Moises Mota: As imunidades nos crimes contra o patrimônio

Os crimes contra o patrimônio estão entre os mais comuns e recorrentes no Brasil. Esses delitos envolvem a subtração, destruição ou deterioração de bens alheios, configurando-se como um ataque à propriedade e à posse dos indivíduos. No entanto, nem todos os atos que parecem contrários à lei são, de fato, passíveis de responsabilização penal. É nesse sentido que a doutrina e a jurisprudência abordam as imunidades nos crimes contra o patrimônio, especialmente nos casos previstos nos artigos 181, 182 e 183 do Código Penal.

Artigo 181

O artigo 181 do Código Penal brasileiro traz uma importante exceção aos crimes previstos contra o patrimônio. Conforme o dispositivo legal, é isento de pena o autor do crime que o comete em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural.

Essa isenção de pena tem como fundamento a proteção da unidade e harmonia familiar, uma vez que a punição do autor do crime pode agravar ainda mais a situação de conflito e desavença entre os membros da família. Dessa forma, o Estado opta por não aplicar sanções penais em situações em que os crimes foram cometidos entre pessoas que possuem vínculos familiares.

Vale ressaltar, no entanto, que a isenção de pena prevista no artigo 181 não se aplica a todos os crimes contra o patrimônio, mas somente àqueles previstos no título II do Código Penal. Além disso, a proteção conferida pela norma não se estende a situações em que o crime é cometido por motivos fúteis ou banais, que fogem da esfera dos conflitos familiares.

O artigo retromencionado do Código Penal, que isenta de pena o autor do crime cometido em prejuízo do cônjuge ou ascendente/descendente, tem sido objeto de discussão na doutrina, especialmente em relação aos seus fundamentos e alcance.

Parte da doutrina entende que a isenção de pena prevista no artigo se justifica pela ideia de que o Estado deve evitar a punição de crimes que ocorrem no âmbito familiar, uma vez que isso poderia agravar ainda mais a situação de conflito e desavença entre os membros da família, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, a proteção conferida pela norma estaria alinhada com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à família.

Por outro lado, há quem defenda que a isenção de pena é restrita aos casos em que o crime é cometido em um contexto de conflito familiar e que a proteção conferida pela norma não se estende a situações em que o crime é praticado por motivos alheios à esfera familiar. Assim, ainda que exista um parentesco entre vítima e autor, se o crime foi cometido por razões distintas de conflito familiar, não haveria a isenção de pena prevista no dispositivo.

De modo geral, a doutrina reconhece a importância da proteção conferida pela unidade e harmonia familiar, mas também ressalta a necessidade de sua aplicação restrita aos casos em que há conflito familiar e aos crimes previstos no título do Código Penal.

A jurisprudência brasileira tem se mostrado favorável à aplicação do artigo 181 do Código Penal.

Em relação ao cônjuge, tem entendido que a proteção prevista no artigo 181 é uma decorrência do princípio da solidariedade conjugal, que visa preservar a unidade familiar e a harmonia entre os cônjuges. Nesse sentido, os tribunais têm decidido que a isenção de pena só se aplica quando o crime é cometido exclusivamente em prejuízo do cônjuge, não abrangendo casos em que terceiros são afetados.

No que se refere aos ascendentes e descendentes, a jurisprudência também tem aplicado o artigo 181 de forma ampla, incluindo tanto os parentes legítimos quanto os ilegítimos, bem como os civis e os naturais. A justificativa para essa interpretação é a proteção aos laços familiares, que são considerados fundamentais para a organização da sociedade.

Um exemplo de julgado foi o HC 99.980/PR, julgado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 2010. No caso em questão, o réu foi condenado por furto qualificado praticado em prejuízo do seu padrasto. O STJ, no entanto, entendeu que a isenção de pena prevista no artigo 181 deveria ser aplicada, uma vez que o padrasto do réu era equiparado a ascendente em razão do vínculo de afinidade.

Outro exemplo é o REsp 1309524/RS, julgado pelo STJ em 2013, no qual o réu foi condenado por furto qualificado praticado em prejuízo de sua filha. Nesse caso, o STJ entendeu que a isenção de pena prevista no artigo 181 se aplicava, uma vez que a filha do réu era considerada descendente, independentemente de ser legítima ou não.

Dessa forma, a jurisprudência tem interpretado de forma ampla o artigo 181 do Código Penal, visando proteger os laços familiares e a harmonia entre os membros da família.

