Mettlach Pinter: Nota jurídico-filológica ao Direito de Saisina

Nas últimas semanas, surgiram nesta ConJur interessantes comentários tecidos em torno do direito de saisina e, mais especificamente, do exato sentido da máxima alemã Der Tote erbt den Lebendigen. Retomou-se um artigo publicado em 2012 por Pablo Stolze a respeito do brocardo [1]. Na ocasião, o autor ilustrara o relato relembrando sua perplexidade ao se deparar com a expressão alemã mencionada: qual o sentido jurídico de dizer  na tradução que propunha  que “o morto herda do vivo”? O sentido jurídico não seria o oposto?

Consultado sobre a questão, mesmo Arruda Alvim não teria encontrado uma tradução adequada do verbo erben (herdar) que permitisse, de um lado, ser fiel à língua alemã e, de outro, ser coerente com o significado jurídico da parêmia.

Mais recentemente, Thiago Aguiar de Pádua [2] publicou um artigo em que buscou justificar a expressão com base no instituto germânico da Gewere e das investiduras feudais. Com efeito, lembrou o autor que o brocardo está diretamente ligado à transmissão automática da Gewere e dos direitos a ela associados aos herdeiros. Por fim, Murilo Pinto [3] adicionou sua contribuição ao tema. Supondo inexistir questão linguística ou jurídica mal resolvida, aceita o autor a tradução “os mortos herdam dos vivos”, justificando-a do ponto de vista cultural e religioso.

Conquanto esses três textos levantem hipóteses e argumentos diversos, a questão não ficou resolvida, uma vez que não houve um cotejo detido das interpretações dadas à parêmia com a análise dos termos jurídicos empregados. Se uma argumentação criativa permite a formulação de hipóteses sedutoras, ela não fornece ao leitor, contudo, elementos suficientes para julgar qual interpretação é a correta.

A conveniência de tecer uma breve nota à questão reside em demonstrar quão importante se revela a perspectiva filológica em tal espécie de debates. Como expus alhures [4], a perspectiva filológica cria no pesquisador uma noção inicial de impotência intelectual, pois o obriga a reconhecer a existência de uma assimetria entre o conhecimento de que o sujeito efetivamente dispõe hic et nunc e o conhecimento necessário à apreensão absoluta do objeto estudado. Para isso, é necessário que o intérprete tente fazer reviver, na medida do possível, o ambiente cultural em que o objeto de estudo foi gestado.

Significado linguístico

Na tradução da parêmia alemã Der Tote erbt den Lebendigen não há nenhuma perplexidade: ela não significa o morto herda do vivo, mas sim: o morto constitui o vivo [como] herdeiro. O ponto nevrálgico está na tradução do verbo erben.

De fato, erben tem um sentido que não foi considerado até agora. No Deutsches Wörterbuch [5] – ingente projeto concebido pelos irmãos Grimm no início do século 19 e que se tornou o mais amplo registro da língua alemã — consta haver um sentido já arcaico de seguinte teor: “significava outrora instituir como herdeiro, prover com herança, gratificar, agraciar alguém com herança”. Noutros dicionários especializados, tal sentido também aparece [6].

Na Anegenge, poema composto por volta de 1060, diz um verso: der vater […] sîn chint geerbet hât / mit liuten und mit lande (“o pai deixou ao seu filho [como herança] homens e terras”). O poeta Heinrich von Morungen, do século 13, diz: Mîme kinde wil ich erben dise nôt (“eu quero deixar aos meus filhos [como herdeiros] esse sofrimento”). No Willehalm, obra do século 13 do poeta Wolfram von Eschenbach, aparecem os versos der alte hete gerbet / sîne süne mit sölhen urborn (“o velho agraciara [por herança] seus filhos com tais rendimentos”). No século 14, há o seguinte registro: und hat sie geerbit mit zehen morgen wingarten (“e a instituiu herdeira de um terreno de dez jeiras”).

A situação da versão francesa do brocardo  le mort saisit le vif  apresenta o mesmo problema linguístico de sua contraparte alemã. Considerando que o verbo saisir tem por significado moderno principal o sentido de tomar, pegar, segurar, como se poderia entender o brocardo francês? O morto se apodera do vivo, como já se sugeriu? É preciso averiguar o sentido desse termo filologicamente.

