Nóbrega e Telles: 10 anos da Lei de Conflito de Interesses

Em maio de 2013 era publicada a Lei nº 12.813, conhecida como Lei de Conflito de Interesses, diploma legal que inovou substancialmente o tratamento normativo do relacionamento público-privado, com um conjunto relevante de regras e princípios destinados aos agentes públicos federais.

O advento desta lei representou mais um avanço na busca pela criação de adequados padrões de probidade, ética, transparência e integridade em órgãos e entidades da administração, bem como no incremento de ferramentas aptas a reprimir irregularidades praticadas por agentes públicos e privados.

Com efeito, faz-se oportuno recordar que, no ano anterior, entrara em vigor a chamada Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), que alterou a lógica do tratamento da dados, registros e documentos que se encontram sob a tutela e guarda da administração, com o fortalecimento da transparência pública.

Também é válido fazer alusão à Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13), que permitiu a responsabilização de pessoas jurídicas por irregularidades e estimulou a criação e o aperfeiçoamento dos chamados programas de integridade. Ainda, adequado mencionar a Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13), a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) e a Lei nº 12.683/12, que alterou a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98).

Nesse desejável contexto de prevenção e combate a desvios, fraudes e irregularidades, o foco da Lei nº 12.813/13 é o estabelecimento de um arcabouço de normas, de caráter mandatário ou com natureza preponderantemente principiológica e orientativa, destinado a pautar a conduta do agente público, com especial destaque para sua relação com atores do setor privado.

O mencionado diploma legal também estabeleceu e delimitou competências a serem exercidas pela Controladoria-Geral da União (CGU) e Comissão de Ética Pública (CEP) para o tratamento de questões de conflito de interesses, além de também avançar na criação de um sistema repressivo para a responsabilização de agentes que violem as regras positivadas na Lei.

Esse microssistema jurídico, inaugurado pela Lei nº 12.813/13, foi notavelmente aperfeiçoado ao longo desses últimos dez anos de existência, com a evolução natural na interpretação das suas regras, delimitação clara dos papéis dos órgãos e entidades responsáveis pelo seu monitoramento, edição de normativos de caráter infralegal complementares à norma e instituição de sistemas de informática para facilitar consultas sobre casos de conflito.

Para adequada compreensão dessa trajetória, bem como dos desafios e obstáculos que se apresentam no horizonte próprio, é necessário, de início, ventilar e compreender o próprio conceito de conflito de interesses. Ao tratar do tema, o artigo 3º da Lei dispõe que conflito de interesses é “a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”.

Esse conceito deve nortear o aplicador e intérprete da norma. Assim, situações com baixo ou nenhum grau de relevância, incapazes de apresentar um prejuízo real à administração pública, não devem atrair a incidência das regras específicas que disciplinam as hipóteses de conflito, notadamente as de caráter punitivo.

Destarte, para que o relacionamento público-privado possa justificar a utilização do sistema repressivo insculpido na Lei de Conflito de Interesses, faz-se indispensável, e deve ser considerado pressuposto lógico, a identificação de uma situação concreta indesejada com elevado risco para a observância dos princípios da moralidade e da impessoalidade por parte daqueles que ocupam cargos em órgãos e entidades federais.

Esse entendimento é fundamental quando se verifica o elevado grau de abstração e elasticidade das situações e comportamentos previstos nos artigos 5º e 6º da Lei, de modo a assegurar que situações corriqueiras e sem qualquer potencial de conflito na vida privada dos agentes públicos seja abarcada pelos referidos tipos normativos.

Nesta direção, deve-se anotar que a Lei nº 12.813/13 optou por tratar das hipóteses de conflito de interesses em duas diferentes ocasiões: no exercício do cargo e após o exercício do cargo, conforme redação dos já mencionados artigos 5º e 6º, respectivamente.

No tocante ao primeiro caso, vale anotar que as sete hipóteses elencadas no artigo 5º consideram justamente o fato de o agente público ainda estar exercendo suas funções e, de alguma forma, estar exposto a uma indevida tentativa de influência em razão de relações privadas estabelecidas durante esse período. O recebimento de presentes, a atuação como procurador de interesses particulares junto a órgãos públicos e a prestação de serviços a determinadas organizações privadas encontram-se previstas nesse dispositivo.

Já quando se trata de situações de conflito após o exercício do cargo, a racionalidade da norma (artigo 6º) é diversa. Dessa maneira, não obstante ainda manter uma preocupação com a preservação de informações sigilosas, o legislador tem especial atenção com a indevida utilização do prestígio e da influência do ex-agente público junto ao órgão ou entidade onde exercera suas funções. E é por essa razão que as restrições ao exercício de certas atividades pelos antigos ocupantes de funções públicas (artigo 6º, inciso II) deverá ser observado somente pelo período de seis meses, chamado de quarentena.

E, nesse passo, faz-se recomendável discorrer e aclarar relevantes questões sobre o instituto da remuneração compensatória e o período de quarentena.

