Nilo de Almeida: Incidência do ICMS e do ISS na contratação EPC

Uma das questões que tem desafiado os intérpretes e aplicadores do Direito Tributário envolve a incidência do ICMS e do ISS na contratação de fornecimento de máquinas e equipamentos no âmbito de contratos de obras sob a forma de engeneering, procurement and construction (EPC) ou turnkey.

Nesse formato de ajuste, o contratado tem sob sua responsabilidade a concepção, o projeto, a gestão de compras e a construção da obra, que devem levar em conta o bem que será produzido, e, portanto, a tecnologia e o know-how envolvidos na produção e que fazem parte da obra a ser entregue. Por isso, usa-se a expressão turnkey, que se refere ao ato de acionar uma chave ou controle para dar partida na produção. Com efeito, esses contratos são utilizados nas obras de infraestrutura, incluindo-se todos os serviços necessárias à entrega de uma instalação com a possibilidade de imediato funcionamento, tais como os serviços de arquitetura, engenharia, fornecimento e montagem.

Diante da complexidade e peculiaridade das obrigações assumidas pelos contratados nos contratos sob análise, que envolvem tanto a prestação de serviços, quanto o fornecimento de materiais de construção, máquinas e equipamentos, deve-se identificar os fundamentos pelos quais deve haver ou não a incidência do ICMS ou do ISS.

O Código Civil, quanto ao contrato de empreitada, ressalta que “O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais” (artigo 610). Há a tendência do Direito Privado em conferir à atividade de construção civil uma abrangência conceitual ampla, em consonância com a premissa básica de atividades humanas (obras) para implantação de bens ligados ao solo (ou restauração ou reparação). Ou seja, nas atividades relativas à obra podem ser incluídos bens vinculados ao solo.

A Lei Complementar nº 116/2003, que dispõe sobre o ISS, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, disciplina, no artigo 1º, §2º, que, ressalvadas as exceções previstas na própria Lista de Serviços anexa, não incide o ICMS sobre os serviços listados, ainda que envolvam o fornecimento de mercadorias. Assim, os serviços de construção civil estão elencados no item 7.02 da lista anexa à referida Lei Complementar, que excetua as mercadorias produzidas pelo prestador do serviço fora do local da obra, prevendo a incidência do ICMS.

Nessa senda, há entendimento de que a execução de obra de construção civil esteja fora do âmbito da incidência do ICMS, ainda que a prestação envolva o fornecimento de mercadorias (AgRg no REsp nº 1.236.193/SC, DJe de 16/5/2011; AgRg no REsp 1.002.693/RS, DJ 07.04.2008). Portanto, o STJ manifesta o entendimento de que a base de cálculo do ISS de construção civil é o custo integral do serviço, não sendo admitida a subtração dos valores correspondentes aos materiais utilizados na obra (“exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS”).

De fato, o assunto não é novo e há outros precedentes que convergem nessa direção. Aplica-se o critério da preponderância, isto é, o serviço de obra de construção civil prepondera sobre o fornecimento dos materiais, adquiridos ou produzidos, incidindo tão somente o ISS. Inclusive, foi editada a Súmula nº 167 do STJ.

Por certo, o objeto do contrato de empreitada global consiste, justamente, na entrega de uma obra de engenharia acabada. Logo, na obra de construção civil mediante contrato de empreitada global, que compreende a mão-de-obra e os materiais a serem ligados ao solo, em regra, a construtora/empreiteira não é contribuinte do ICMS, pois há prestação de serviços, e não operação mercantil.

Por outro lado, de acordo com Aires F. Barreto [1], o conceito tributário de serviço não coincide com a acepção ordinária do termo, e tampouco deve ser compreendido sob um viés econômico, devendo, ao contrário, ser extraído do próprio sistema jurídico. Em termos publicísticos-tributários, o doutrinador esclarece que serviço é a prestação de esforço humano a terceiros, em proveito alheio, com conteúdo econômico, em caráter negocial, sob regime de direito privado, mas sem subordinação, tendente à obtenção de um bem material ou imaterial. Portanto, o critério material da regra matriz seria a conduta humana (prestação de serviço) consistente em desenvolver um esforço visando a adimplir uma obrigação de fazer [2].