O verbo saisir, em francês, deriva do termo germânico hipotético “sazjan” cujo significado original, na língua francesa, não era o de “tomar posse”, mas sobretudo o de “imitir na posse” ou “transferir a posse” [7]. Tal sentido é atestado desde muito cedo [8]. No Livre des Rois, do século 12, diz-se: “Lores li liverad li reis sun serjant, et cumandad que de tut l’en saisisist” (então lhe deu o rei um servo, e ordenou-lhe que lhe entregasse a saisine de tudo). Nos Miracles de Notre-Dame, do século 13, diz-se: “Et si saisiray là Amille / De la conté et de la ville” (e eu darei à Amille a saisine da cidade e do condado). Dos exemplos dados, não sobra dúvida de que tanto o verbo erben como saisir podem ter, como sujeito, o autor da herança e, como objeto, o herdeiro, além de um complemento preposicional que especifica o conteúdo da herança, de modo a significar que o autor da herança institui, concede ou transmite algo ao herdeiro.

Do ponto de vista linguístico, o que ocorre com ambos os verbos (erben e saisir) é a convivência de um sentido não-causativo (herdar, pegar) com um sentido causativo (fazer herdar, i.e., instituir como herdeiro; fazer pegar, i.e., transmitir a saisina). Também em ambas as línguas, o sentido não-causativo prevaleceu, ao passo que o causativo se tornou arcaico e, por isso, impõe alguma dificuldade de compreensão.

Parêmia [9]

Como uma forma aberta, os brocardos jurídicos conhecem diversas manifestações linguísticas sem que a variação da forma implique diferença de significado. Assim, um julgado do Parlamento de Paris datado de 1259 afirmava que per consuetudinem terrae mortuus vivum debebat saisire (“por costume da terra, o morto devia transmitir a saisina ao vivo”). Numa escritura datada de 1322, consta que se esse saisitum per consuetudinem patriae notoriam, quod mortuus saisit vivum (“tem já a saisina por notório costume pátrio, segundo o qual o morto transmite a saisina ao vivo”). Em língua alemã, encontra-se o brocardo, em sua forma arcaica, numa coletânea datada de 1448: de dode ervet den Levenden.

Algumas de suas manifestações tornam ainda mais claro o seu sentido. Em diversas Coutumes francesas, consta a seguinte forma, usando predicativo do objeto: le mort saisit le vif son plus prochain héritier habile à lui succéder (“o morto transmite a posse ao vivo, seu herdeiro mais próximo apto a lhe suceder”). Algo muito semelhante se encontra também na legislação da cidade de Bruxelas, com notável riqueza de detalhes e com emprego de ambos os verbos: der Doode erft ende saiseert den lebenden, synen naesten hoir ende erfgenaem, bequem wesende em te succederen, ende wort de Possessie by de doodt of denselben ghecontinwert (“o morto institui como herdeiro e transmite a Gewere ao vivo, seu herdeiro mais próximo, hábil a sucedê-lo, e a Gewere [exercida] pelo morto é continuada por aquele”).

André Tiraqueau, que dedicou toda uma obra ao direito de saisina [10], teria dado ao brocardo a seguinte tradução latina: mortuus facit possessorem vivum sine ulla apprehensione (“o morto faz do vivo possuidor sem apreensão alguma”). Na mesma época, Charles Du Moulin [11] afirmou que virtus et effectus illius consuetudinis nihil aliud est quam continuatio possessionis a moriente in heredem (“a força e o efeito daquele costume não é senão a continuação da posse do morto em favor do herdeiro”).

Diante desses antigos registros de emprego do brocardo em diversas formas  algumas, inclusive, muito desenvolvidas , não há mais dúvida razoável a respeito de seu significado. Em todas as suas formulações, o brocardo contém uma regra sucessória segundo a qual, uma vez morto o autor da herança, transmite-se imediatamente ao seu herdeiro mais próximo a Gewere ou saisina do bem hereditário. Todavia, para que se compreenda precisamente o significado do preceito, é preciso esclarecer alguns pontos jurídicos.

Significado jurídico

A compreensão do brocardo analisado só é possível dentro do contexto do direito germânico em que foi gestado. A dificuldade em compreender o direito germânico modernamente está sobretudo na incompatibilidade de suas categorias com o direito romano, que funciona há muito como repertório básico de comparação e conceituação para os juristas. Novamente, volta à baila o problema da noção filológica: a apreensão da Gewere [12] passa necessariamente por uma revisão da pré-compreensão do jurista, usualmente calcada no direito romano. É preciso, a cada passo, que se cotejem as noções prévias da posse com aquilo que as fontes jurídicas manifestam a respeito da Gewere, refazendo, a cada ciclo do círculo hermenêutico, uma adaptação do conceito inicial.

