* continuação da parte 1
** trecho do livro “Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz”
Advocacia-Geral da União
Em abril de 1997 assumi no STF, indicado pelo presidente FHC.
Antes de sair do Ministério da Justiça conversei com Clóvis Carvalho, ministro-chefe da Casa Civil, sobre o aproveitamento de Gilmar Mendes.
Naquele momento estava vaga a Assessoria Jurídica da Casa Civil, pois seu titular havia se afastado.
Clóvis aceitou sugestão e lá se foi Gilmar para a Casa Civil.
Após cerca de um ano, já no STF, em conversa com o presidente FHC, disse-lhe que deveria providenciar alguma alteração na Advocacia-Geral da União (AGU).
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) tinha atuação efetiva nas questões tributárias perante o STF.
A AGU tinha conduta mais burocrática, não combativa.
Sentia-se, inclusive, um certo ruído entre a AGU e a PGFN.
Disse ao presidente que o nome de Gilmar seria ótimo.
O presidente referiu que não era hora para mexer com a AGU.
Mas ficou com a mensagem.
Em 23/11/2000, o ministro da Defesa, ex-senador Élcio Alvares, ex-líder no governo no Senado, afastou-se do ministério.
No dia seguinte, o advogado-geral da União, Geraldo Quintão, é nomeado ministro da Defesa.
O presidente da República, em 31/01, nomeou Gilmar como advogado-Geral da União.
É conhecida a agilidade que Gilmar deu à AGU.
Deu estruturação à AGU, que se transformou em um grande defensor da União.
Armou diversas polêmicas com tribunais, Ministério Público e advogados.
Certa feita, em sessão plenária no STF, Gilmar fazia aguda e forte sustentação oral.
O ministro Ilmar Galvão, ao lado de quem eu sentava, murmurou: “Jobim, olha só a ventania!”
Disse-lhe: “que ventania? Estão todas as aberturas fechadas!”
Ele retrucou: “Não é isso. São os ‘dólares’ dos honorários advocatícios de êxito que estão voando para fora!”
Supremo Tribunal Federal
Em conversas informais com o presidente FHC, disse a ele que Gilmar deveria ser indicado para o STF.
Naquela época, não havia “campanha” para indicação à vaga no STF, como há hoje.
Adotava-se a regra à qual o ministro Paulo Brossard se referia:
“O cargo de ministro do STF não se reivindica e não se recusa.”
FHC disse-me que não poderia abrir mão do Gilmar, mas que, na última vaga a abrir no STF durante seu mandato, faria a indicação.
FHC indicou Gilmar.
Outra polêmica.
A OAB se opôs à indicação.
O professor Dalmo Dallari escreveu que Gilmar, no STF, atacaria os direitos humanos consagrados na Constituição, e a própria estabilidade desta!
O mesmo professor da polêmica sobre o decreto de demarcação de terras indígenas.
Na sabatina na Comissão de Constituição e Justiça, o senador Eduardo Suplicy obteve o adiamento da sessão.
Houve duro debate na Comissão e no Plenário.
Tudo acabou com a aprovação da indicação, por maioria.
Não vou examinar as decisões de Gilmar.
Creio que nesta obra outros o farão.
Conheci, convivi e conheço a competência e erudição de Gilmar.
Mas, não só sua competência.
Gilmar teve polêmicas duras com membros do Tribunal.
Lembro das escaramuças de Gilmar com Joaquim Barbosa e Luiz Roberto Barroso.
Além daquelas com a OAB e alguns advogados.
Vou me referir a essa característica mais adiante.
Emenda Constitucional nº 45, de 2004 — Reforma do Judiciário
O deputado Hélio Bicudo (PT-SP) apresentou, em 26/03/1992, a PEC 92, de reforma do Poder Judiciário.
A PEC teve alguma movimentação, com paralisações na Câmara dos Deputados.
Foram nomeados relatores, na Comissão Especial, sucessivamente, os deputados Jairo Carneiro (PFL-BA), 1995, Aloysio Nunes Ferreira (PMDB-SP), 1999, e a deputada Zulaiê Cobra (PMDB-SP), 1999.
A discussão e votação, no Plenário da Câmara dos Deputados, começou em 19/11/1999 e encerrou-se em 07/06/2000.
A proposta inicial do deputado Hélio Bicudo serviu unicamente para a tramitação do tema.