Para a melhor compreensão do assunto, vale atentar, de início, que a norma em debate se destina somente àqueles que ocupam cargos na alta administração federal. Dessa forma, enquanto as regras relativas à preservação do sigilo de informações sensíveis, dispostas no inciso I do artigo 6º da Lei de Conflito de Interesses, aplicam-se a todos os agentes públicos, as regras do inciso II daquele dispositivo valem somente para os ocupantes de cargos com maior poder decisório em ministérios e autarquias e de direção em empresas estatais, de modo que não há de se falar em período de quarentena em outras situações.

Assim, nos termos do inciso II, do artigo 6º, a prática de atividades privadas no período de 180 dias após o exercício do cargo deve ser precedida de consulta à Comissão de Ética Pública. Caberá àquele colegiado avaliar se a atividade pretendida pela autoridade apresenta potencial de conflito de interesses e, caso positivo, avaliar quais as medidas seriam possíveis para mitigar esse conflito. Caso se identifique que eventuais medidas mitigatórias não são suficientes, será determinado o cumprimento do chamado período de quarentena, com direito ao recebimento de uma remuneração compensatória, nos termos da legislação vigente, com especial atenção à MP 2225-45/01 e ao Decreto nº 4.187/02

Insta ressaltar que, muito embora as regras relativas ao exercício de certas atividades após o desligamento de cargos públicos na alta administração sejam anteriores à própria Lei de Conflito de Interesses  anote-se, inclusive, que o prazo da chamada quarentena anteriormente à lei era somente de quatro meses –, foi justamente com o advento dessa norma que se estabeleceram critérios mais claros para a análise dos casos.

E, se algumas situações indicam, de forma evidente e incontrastável, o iminente risco de conflito, é inegável que certas consultas podem gerar dúvidas sobre a necessidade da imposição de um período de impedimento. Nesse cenário, tendo em conta o próprio conceito de conflito de interesses trazido pela lei e ventilado nos parágrafos anteriores, é indispensável que vários elementos sejam considerados para verificar se há ou não a exigência da imposição de um período de impedimento.

Entre esses fatores, podemos citar o tempo que a autoridade ocupou o referido cargo público e as respectivas atribuições, o tipo de informação sigilosa e estratégica a que teve acesso, o grau de relacionamento com uma eventual empresa proponente, a existência, os termos e as condições de uma proposta de trabalho e a possibilidade ou não de aplicação de medidas mitigatórias. A adequada análise de tais elementos permitirá uma melhor compreensão do caso concreto e a verificação da obrigação da imposição do chamado período de quarentena.

Além das consultas após o exercício da função pública  as quais, como visto, valem somente para ocupantes na alta administração federal , também é possível que determinados agentes públicos apresentem consultas para o exercício de atividades privadas durante o exercício do cargo. Nessas hipóteses, é o cargo ocupado que vai determinar a competência para apreciação do pedido, de forma que é possível a análise por parte da Comissão de Ética Pública ou pela CGU, competência que, neste último caso, foi parcialmente delegada para departamentos internos dos próprios órgãos e entidades, nos termos da Portaria Interministerial CGU/MPOG nº 333/13.

É forçoso reconhecer que a possibilidade de uma consulta prévia ao início de uma atividade particular por um ocupante de cargo público na administração federal resulta em mais segurança para o próprio agente, já que este poderá ter a clareza necessária em relação aos limites a serem observados no âmbito privado para que se evite uma hipótese de conflito.

Cabe aos responsáveis pela análise desses pedidos  Comissão de Ética Pública, Controladoria-Geral da União ou o próprio órgão e entidade de exercício do agente  fazer um exame no caso concreto a ser apreciado, tendo em conta, invariavelmente, o conceito de conflito de interesses positivado na Lei.

É conveniente atentar que, atualmente, há um sistema informatizado próprio, instituído e administrado pela CGU (Sistema Eletrônico de Prevenção ao Conflito de Interesses  Seci), que permite aos agentes públicos formular suas consultas diretamente aos responsáveis pela apreciação dos pedidos. Trata-se de ferramenta moderna e dinâmica, que representa um importante progresso na busca por mais uniformidade no tratamento do tema e por uma resposta célere aos interessados.

Outro ponto que, do mesmo modo, mereceu atenção do legislador por ocasião do advento da Lei nº 12.813/13 foi a publicação das agendas das autoridades. Assim, na esteira da busca por uma maior transparência na administração pública em razão da Lei de Acesso à Informação, a Lei de Conflito de Interesses previu que os ocupantes de cargos na alta administração divulguem “diariamente, por meio da rede mundial de computadores  internet, sua agenda de compromissos públicos” (artigo 11).

Dessa forma, além de garantir o controle social dos compromissos institucionais assumidos por esses agentes, esse modelo de transparência permite à sociedade ter acesso a informações relativas à atuação de grupo de interesses e de organizações privadas que estejam em contato com os ocupantes de elevadas posições na administração federal.

