A 2ª Guerra Mundial foi palco das maiores atrocidades praticadas pela humanidade em sua história recente, cujo holocausto dos judeus arquitetado e implementado pelo nazismo é a face mais sombria desse conflito de proporções globais e que revelam nas palavras de Hannah Arendt a “banalidade do mal”, em que um dos arquitetos dessa engenharia de extermínio humano, Adolf Eichmann, se enxergava como um “cidadão respeitador das leis”.
O fim do conflito bélico em 1945, com a vitória dos Aliados, coalizão formada por Estados Unidos, Reino Unido, França e a antiga União Soviética sobre a aliança militar do Eixo integrada por Alemanha, Itália e Japão, encerrou os combates militares diretos, mas deixou muitas feridas abertas, em especial na Alemanha, cuja legislação proíbe negar publicamente o Holocausto e divulgar propaganda nazista como imagens da suástica e uniformes na SS (Polícia do Estado Nazista).
Uma marca americana causou polêmica em 2017 ao divulgar na internet uma linha de camisetas com a suástica estampada sobre as cores do arco-íris [1]. Em sua defesa, a empresa do ramo têxtil afirmou que a sua intenção era resgatar o sentido original do símbolo que nas culturas antigas representava, segundo ela, boa sorte. A proposta não foi bem acolhida, pois a suástica não é um mero símbolo. É impossível não a associar ao Holocausto, momento histórico sensível da humanidade.
Recentemente, Roger Waters, cofundador do Pink Floyd, passou a ser investigado pela polícia de Berlim, na Alemanha, por suposta incitação ao ódio, em razão da utilização durante um dos seus shows de um uniforme de estilo nazista. A investigação é destinada a apurar se a vestimenta utilizada pelo artista pode servir para glorificar ou justificar o regime nazista e, com isso, perturbar a ordem pública [2].
A sociedade alemã, certamente, ainda sofre com as feridas deixadas pelo nazismo e não tolera qualquer tipo de flerte com os seus símbolos e os seus ideários, não porque queira apagar da memória o que referido regime foi capaz de fazer, inclusive porque a lei proíbe negar a existência do Holocausto e alguns campos de concentração são preservados para se resguardar a memória. A proibição é destinada a impedir as ideias e o estímulo às ações antissemitas. E neste sentido, o uso de uma roupa que remeta ao nazismo não é tolerado. A liberdade artística e de expressão encontram, portanto, limitação expressa na legislação alemã quando se trata de fazer qualquer tipo de associação ao nazismo e aos seus símbolos.
No Brasil, a legislação não apresenta nenhuma vedação expressa e direta à liberdade de expressão e à liberdade artística à semelhança da Alemanha em relação ao nazismo, o que não implica na ausência de limites. No caso brasileiro, os limites encontram-se nos próprios direitos fundamentais, já que o exercício de referidas liberdades por uns não pode violar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das demais pessoas. E nestas hipóteses, a Constituição assegura o direito à indenização, inclusive porque há vedação constitucional expressa à censura prévia.
A questão no Brasil é bastante tormentosa, em especial quando a liberdade artística é exercida com suporte no humor e envolve temas sensíveis historicamente como a escravidão. É o caso recente do humorista Léo Lins em que o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a retirada do Youtube do especial de comédia Perturbador protagonizado por ele [3]. O humor, cujos elementos propulsores são o inesperado, a surpresa, a expectativa frustrada e a subtaneidade, tem encontrado oposição em todas as épocas como ocorreu com Aristófanes, Molière e Chaplin [4] e persistem com relação a inúmeros outros humoristas na contemporaneidade.
O Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar as referidas questões, tem sinalizado para a existência de limites em relação à liberdade de expressão, cujo controle deve ser, em regra, posterior, diante da vedação constitucional à censura prévia, e envolver o direito de resposta e de indenização por danos causados. Mas, se no exercício da liberdade de expressão, o agente pratica ato ilícito ou atenta contra os valores democráticos, o controle jurisdicional pode e deve ser contemporâneo à prática dos atos atentatórios.
Assim, conforme afirmado por Cunha Filho e Magalhães [5], ao Estado não cabe avaliar a qualidade da criação humorística ou artística, mas aferir a existência de ilegalidade e/ou afrontas aos pilares democráticos, pois a avaliação da qualidade da criação artística deve ser exercida pelos espectadores, com a repulsa ou a afeição à obra.
Portanto, a liberdade artística não pode ser deturpada para amparar a prática de crimes como o racismo ou quaisquer outras formas de discriminação. Logo, temas sensíveis, histórica e socialmente, não estão por esta condição previamente imunes às facetas da liberdade de expressão, e no exercício dessa liberdade os seus agentes não estão em terreno desprovido de limites jurídicos.
Notas
[1] Cf. BBC NEWS Brasil. Marca de Camiseta cria polêmica ao tentar transformar suástica em símbolo de amor e paz. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-40862555 > Acesso em 26 maio 2023.
[2] Cf. Portal G1. Roger Waters é investigado pela polícia alemã por usar uniforme de estilo nazista em show. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2023/05/26/policia-alema-investiga-roger-waters-cofundador-do-pink-floyd-por-uniforme-de-estilo-nazista.ghtml. Acesso em: 26 de maio de 2023.
[3] Cf. CNN BRASIL. Justiça manda Youtube tirar do ar vídeo de Léo Lins; humorista diz sofrer censura. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/justica-manda-youtube-tirar-do-ar-video-de-leo-lins-humorista-acusa-censura/ Acesso em 26 maio 2023
[4] Cf. CUNHA FILHO, Francisco Humberto; MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. Humor, a lâmina que a democracia deve suportar. In PEDRO, Jesus Prieto de; PASTOR, Roger Dedeu (org.) Libertad, arte y cultura: reflexiones jurídicas sobre la libertad de cración artística. Madri: La Cultivada, 2023. p. 719-746. Disponível em: < https://lacultivadaediciones.es/3d-flip-book/libertad-arte-y-cultura-reflexiones-juridicas-sobre-la-libertad-de-creacion-artistica/>. Acesso em: 20 maio 2023
[5] Cf. CUNHA FILHO, Francisco Humberto; MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira, 2023 op. cit.
Allan Carlos Moreira Magalhães é doutor e pós-doutor em Direito (Unifor), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo (Dialética-SP).