane. Terceirização na Administração Pública: a gestão e a fiscalização dos contratos. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca- digital/terceirizacao-na-administracao-publica-a-gestao-e-a-fiscalizacao-dos-contratos.htmAcesso em: 30. nov. 2021.

ZOCKUN, Carolina Zancaner. Terceirização na Administração Pública. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/5/edicao-1/terceirizacao-na-administracaoAcesso em: 30. nov. 2021

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