Matthäus Kroschinsky: ADPF das leniências, questão constitucional

A ADPF 1.051 ainda é causa de muito desconforto e incompreensão na esfera pública. Lá, PSOL, PC do B e Solidariedade pedem que o STF se manifeste pela possibilidade de revisão, perante os órgãos competentes, das obrigações pecuniárias assumidas pelas empresas em acordos de leniência.

A impressão incauta que se tem é a de que os partidos querem alguma espécie de anistia em favor das empresas lenientes usando como pano de fundo os abusos perpetrados pela “lava jato”, parte deles já amplamente divulgados e reconhecidos pelo Judiciário. Impressão absolutamente equivocada. Nos limites deste breve texto procurarei demonstrar como a ADPF das leniências veicula uma questão constitucional de primeira grandeza.

O ambiente patológico criado pela “lava jato” está sim no início de tudo, e periodicamente são trazidos à luz novos elementos que demonstram o modus operandi de Curitiba. Para me restringir apenas a alguns dos exemplos mais recentes: um ex-deputado que servia de agente infiltrado de Sergio Moro para gravação ilegal de pessoas, as tentativas de Deltan Dallanol de intimidar o ministro Dias Toffoli, através de uma devassa na vida de seu irmão, e o livro de Emílio Odebrecht em que são expostos os métodos de tortura psicológica da “lava jato” para a obtenção de delações premiadas.

Tudo isso conduz ao diagnóstico de uma situação estruturalmente muito mais complexa do que se podia imaginar em termos de utilização estratégica do direito, e é precisamente essa a questão posta pelos partidos requerentes na ADPF 1.051: é verossímil crer que um contexto de absoluta anormalidade institucional pôde produzir frutos bons e democráticos? Colocado de outra forma: seriam todos os acordos de leniência punições legítimas e proporcionais ou, ao contrário, alguma espécie de “vingança privada” levada a cabo por autoridades públicas?[1]

Ousamos dizer que a ADPF em questão veicula uma das questões mais intrinsecamente constitucionais que o STF analisou nos últimos tempos, e isso porque diz respeito ao antigo inimigo do constitucionalismo: a hierarquia entre política e direito, plasmada classicamente na figura do soberano que era, simultaneamente, ápice do poder político e ator imune às regras jurídicas que ele mesmo criava.[2] O caminho para denunciar essa circunstância foi a remissão àquilo que ficou conhecido como Estado de Coisas Inconstitucional, cujo uso foi criticado por se tratar de uma ferramenta ainda pouco processada pela jurisdição constitucional brasileira.

O ECI é, como se sabe, um argumento construído pela Corte Constitucional da Colômbia para diagnóstico e enfrentamento de violações sistemáticas a direitos humanos de grupos vulneráveis ocorridas sob o olhar negligente do poder público. Parte da crítica ao uso do ECI parece demonstrar um certo desconforto com uma suposta apropriação, que lhes parece retórica e oportunista, de uma construção originalmente voltada aos mais desatendidos da sociedade para aplicá-la a empresários ricos e poderosos.

Colocada dessa forma, vê-se que se trata de uma crítica que enfoca os agentes, e não a estrutura do problema. Como brilhantemente anotaram os professores Lenio Luiz Streck e Luiz Gonzaga Belluzzo, os críticos da ADPF da leniência confundem os empresários com as empresas. Ora, um remédio amargo, mas necessário, muitas vezes salva amigos e inimigos.

A mesma decisão do STF que impediu a prisão em 2ª instância beneficiou tanto políticos e empresários quanto os inominados da Barra Funda. De forma específica, o que se tutela na ADPF em comento não é a reputação ou a conta bancária do empresário X ou Y, mas as consequências sistêmicas a que a quebra sucessiva de empresas conduz. Longe de ser uma preocupação recente, de há muito observadores argutos como Walfrido Warde já vinham anotando precisamente como modos catastróficos de combate à corrupção apenas se somam a ela na destruição de um país.[3]

O trunfo do argumento do ECI para a jurisdição constitucional brasileira está em permitir que o conceito de “ato do poder público” (artigo 1º da Lei 9.882/1999) seja reespecificado para situações complexas em que a violação de direitos fundamentais não possa ser reconduzida a um ou outro ato público, mas, antes, a toda uma estrutura de atuação sistemática do Estado, como bem se vê das práticas de Curitiba.

