Mozart Andrade Jr.: Sócio de boa-fé na desconsideração da PJ

Nas relações de direito privado, a desconsideração da personalidade jurídica tem sido recorrentemente aplicada para fins de responsabilidade patrimonial, isto é, para permitir que, reconhecido o abuso da personalidade jurídica, os bens dos sócios possam ser penhorados para satisfazer débito da sociedade devedora (responsabilidade secundária). O problema que se coloca: quais são os sócios sujeitos à desconsideração?

Legenda

Ainda que sem a identificação de um critério de imputação de responsabilidade, na jurisprudência, não parece existir divergência quanto à posição do sócio controlador. Reconhecido o abuso, ele responderá pela dívida.

O ponto mais sensível da questão recai sobre o sócio minoritário, desprovido do poder de controle. Em que hipóteses e por qual fundamento existirá ou não sua sujeição?

Mesmo depois da Lei da Liberdade Econômica, a maior parte da jurisprudência oscila entre (1) a responsabilização de todos os sócios (AgInt no Recurso Especial 1.757.106/SP), como se o fundamento estivesse somente no status socii; (2) a limitação ao sócio controlador, com exclusão “automática” do minoritário, como se o poder de controle fosse o único critério de imputação de responsabilidade.

A questão ganhou interessantes contornos quando a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou o Recurso Especial 1.315.110/SE. Em uma sociedade familiar composta por mãe e filha, essa alegava sua ilegitimidade por não deter poder de controle, nem praticar atos de gestão na empresa, o que competia à outra sócia (mãe). O STJ considerou relevante o exame da “natureza jurídica específica da sociedade por quotas de responsabilidade limitada que se encontra em litígio” e do modo como funcionava a operação da sociedade em concreto para manter a responsabilidade de todos os sócios (mãe e filha).

Em outra oportunidade, a 4ª Turma manteve a responsabilidade de sócios minoritários, sem atos de gestão, porque a sociedade havia sido utilizada para prática de crimes contra o sistema financeiro e, segundo o acórdão, eles tinham conhecimento da atividade ilícita exercida (Recurso Especial 1.250.582/MG).

Já, no Recurso Especial 1.686.162/SP, a Terceira Turma afastou a responsabilidade de sócia majoritária (60% do capital social) de uma sociedade que teve a falência decretada, porque, segundo a premissa fática, ela teria ingressado no quadro societário somente para viabilizar o recebimento de um crédito que detinha contra a sociedade.

Como explicar esses acórdãos que ora responsabilizam o sócio minoritário e ora afastam a responsabilidade do sócio majoritário?

Os acórdãos revelam que, diante de um fenômeno tão amplo e variado como é a desconsideração da personalidade jurídica, é preciso encontrar um fundamento de conteúdo aberto, geral, capaz de permitir ao juiz a análise das circunstâncias concretas para definição, caso a caso, da (ir)regularidade na conduta de cada sócio [1].

Se voltamos à origem da teoria da fraude e da própria teoria da desconsideração, percebemos que ambas são construídas a partir do princípio da boa-fé objetiva [2]. Se avançamos, temos que a fraude contra credores, fraude contra a execução e desconsideração para fins de responsabilidade são técnicas semelhantes (“paulianas”) que visam combater um tipo específico de abuso de direito: a fraude patrimonial.

A exemplo do que ocorre nos outros casos de fraude patrimonial, na desconsideração da personalidade jurídica para fins de responsabilidade, o princípio da boa-fé objetiva será o fio condutor de sua aplicação. No primeiro momento, será o critério para identificação do abuso da personalidade e, no momento subsequente, para examinar o modo como se desenvolveu a relação jurídica entre o terceiro-sócio e a sociedade [3], a fim de definir, individualmente, a responsabilidade de cada sócio.

Nessa ordem de ideias, chega a ser intuitiva a possibilidade de que o sócio, especialmente o minoritário, desprovido de controle, que não participa da administração, não tem poder de influência, nem ciência dos atos abusivos, possa invocar, em sua defesa, a exceção de boa-fé. Dito de outro modo: na desconsideração, pode existir a figura do terceiro, ou, por que não dizer, sócio de boa-fé.

A partir das circunstâncias do caso concreto [4], se o sócio demonstrar que exerceu regularmente suas posições jurídicas, ficará imune à tutela pauliana, como há muito tempo firmou a doutrina [5] e a jurisprudência (Súmula 375 do STJ) no tratamento da fraude patrimonial. Em sentido contrário, o sócio que, mesmo minoritário, sabe (ou devia saber), participa e se beneficia diretamente da fraude, não terá agido conforme o princípio da boa-fé objetiva.

Aclarados esses pontos, fica mais fácil compreender o acerto de decisões que afastam a responsabilidade de (1) sócio que é meramente investidor (“sócio capitalista”); (2) sócio com diminuta participação social e que prova que o patrimônio pessoal não tem relação com a atividade da sociedade devedora (TJ-SP. Agravo de Instrumento nº 2051040-89.2020.8.26.00000); (3) sócio que figura no contrato social por razões alheias à vontade de contratar sociedade (Recurso Especial 1.686.162/SP).

Por fim, a utilização do princípio da boa-fé objetiva como nexo de imputação de responsabilidade do sócio justifica, de forma suficiente, a imposição de responsabilidade pressuposta [6] do controlador pelo abuso da personalidade jurídica. Mesmo quando não participa nem se beneficia do ilícito, ele responde por seu desconhecimento culposo e pelo risco de fraude patrimonial criado para terceiros [7].

Mozart Vilela Andrade Junior é mestre em Direito (FGV-SP), especialista em Planejamento Sucessório (FGV-SP) e Processo Civil (EPD-SP), graduado pela UFMS e sócio da Mozart Andrade Advogados.

Consultor Júridico

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