Observada dentro do contexto do direito germânico, a Gewere era classificada de diversos modos, ora realçando a relação fática entre pessoa e coisa, ora realçando seu caráter jurídico. Podendo ter por objeto uma coisa, um direito ou um cargo, a Gewere estava ligada ao efetivo exercício do direito que produzia uma aparência jurídica de titularidade: presumia-se que aquele que exerce o direito era seu titular. Essa abrangência leva a certa versatilidade do conceito: admitia-se que mais de uma pessoa exercesse a Gewere  tal como no caso do contrato de enfeudamento, em que há Ober  e Untergewere, à semelhança da moderna divisão entre posse direta e indireta.

Para entendê-la, é melhor compreender os poderes que o titular da Gewere adquiria. Quando o herdeiro recebia a Gewere jurídica da coisa, ele podia, sem precisar recorrer ao judiciário, imitir-se na Gewere fática da coisa herdada. Caso um terceiro se tivesse apoderado da coisa no ínterim, era este que se tornava responsável por ter quebrado a continuidade da Gewere e, dessa maneira, nasciam ao herdeiro ações para recuperar o bem. O Coutume de Reims deixa claro que a proteção é en tout droit possessoire et pétitoire, isto é, abrangia tanto defesas possessórias como petitórias. Além dessa função defensiva, a Gewere também era exigida para a transmissão da coisa imóvel a outrem, funcionando, assim, como um indicador de legitimidade para disposição da coisa.

Na parte do Sachsenspiegel (III.83.1) dedicada aos bens em geral (Landrecht), faz-se uma distinção: [s]vat mane enem manne oder wive gift, dat solen sie besitten dre dage (“quando se entrega [algo] a um homem ou a uma mulher, devem eles possui-la por três dias”). Isto é, a transmissão da coisa, para produzir efeitos jurídicos, tinha de ser seguida por três dias de posse. Porém, [s]vat si mit klage irvorderet, oder uppe sie geervet wert, des ne dorven sie nicht besitten (“caso ela seja exigida por ação, ou obtida por herança, não há necessidade de possui-la”). Veja-se aqui o primeiro efeito da saisina: dispensar a posse trídua exigida para as transmissões inter vivos.

Já no que diz respeito ao direito feudal, o primeiro significado do brocardo é o da transmissibilidade da posição de vassalo no contrato de enfeudamento. Diferentemente do contrato de enfiteuse, o contrato de enfeudamento tinha por centrais certas obrigações de natureza pessoal, baseadas na confiança. Assim, na parte do Sachsenspiegel (IV.6) dedicada ao direito feudal, afirma-se: de vader erft op den sone de were des gudes mit sament deme gude (“o pai transmite ao filho a Gewere do bem junto com o bem”).

O segundo sentido, por sua vez, estava ligado à eficácia dessa transmissão: era ipso jure ou dependia de algum ato do concedente? A previsão seguinte responde a questão: dar umme ne bedarf de sone nicht, dat men eme des vader gut bewise (“para isso não é necessário ao filho que se lhe faça a investidura no bem do seu pai”). É preciso lembrar, ainda, que o direito germânico não dispunha de uma noção de sucessão universal, de modo que os bens eram distribuídos aos homens e às mulheres herdeiros de acordo com sua finalidade principal. Com essa previsão, evitava-se que o bem enfeudado voltasse automaticamente, com a sucessão, ao suserano. Aqui nasce a ideia central do chamado direito de saisina: a transmissão automática da Gewere que, como se viu, foi paulatinamente associada à posse.

Com isso, não se deve ver uma oposição absoluta entre o direito romano e o direito germânico: também o direito romano conhecia uma sucessão ipso jure para os sui heredes, isto é, aqueles que estavam sob a patria potestas do autor da herança. Todavia, para os extranei heredes, era necessária a additio hereditatis: até a aceitação da herança, o patrimônio permanecia sem titular. Originalmente, no direito germânico, até mesmo para esses herdeiros a sucessão era automática. Na ausência de uma ordem absoluta de sucessão, imitia-se licitamente na Gewere fática da herança algum herdeiro do autor da herança; caso surgisse herdeiro de grau mais próximo, ficava aquele obrigado a transmitir a Gewere a este.

Conclusão

Esclarecido o sentido linguístico e jurídico do brocardo, fica dissipado o mistério criado ao redor da expressão. Fica a lição de método: é imperioso cotejar os termos jurídicos com as fontes primárias dentro de uma compreensão sistemática. Tolhem-se os voos altos e duvidosos da imaginação, fincam-se os pés em terra firme e frutífera.

João Carlos Mettlach Pinter é doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e procurador do Estado de São Paulo.

Consultor Júridico

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