O relatório e substitutivo da deputada Zulaiê Cobra tiveram redação completamente diferente da proposta inicial.
Durante a tramitação, Gilmar e eu trabalhamos junto à relatora para incluir modificações similares ao texto dos pareceres da Revisão Constitucional de 1993.
A relatora, em seu substitutivo, incluiu as nossas sugestões e acolheu outras emendas de deputados.
A matéria teve longa discussão em primeiro e segundo turno de votação.
As questões mais controversas foram a criação da súmula vinculante e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A súmula vinculante teve enorme oposição da OAB e de associações de juízes.
A criação do CNJ teve forte repúdio pela magistratura, por meio de suas associações, como a Associação do Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e Associação Nacional da Magistratura do Trabalho (Anamatra).
O então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), em discurso de 30/01/1997, afirmou:
“Os juízes integrantes da magistratura da União (juízes federais, juízes do Distrito Federal, juízes do trabalho e juízes militares) […] conscientes de sua missão constitucional e de seu relevante papel social, têm procurado os membros do Poder Legislativo para uma conversa sadia, com o fim de trocar informações sobre o mecanismo específico do Poder Judiciário.” [1]
E continuou o deputado:
“O momento é grave e preocupante. O Judiciário, guardião das liberdades, nunca se sentiu tão ameaçado e acuado no exercício de sua independência funcional. […] precisamos ter atenção com os reclamos da magistratura da União na reforma do Judiciário com a questionada instituição da súmula vinculante e do falado controle externo.” [2]
Na sessão de 07/06/2000, a Câmara dos Deputados aprovou a redação final, que foi enviada para o Senado Federal, que protocolou em 30/06/2000.
No Senado, tramitou como PEC nº 29, de 2000.
Em 08/2000, foi nomeado o primeiro relator, o senador Bernardo Cabral (PMDB-AM).
Em 06/2003, foi designado novo relator, o senador José Jorge (PFL-PE).
Gilmar e eu repetimos o que fizemos na Câmara dos Deputados.
Tivemos diversos contatos e reuniões com o senador José Jorge antes da elaboração de seu relatório e substitutivo.
Conversamos com diversos senadores discutindo o tema, em especial com os líderes partidários.
No governo Lula havia muitas divergências sobre a súmula vinculante e o Conselho Nacional de Justiça.
Surgiu um problema regimental quando da confecção do relatório na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Não convinha fazer alterações no texto originário, pois tudo começaria de novo — o texto do Senado teria que ser apreciado novamente pela Câmara.
É o que chamávamos de tramitação “ping-pong” — o texto do Senado voltava para a Câmara como projeto do Senado, o qual, alterado, voltaria para o Senado.
Por outro lado, era impensável impedir que os senadores alterassem o texto da Câmara.
Esse era o impasse.
Qualquer alteração que estivesse no substitutivo do Senado importava no retorno à Câmara de toda a matéria.
Sugerimos, Gilmar e eu, ao relator a elaboração de dois textos.
Um contendo a redação da Câmara, que se destinaria à promulgação.
Outro, com as modificações introduzidas pelo Senado, que deveria retornar à Câmara.
O relator concordou com a solução.
Como a fórmula era inédita, ela dependia da concordância do presidente do Senado, José Sarney, do presidente da Comissão, senador Edson Lobão (PFL-MA) e do secretário da Mesa do Senado, Raimundo Carreiro, especialista em regimento, que orientava os presidentes e os líderes partidários.
O relator elaborou o Parecer 451, aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que concluía com a Emenda nº 240, com um texto para promulgação e outro texto para retornar à Câmara.
Em 07/05/2004, foi feita a leitura do parecer no Plenário para o início da discussão, com oferecimento de destaques e votação.
A adoção da súmula vinculante provocou debates.