Essa assimilação foi feita entre nós pela primeira vez por Georges Abboud, a quem se deve, também, o mérito de identificar que a degeneração do direito é muito mais um fenômeno estrutural do que pontual ou de mero equívoco dogmático na assimilação de uma teoria da decisão.[4]

O Estado de Coisas Inconstitucional foi invocado na ADPF 1.051 como forma de provocar o STF a agir de forma a compensar as fragilidades de diferenciação funcional existentes entre os sistemas político e jurídico no Brasil e que produz ecos nas racionalidades de outros sistemas, tais como o econômico. Dizer que os acordos de leniência entabulados antes do Acordo de Cooperação Técnica homologado em 2020 pelo STF ocorreram em um estado de anomalia político-institucional é dizer que, naquele momento, o sistema político se comportou de forma patologicamente hiperexpansiva e cooptou o código jurídico, algo que não é incomum em nossa tradição constitucional.[5]

Numa formulação emprestada de Dieter Grimm, podemos dizer que as funções do sistema político no contexto do Estado nacional eram as de “manter os egoísmos sistêmicos dos outros sistemas funcionais dentro dos limites do que é mutuamente tolerável”.[6] Nessa medida, parcelas dos acordos de leniência são inconstitucionais porque violam uma premissa funcional básica da Constituição — e, em verdade, do próprio constitucionalismo — que é a de domesticar o poder político e permitir sua legitimação em bases secularizadas,[7] o que inclui a neutralização de utopias sociais — que são produções de sentido sociais forjadas fora do sistema religioso[8] —tais como certas ideias de comunismo cujo combate é o mote legitimador de atuações autoritárias.

Do ponto de vista técnico-jurídico ou na qualidade de espectadores políticos, o desenrolar das ações da “lava jato” sempre despertou a sensação de que algo muito errado rondava a operação. O uso desavergonhado do lawfare,[9] a série de abusos que tiveram de ser contidos pelo Judiciário — parte delas, aliás, influenciou a reforma da legislação penal e processual penal brasileira com o chamado pacote “anticrime” — são provas cabais de que o combate à corrupção se desenrolava sob um pano de fundo profundamente anormal.

Ainda sobre a questão da técnica jurídica, não podemos perder de vista que Pedro Serrano, um dos signatários da ADPF, foi pioneiro global em denunciar a gestação do estado de exceção dentro das democracias liberais via jurisdição. A ADPF das leniências é exemplo do diagnóstico feito por Serrano a partir de bases teóricas muito sólidas, em especial da distinção schmittiana entre amigo/inimigo como a referência a partir da qual a política opera, e de um modelo arquetípico do “moderno estado de exceção” calcado no pensamento de Giorgio Agamben.[10]

A pouca experiência de uma Corte Constitucional com uma ideia não pode servir de justificativa para desqualificá-la. A tendência à autonomização do indivíduo quanto a seus contextos sociais[11] e o caráter pós-organizacional do modus social contemporâneo colocam a ênfase das violações de direitos fundamentais em matrizes comunicativas anônimas (G. Teubner) e propõe sua destinação não somente a atores individuais, mas, também, contra meios sociais [gesellschaftlichen Medien] inflacionados que despontam na sociedade como “vícios coletivos”.[12]

Tais construções teóricas abstratas não podem ser vistas como simples palavras de ordem ou argumentos de autoridade. A complexidade da tutela contemporânea da democracia impõe a percepção de que a manutenção da incolumidade de certas racionalidades — como a dos sistemas político, jurídico e econômico, por exemplo — são bens que merecem tutela per se. As construções mencionadas no parágrafo anterior são apenas exemplos das ambições contemporâneas do direito constitucional, que vão muito além da dicotomia “Estado/sociedade” para fazer reingressar no foco de análise os diversos campos de tensão que se adensam no seio da própria sociedade, algo de que a filosofia está ciente desde Hegel. [13]

A enfática insistência crítica nos agentes alimenta uma espécie de senso comum que serve de ocasião para um maniqueísmo que nunca é frutífero. Os críticos da A.DPF 1051 por vezes ignoram as potencialidades do ECI como instrumento razoavelmente desconhecido mas que, devidamente trabalhado, pode servir às finalidades da Corte Constitucional brasileira. Quem quiser participar da esfera pública brasileira deverá enfrentar, sem bom mocismo, tais circunstâncias.

Matthäus Kroschinsky é mestre em Direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e advogado no Warde Advogados.

Consultor Júridico

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