Vale dizer, normalmente, nos serviços de construção civil realizados sob a modalidade de empreitada, quem adquire e consome o produto  insumos aplicados e integrados na obra  é a própria construtora. Nesse caso, a operação de aquisição de insumos pela construtora é destinada a consumidor final, uma vez que não haverá operação posterior com a mercadoria, sendo predominante a obrigação de fazer. Entretanto, na hipótese de ocorrer a venda de equipamentos para a contratante, ou seja, no caso de se contratar obras de construção civil e contratar também a venda de equipamentos que não serão incorporados à obra, em contrato substancialmente misto, restará caracterizada incidência do ICMS na operação de venda destes bens.

Neste caso, independentemente do nome conferido ao contrato, deve-se verificar a substância do objeto contratado e se houve fornecimento que não decorre da empreitada contratada, especialmente no Direito Tributário, pois as definições não podem ser alteradas para ensejar tributação diversa daquela sistematizada na Constituição.

Nesse sentido, o texto constitucional estabelece as linhas mestras de competência em matéria tributária, delimitando e determinando as bases do poder impositivo de União, estados, Distrito Federal e municípios. Com efeito, a Constituição dispõe sobre a cobrança pelos estados de imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e o núcleo material da incidência de ICMS pertinente a mercadorias está relacionado à locução circular (verbo) e mercadorias (complemento), nos termos dispostos no artigo 155, II, CF, o que significa transferir a titularidade jurídica de mercadorias.

De outra banda, Aires F. Barreto [3], assevera que o serviço, para fins de incidência do ISS, encerra uma obrigação de fazer, uma prestação em favor de outrem mediante remuneração. Ou melhor, o ISS não pode incidir se não houver a prestação de serviço, sem um “fazer”, conduzindo a inconstitucionalidade da sua instituição e exigência em relação às atividades que se traduzam em obrigações de dar, mesmo que previstas na lista anexa à lei complementar nº 116/03, pois com ele incompatíveis.

Além disso, a interpretação e aplicação das normas de Direito Tributário no caso concreto jamais poderia contrariar a expressa disposição contida na LC nº 116/2003, notadamente o seu artigo 7º, §2.º, I. Veja-se, desse modo, a previsão de afastamento do ISS nas hipóteses de operações relativas à circulação de mercadorias e, consequentemente, matéria reservada pela Constituição para incidência de ICMS. Portanto, mesmo na execução de contratos formalmente denominados de empreitada, conforme disposto na referida Lei Complementar, analisada de forma sistemática, é cabível a incidência de ICMS nas hipóteses legais. Isto é, deve haver a incidência do ICMS em razão do critério material circulação de mercadorias.

Além da previsão expressa de exclusão dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços fora do local da prestação dos serviços, existe a ressalva referente ao subitem 7.02 da Lista de Serviços, no que tange aos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços. Dessa forma, entende-se que os materiais utilizados e identificados na construção e fornecidos pelo próprio empreiteiro não integram a base de cálculo do ISS. Importante realçar que o artigo 7º, § 2º, I, da LC nº 116/2003 possui presunção de constitucionalidade e plena aplicabilidade. Eventual afastamento do referido, até mesmo no âmbito do Poder Judiciário, depende da declaração de sua inconstitucionalidade. Em nossa visão, a análise mais detida e aprofundada da jurisprudência do STJ expõe que ainda não houve apreciação dos casos à luz de todos os dispositivos da LC nº 116/2003, que atualmente estabelece as normas gerais de estrutura do ISS.

Em suma, não se deve confundir os conceitos de material e mercadoria, isto é, deve-se observar a natureza mercantil do bem. Nesse rumo, incide ICMS em relação à mercadoria prevista no subitem 7.02 da Lista anexa à LC nº 116/2003 e do material no artigo 7º, §2º, I, da mesma Lei Complementar. No caso em estudo, há a contratação de obras e, ressalte-se, de forma objetivamente destacada, o fornecimento de bens, ou seja, inequivocamente, além de obras, os projetos contratados preveem o fornecimento de materiais e sistemas como de suprimento de força, bombas e controle de nível, detecção de incêndio, ventilação, telecomunicações, voz e vídeo, iluminação, escadas rolantes, elevadores, dentre outros. Logo, na contratação de fornecimento de máquinas e equipamentos no âmbito de contratos de obras sob a forma de EPC ou turnkey deve incidir ISS e ICMS.

Edvaldo Nilo de Almeida é pós-doutorando em Direito Financeiro e Tributário pela Uerj, doutor em Direito Público pela PUC-SP e procurador do Distrito Federal.

Consultor Júridico

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