Quando da votação, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) destacou para votar em separado o texto sobre a súmula vinculante e sustentou pela sua rejeição, baseado nas posições do então ministro da Justiça e ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Márcio Thomaz Bastos:
“Ouvimos […] o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, na Comissão de Constituição e Justiça. Avalio que os argumentos assinalados pelo Ministro Márcio Thomaz Bastos devem ser levados em consideração. Pelo menos, foi a convicção que formei. Primeiramente, para que os juízes de primeira instância possam decidir conforme sua convicção, seu saber jurídico, sua consciência, seu conhecimento acumulado. Em segundo lugar, para que também não se dê ao Supremo Tribunal Federal um poder excessivo, a tal ponto de o Supremo Tribunal Federal se tornar um Poder Legislativo.” [3]
No mesmo sentido a senadora Heloisa Helena (PSOL-AL):
“Esse é um instrumento de controle ideológico, de estratificação do processo criador do Direito, independentemente de todo o debate sobre Pacto Federativo, princípio da legalidade, eliminação das prerrogativas do Legislativo, porque a última palavra em relação à interpretação da lei não se dará aqui no Congresso Nacional. […] a concretização da interpretação dar-se-á pelos iluminados das cúpulas dos tribunais.” [4]
A tramitação também foi longa.
Em todo o momento, as lideranças e os senadores manifestavam a necessidade de o primeiro texto do relator não voltar à Câmara dos Deputados (lá estavam a Súmula Vinculante e o Conselho Nacional de Justiça).
Em 17/11/2004, em só uma sessão, votou-se toda a matéria em 1º e 2º turno.
Em 08/12/2004, a Emenda nº 240, com texto igual ao da Câmara, foi promulgada em sessão conjunta do Congresso Nacional, como Emenda Constitucional 45.
O outro texto retornou à Câmara, e lá não teve andamento.
Foram notáveis as colaborações do presidente do Senado Federal, do Presidente da Comissão, do Relator e do Secretário da Mesa.
A promulgação se deu em sessão solene do Congresso Nacional em 09/12/2004, onde tive oportunidade de afirmar:
“Esta Emenda Constitucional foi o produto daquilo que só o Congresso Nacional sabe fazer: a construção de maiorias e convergências em cima da divergência.
É exatamente no conflito dialético que os deputados e senadores, que as deputadas e senadoras sabem [que é] no debate que se constrói a Nação, porque é aqui […] o lugar de vitórias e derrotas.
Portanto, tivemos grandes vitórias e tivemos grandes derrotas. […] Vamos afastar de nós aquela frase dita, tresdita e repetida: essa reforma não foi a reforma dos meus sonhos. Isso é a história. A história sabe que a produção de textos legislativos, de estruturas institucionais, de desenhos para o povo e para a Nação, decorre exatamente do processo democrático, da disputa, do conflito, que tenha […] claramente, ao fim e ao cabo, a emergência da síntese, com a destruição da tese e da antítese. […] o tema de reforma do Poder Judiciário não estava na agenda nacional. Era um tema que interessava restritamente às corporações — aos magistrados, aos juízes e aos advogados. Há que se afirmar claramente que, em 1987 […] lá se encontravam somente os personagens e atores do processo judicial. O grande debate que se tratava naquele momento era um só: o espaço de cada um desses atores dentro deste pedaço do Estado. […] a eminente e aguerrida deputada Zulaiê Cobra demonstrou que no ano de 2000 […] o Poder Judiciário não é mais um tema restrito às categorias; é um tema desta Nação; é um tema no qual está posto claramente que esse não é lugar para exercício de poder, mas, sim, lugar para servir ao povo e ao País.
Tivemos “n” conversas, “n” debates, vitórias e derrotas. […], creio que agora é olhar para o futuro. Não há que se pensar que a construção do País se fará com a mera retaliação do passado e a lembrança exclusiva do passado. Precisamos […] junto com a Câmara dos Deputados e com o Senado Federal, junto com o Poder Executivo, […] participar da necessidade absoluta deste País fazer um grande acordo de contas com o seu futuro. […] As críticas que se fazem a esta Casa são críticas à Nação, pois é assim que se produz a vontade da maioria. Ninguém tem dono, o dono é o País, e o País está aqui representado por V. Exªs.”
E Gilmar esteve nesse processo em todos os momentos.
Considerações Finais
Discorri, como reportagem, sobre algumas questões relevantes, em que participei ou acompanhei a participação de Gilmar.
Vou mencionar, agora, as minhas observações sobre o próprio Gilmar.
Gilmar, com conhecimento, erudição, precisão na redação e solidez, é extremamente eficaz na proposição de soluções.
Há que se ponderar o encaminhamento das soluções propostas.
Naquela época, Gilmar, no encaminhamento e no debate, batia duro e não tinha recuo (como faz ainda hoje).