Artigo 182

O artigo 182 do Código Penal estabelece que o crime previsto neste título somente será processado mediante representação, ou seja, a vítima ou seu representante legal deve apresentar uma queixa formal para que haja a instauração da ação penal. Essa exigência visa proteger a autonomia da vontade da vítima, uma vez que ela é a principal interessada na punição do autor do crime.

O dispositivo traz ainda uma limitação às hipóteses em que se exige a representação. São elas: o crime cometido em prejuízo do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; do irmão, legítimo ou ilegítimo; e do tio ou sobrinho, desde que coabitem com o agente. O legislador entendeu que nesses casos a relação de parentesco próxima ou a convivência entre as partes pode dificultar a apresentação da representação, justificando assim a exigência da manifestação de vontade da vítima para o prosseguimento da ação penal.

Em relação à doutrina, há uma divergência quanto à constitucionalidade do artigo 182 do Código Penal. Alguns autores entendem que essa exigência viola o princípio da obrigatoriedade da ação penal, previsto no artigo 129 da Constituição, uma vez que limita a atuação do Ministério Público e condiciona a punição do agente à vontade da vítima. Outros, porém, argumentam que a exigência da representação se justifica em casos de crimes que envolvem relações interpessoais mais próximas, como no caso dos parentes e ex-cônjuges.

Nesse sentido, a doutrina destaca que a representação não pode ser confundida com a renúncia da vítima ao direito de punir o infrator. A renúncia, como manifestação de vontade da vítima, só pode ser aceita nos casos previstos em lei, nos termos do artigo 107 do Código Penal brasileiro. Já a representação, por sua vez, tem uma finalidade específica de garantir a proteção da intimidade e autonomia das pessoas mencionadas no artigo 182 do Código Penal, não se confundindo com a renúncia.

Portanto, o artigo 182 do Código Penal, ao prever a necessidade de representação nos casos de prejuízo a pessoas específicas, reforça a importância do respeito à vontade e à privacidade desses indivíduos, ao mesmo tempo, em que delimita o poder punitivo do Estado.

No que tange à jurisprudência, é possível encontrar decisões que reconhecem a constitucionalidade do artigo 182 e outras que consideram a exigência da representação inconstitucional. A maioria dos tribunais, porém, tem entendido que o dispositivo é constitucional e se justifica nos casos de crimes cometidos entre parentes ou ex-cônjuges. Destaca-se ainda que, mesmo nos casos em que a representação é exigida, a vítima não pode desistir da ação penal uma vez que ela já tenha sido iniciada, conforme previsto no artigo 25 do Código de Processo Penal. Seguem algumas jurisprudências comentadas sobre o artigo 182 do Código Penal.

1) STJ – REsp 1.210.384/SP — Nesta decisão, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, mesmo após a morte do irmão, a representação pode ser realizada pelos herdeiros necessários, pois o direito de representação é transmitido aos sucessores legítimos.

2) STF – HC 123.757/RJ — No caso em questão, o Supremo Tribunal Federal confirmou que a representação é necessária para a persecução penal do crime de apropriação indébita previdenciária, mesmo em casos de cônjuge separado de fato, uma vez que a separação de fato não implica a cessação do vínculo conjugal.

3) TJ-MG – Apelação Criminal 1.0024.15.119468-5/001 — Nessa decisão, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que a representação é dispensável no caso de crime contra o patrimônio cometido em prejuízo de tio e sobrinho que coabitam, quando se trata de violência doméstica. Isso porque, neste caso, a ação penal é pública condicionada à representação apenas para as infrações penais de menor potencial ofensivo.

4) TJ-SC – Apelação Criminal 0000268-87.2016.8.24.0037 — Nesta decisão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmou que a representação é dispensável em caso de furto cometido contra irmão legítimo. Isso porque, segundo o entendimento do tribunal, o crime de furto é de ação penal pública incondicionada, ou seja, independe de representação para que o Estado possa promover a ação penal.

Essas decisões ilustram como a jurisprudência pode interpretar e aplicar o artigo 182 do Código Penal, considerando as particularidades de cada caso concreto.

Artigo 183

O artigo 183 do Código Penal brasileiro estabelece exceções aos artigos anteriores (181 e 182) que tratam da necessidade de representação para a persecução penal nos crimes contra o patrimônio cometidos em prejuízo de determinadas pessoas. De acordo com o artigo 183, não se aplica o disposto nos artigos anteriores nos seguintes casos:

I — se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa: nesses casos, a gravidade do crime justifica a atuação de ofício pelo Ministério Público, sem necessidade de representação da vítima.