Vale observar que a divulgação dessas agendas de compromissos deve ser feita por um sistema informatizado próprio, também administrado pela CGU (Sistema Eletrônico de Agendas do Poder Executivo federal  e-Agendas), nos termos do Decreto nº 10.889/21, o que proporciona certa homogeneidade e consistência no modo pelo qual as informações são publicizadas.

Igualmente pertinente aqui nesta discussão a apresentação de breves considerações sobre o oferecimento de brindes, presentes e hospitalidades a agentes públicos.

O inciso I do artigo 5º da Lei de Conflito de Interesses dispõe que é vedado ao agente público federal “receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento”. O recebimento desses itens tem reconhecido potencial para gerar, ainda que no campo puramente abstrato, uma situação aparente de conflito de interesses, apta a comprometer a imagem e a reputação do agente envolvido. E, nessa toada, o próprio Código de Conduta da Alta Administração Federal reza que cabe às autoridades adotar uma postura compatível com a moralidade e decoro, “com vistas a motivar o respeito e ha confiança do público em geral”.

A regulamentação da matéria foi feita pelo já citado Decreto nº 10.889/21, que passou a trazer o conceito também do que deve ser considerado como brinde, presente ou hospitalidade.

A atenção conferida pela Lei de Conflito de Interesses e pelo respectivo Decreto regulamentador ao tema tem como objetivo propiciar contornos mais claros e definidos para a natural interlocução entre agentes públicos e privados, especialmente no recebimento e oferta de bens e serviços por parte desses atores.

Desse modo, restou definido, por exemplo, a vedação do recebimento de presentes de pessoa que tenha interesse na decisão do agente ou de colegiado que participe, bem como foi prevista a possibilidade do recebimento de brindes, os quais devem ter distribuição generalizada e alcançar o valor máximo de um por cento do teto remuneratório da administração pública.

Já no tocante às hospitalidades, o que inclui o pagamento de passagens aéreas e hospedagens, algumas orientações normativas previstas no Decreto devem ser observadas, tais como a necessária avaliação do interesse institucional da administração e o risco em potencial à integridade e à imagem do órgão. Ademais, as hospitalidades devem ser compatíveis com os valores praticados pela administração e ser divulgadas na agenda da autoridade.

É manifesto que a adoção desses padrões e regras representa um reconhecido avanço na criação de ambiente favorável à observância de preceitos éticos e inerentes à moralidade pública no âmbito da administração, com maior transparência e segurança jurídica.

Nessa direção, imperativo recordar que a instituição desses standards acaba por constituir uma necessária fonte de consulta para os setores de compliance e de relações institucionais de empresas e organizações privadas. A observância e adequada compreensão dessas normas e regulamentos é etapa essencial para que se evitem riscos reputacionais e legais aos atores envolvidos no relacionamento público-privado. Ainda, essas regras apresentam-se como valoroso elemento de inspiração para a elaboração de manuais e códigos de conduta empresariais que tratam do assunto.

Todavia, não se deve olvidar que as orientações e os princípios aqui debatidos têm sua abrangência limitada à esfera federal, o que indica a premente necessidade de que esses contornos e limites trazidos pelo Lei de Conflito de Interesses possam ser tratados, em âmbito legal ou infralegal, em estados e municípios.

A indispensável e constante atualização das regras relativas ao assunto também deve ser uma preocupação no campo legislativo e prático. Desse modo, além do natural avanço normativo do tema, com o advento de regras que possam atender a mudanças comportamentais e tecnológicas em nossa sociedade, igualmente faz-se oportuno a instituição e o aprimoramento de mecanismos de mais transparência.

Como complemento, é válido citar que, por ocasião do 23º Seminário de Ética na Gestão (junho/23), foi celebrado Acordo de Celebração entre a CGU e a CEP para troca de experiências e de informações, bem como para o aprimoramento dos normativos infralegais de conflito de interesses e para o adequado treinamento de agentes públicos, com vistas ao reforço na cultura de integridade e probidade na administração pública.

Para concluir, e nos termos expostos nos parágrafos anteriores, evidencia-se que foram notáveis as conquistas decorrentes do advento da Lei de Conflito de Interesses. Além da atribuição de relevantes papéis à Controladoria-Geral da União e à Comissão de Ética Pública, o referido diploma legal supriu uma sensível lacuna legal para um adequado tratamento do relacionamento entre organizações privadas e agentes públicos, especialmente em relação àqueles que exercem posições em níveis estratégicos do governo, com substancial contribuição para o cenário de enfrentamento à corrupção.

Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega é coordenador acadêmico do Ibmec-Brasília, corregedor-geral da Dataprev e conselheiro da Comissão de Ética Pública. Foi corregedor-geral da União/CGU e conselheiro do Coaf. É mestre em
Direito pela Universidade Católica de Brasília.

Edson Leonardo Dalescio Sá Telles é conselheiro e presidente da Comissão de Ética Pública e Secretário de Controle Interno da Presidência da República, ex-coordenador do Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro, corregedor Adjunto da Corregedoria-Geral da União/CGU e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

Consultor Júridico

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