Ele acreditava que a consistência e racionalidade das soluções bastavam para que fossem aceitas.
Dizia eu a ele: “propõe uma solução, vamos discutir e chegar a uma redação final; depois, o encaminhamento é comigo”.
Ele acreditava que a racionalidade acadêmica de uma proposta, em política e em legislação, fosse a maior das variáveis para a formação de consenso. Não é a única.
Concorrem interesses (incorretos ou legítimos), ideologias, vieses, idiossincrasias, etc.
Tenta-se administrar os dissensos que possam terminar com uma fórmula de consenso, que adiante pode dar início a um novo dissenso, e assim sucessivamente.
Há algumas técnicas para a produção de consensos no procedimento legislativo.
Consistem em acordos dilatórios.
Vamos a exemplo de um acordo procedimental.
Primeiro, no caso da Emenda 45, os temas aprovados pela Câmara dos Deputados, relevantes para a Reforma do Judiciário, embora controversos, compuseram um substitutivo próprio, que aprovado, seria promulgado.
Os demais temas da PEC da Câmara dos Deputados, com menor relevância para a reforma ou com clara objeção do Senado, integraram outro substitutivo.
Nesse substitutivo pode-se aceitar uma série de emendas novas e a rejeição de textos vindos da Câmara dos Deputados. Tudo como meio de negociação para a manutenção do texto que iria à promulgação
Assegurou-se, assim, a participação efetiva dos senadores.
Outros exemplos estão na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.
Os dissensos não solucionados no mérito eram empurrados para adiante: “na forma da lei” ou “na forma de lei complementar”.
A escolha entre um e outro tipo de lei dependia da relevância política da matéria para as partes.
Os dissensos de expressão maior eram remetidos para a lei complementar e os demais para lei ordinária.
É curioso que alguns juristas procuram identificar, em abstrato, a “essência” da lei complementar!
Todos têm uma ideia sobre essa “essência”.
Não a encontram porque não há essência alguma.
Opta-se que a matéria seja tratada por lei complementar levando em conta a relevância política da controvérsia atual.
Para a aprovação de uma lei complementar exige-se maioria absoluta de votos (número imediatamente superior à metade dos integrantes do órgão).
Desta forma, impede-se que maioria relativa eventual (número de votos imediatamente superior à metade dos presentes na sessão) tome a decisão em detrimento da minoria.
Assegura-se uma participação efetiva da minoria, pois o seu voto pode ser decisivo para a aprovação por maioria absoluta.
Outra forma é se obter o consenso com a redação de um texto ambíguo o suficiente para satisfazer as divergências e aprovar a matéria.
Não fica rigorosamente explícita a solução da questão, abrindo-se algumas opções.
Há instrumentos linguísticos para tal, em especial os advérbios de modo — por exemplo, “preferencialmente”, do inciso XV do artigo 7º da CF.[5]
É outra técnica de dilação.
É mais problemática, pois transfere ao intérprete da lei a competência de escolher uma das fórmulas que a ambiguidade do texto autoriza.
O Poder Judiciário passa a ter um poder “legislativo supletivo”.
Por fim, há os acordos especificamente regimentais: data para discussão e votação, forma de encaminhamento, etc.
Isso tudo é possível onde não houver polarização radical.
Gilmar, ainda, tem uma característica que lhe impõe uma conduta.
Ele opera muito no conflito, duro e recorrente.
Cresce no conflito.
Lembre-se das divergências de Gilmar nas discussões no STF.
Vai longe no esgarçamento da linguagem.
Mas tudo isso são características que ajudam na solução.
Nas discussões é importante ter alguém que se expresse com radicalidade.
Viabiliza a solução intermediária.
Um participante prudente pode ter sucesso com uma outra proposta.
Gilmar teve participação efetiva nos casos narrados.
Ele não foge de participar em soluções para questões de relevo nacional.
Tem iniciativa para tudo.
Nem sempre concordávamos, mas o “Sr. Tempo” aplainou eventuais arestas.
*** “Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz” será lançado na próxima semana em Lisboa, e em agosto no Brasil
[2] Diário da Câmara dos Deputados, 14/12/999, suplemento, p. 00589.
Nelson Jobim é ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (1997-2004). Foi deputado federal (1987-1995) e Ministro da Justiça (1995-1997).