II — ao estranho que participa do crime: se o crime é cometido por mais de uma pessoa, e uma delas é estranha à relação de parentesco ou convivência previstas nos artigos anteriores, não há necessidade de representação.

III — se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos: A proteção especial conferida às pessoas idosas justifica a atuação de ofício do Ministério Público nos crimes contra o patrimônio cometidos em prejuízo dessas pessoas, sem necessidade de representação.

É importante ressaltar que, nos casos em que não se aplica o disposto nos artigos anteriores, a ação penal é pública incondicionada, ou seja, não depende de representação da vítima para que o Ministério Público possa promover a persecução penal.

Conforme a doutrina, a exceção prevista no artigo 183 visa evitar a impunidade nos casos em que o crime é cometido com extrema violência ou com a participação de terceiros que não sejam próximos da vítima. Nesses casos, não se justifica a isenção de pena, já que a conduta do agente revela uma maior gravidade e deve ser punida conforme a lei.

Ainda segundo a doutrina, a exceção prevista no inciso III, que trata do crime praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, tem como objetivo proteger os idosos, que são considerados vulneráveis e merecem uma proteção especial do Estado. Assim, nos casos em que um idoso é vítima de um crime, mesmo que o autor seja um parente próximo, não se aplica a isenção de pena prevista nos artigos anteriores.

Em resumo, o artigo 183 traz exceções à regra geral prevista nos artigos anteriores e garante a punição nos casos em que a conduta do agente revela uma maior gravidade ou quando a vítima é um idoso, considerado vulnerável pela lei.

Sobre a jurisprudência, em relação ao inciso I do artigo 183, é possível destacar o julgado do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.806.343/RJ, onde se discutiu a possibilidade de aplicação da causa de aumento prevista no artigo 157, §2º, I, do CP (roubo com emprego de arma) diante da aplicação do artigo 183, I, do mesmo código. O STJ entendeu que, mesmo que o roubo tenha sido praticado com emprego de arma, a isenção de pena prevista no artigo 181 do CP deve ser aplicada quando o bem jurídico tutelado é a integridade física da vítima, sendo desnecessária a representação do ofendido.

Quanto ao inciso II do artigo 183, é importante destacar que a jurisprudência tem entendido que o termo “estranho” deve ser interpretado restritivamente, ou seja, somente se aplica quando há desconhecimento prévio entre os coautores do crime. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo, no Apelação Criminal nº 0003159-10.2017.8.26.0071, destacou que a exclusão da isenção de pena prevista no artigo 181 do CP não se aplica quando os coautores se conhecem previamente, mesmo que não tenham relação de parentesco.

Por fim, em relação ao inciso III do artigo 183, é importante destacar o julgado do TR-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), no Apelação Criminal nº 70083233756, que discutiu a aplicação da causa de aumento prevista no artigo 121, §4º, do CP (homicídio qualificado por motivo fútil) diante da exclusão da isenção de pena prevista no artigo 181 do mesmo código. O TJ-RS entendeu que a exclusão da isenção de pena prevista no artigo 181 não afasta a possibilidade de aplicação da qualificadora prevista no artigo 121, §4º, do CP, uma vez que se trata de circunstância objetiva do crime e não de elemento subjetivo.

Conclusão

As imunidades nos crimes contra o patrimônio são uma questão delicada e que requer uma análise cuidadosa dos casos concretos. A doutrina e a jurisprudência têm buscado compreender e delimitar essas situações, a fim de evitar responsabilizações penais indevidas. É preciso considerar as circunstâncias específicas de cada caso, a fim de determinar se há ou não imunidade. Ainda que a jurisprudência seja firme em relação a essas questões, é importante serem realizadas análises detalhadas, a fim de evitar interpretações equivocadas e garantir a aplicação justa da lei.

É importante ressaltar que as imunidades nos crimes contra o patrimônio não são absolutas e devem ser analisadas caso a caso, considerando as circunstâncias específicas de cada situação. Além disso, cabe ao julgador avaliar a existência ou não de imunidades, levando em conta a doutrina e jurisprudência aplicáveis.

Dessa forma, é possível concluir que as imunidades nos crimes contra o patrimônio relacionados aos artigos 181, 182 e 183 do Código Penal têm sido objeto de discussão na doutrina e jurisprudência brasileiras. A interpretação dessas imunidades deve ser realizada de forma criteriosa, levando em conta as circunstâncias específicas e a aplicação da lei e da jurisprudência pertinentes.

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Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 08 maio 2023.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Especial. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 12. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Moises Mota é bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete (FDCL), jornalista e
membro-efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.

Consultor Júridico

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