O debate sobre a aplicação da nova Lei de Improbidade Administrativa (nº 14.230/2021) ainda contará com diversos capítulos e múltiplas decisões judiciais. A razão para tanto está na disputa entre as entidades que representam os membros do Ministério Público e da Advocacia Pública (que figuram como autores dessas ações) e aqueles que defendem os que são réus dessas ações, sobretudo a advocacia militante no direito administrativo sancionador.
Certo é que as transformações promovidas na Lei 8.429/1992 visaram ao ajuste dos instrumentos materiais e processuais utilizados na persecução dos objetivos da norma, considerando a necessidade de aperfeiçoamento de sua aplicação, “o que vinha sendo cumprido, em parte, e até onde possível, pela jurisprudência dos tribunais superiores, e especial do Superior Tribunal de Justiça, mas já chegara, em muitos casos, aos limites textuais da norma. A partir daí, impunha-se a correção e atualização do próprio texto da lei” [1], como nos ensinou o professor e ex-ministro da CGU Jorge Hage.
Uma das alterações que chamam a atenção nesse processo de atualização dos preceitos que regem o microssistema da LIA está presente no artigo 21, §4º, inserido pela Lei 14.230/2021. O dispositivo estabelece que “a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no artigo 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)” [2].
Ao fazê-lo, a nova lei repercute direta e propositalmente no regime de independência e comunicação entre as instâncias jurídico-punitivas cível-administrativa sancionatória e penal. De modo expresso, o novo texto normativo traz que, a rigor, as sentenças penais que absolvam o réu sob qualquer fundamento resultarão no impedimento imediato da pretensão punitiva pautada na Lei de Improbidade Administrativa.
O dispositivo em referência foi questionado pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) perante o Supremo Tribunal Federal, por meio de ação direta de inconstitucionalidade. A ADI 7.236 suscita o debate quanto a diversas alterações provenientes da Lei 14.230/2021, argumentando, dentre outros capítulos, pela invalidade constitucional do mencionado artigo 21, §4º, da nova LIA, pois, para o ente, amplia indevidamente os efeitos das sentenças penais absolutórias exaradas no juízo criminal e, em razão disso, fere o princípio da independência das instâncias do Direito.
Em 27 de dezembro de 2022, o dispositivo teve sua eficácia suspensa por decisão do relator do caso no STF, ministro Alexandre de Moraes, por meio de medida cautelar. Para assim ordenar, o relator colocou sob perspectiva o apontado princípio da independência entre as instâncias e o seu grau de mitigação nas hipóteses de apreciação dos mesmos atos na esfera criminal e de improbidade administrativa.
A decisão considerou e reconheceu a existência de mitigação na independência das instâncias, quando, “na instância penal, se decida pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria, casos em que essas conclusões repercutem na seara administrativa” [3]. Em seguida, o relator pondera que “a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da autonomia das instâncias”, tornando claro, portanto, que a discussão que gravita o dispositivo não se dirige à mitigação da independência das instâncias acerca do mesmo fato, mas à dimensão dessa mitigação — se restrita ou ampla.
Isso significa o reconhecimento da existência de interdependência entre as searas cível-administrativa sancionatória e penal daqueles casos já previstos em outros dispositivos legais, como no artigo 935 do Código Civil [4] e no artigo 66 do CPP, ou seja, quando sentença absolutória verifica a inexistência do fato ou a negativa da autoria (artigo 386, I e IV, CPP), mesmo após a suspensão da eficácia do artigo 21, §4º, da nova Lei de Improbidade Administrativa.
É que, conforme ressaltou o próprio relator ao proferir a decisão liminar, bem como ressalvado pelo autor da ADI 7236, inexiste dúvida quanto ao dever de flexibilizar a autonomia entre as instâncias para permitir que a esfera administrativa conheça a absolvição penal por inexistência de fato ou negativa de autoria e, consequentemente, encerre a persecução punitiva por improbidade administrativa — à medida em que o Poder Judiciário já sabe que o fato não existiu ou a sua autoria é diversa.
Já as demais hipóteses de absolvição previstas no artigo 386 do CPP, segundo a decisão do STF e de modo contrário ao pretendido pelo legislador, não possuem condições de influenciar imediatamente no deslinde da ação de improbidade administrativa, sob o fundamento de se resguardar a independência entre as instâncias.
Nessa conjuntura de alinhamento e interseção entre ambas as esferas de responsabilização, o artigo 21, §4º, da nova LIA representa marco importante. Todavia, a redação escolhida pelo legislador ao dispositivo parece não ter sido a melhor para a finalidade visada. A comunicabilidade ampla e irrestrita pretendida pelo referido dispositivo encontra obstáculos inerentes ao tratamento que o ordenamento jurídico dá a determinado fato, a depender da instância do direito tida como parâmetro de responsabilização.
É que, como se sabe, um mesmo fato pode configurar ilícito tipificado no Direito Penal, mas não encontrar previsão correspondente na esfera civil-administrativa; por outro lado, nem todo ato de improbidade administrativa configura infração penal. A compreensão dessa lógica é relevante para a leitura do artigo 21, §4º, da LIA, pois permite observar que nem toda hipótese de absolvição prevista no artigo 386 do CPP — sendo ele o paradigma de comunicabilidade da nova LIA — permite-se ser aproveitada pelo juízo da improbidade administrativa.
O inciso III do artigo 386, CPP, é interessante para ilustrar esse apontamento. Segundo ele, em caso de “não constituir o fato infração penal”, tem-se a absolvição do réu. Entretanto, a atipicidade da conduta para o direito penal não induz atipicidade da mesma para a Lei 8.429/1992 — é o caso de algumas condutas de violação a princípio da Administração Pública, como “deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades” (artigo 11, VI, Lei 8.429/1992).
Entretanto, assim como a redação do dispositivo não foi a mais apurada, também se compreende que a decisão liminar proferida para suspender o artigo 21, §4º da LIA deve ser mais bem refletida pelo Supremo quando da análise do mérito da causa. Isso porque a ideia de vincular a decisão na ação de improbidade administrativa àquela tomada na ação penal vai ao encontro da ideia de se manter ao máximo a coerência do Poder Judiciário, bem como respeitar o Direito Penal como medida mais extrema do Direito, sobre o qual recai a responsabilidade de balizar as discussões em toda a seara.
O princípio da independência entre as instâncias, quando envolvido o Direito Penal, deve ser entendido como a separação entre tudo aquilo que é e deve ser diferente, mas a vinculação entre aquilo que é igual e comum. Sendo assim, quando se está diante de decisão penal absolutória, caso as mesmas circunstâncias recaiam sobre o Direito Administrativo, deve haver a absolvição sumária também na improbidade administrativa, como na hipótese de decisão em que se reconhece a falta de provas. Já na hipótese de absolvição em razão da não configuração de crime, compreende-se que a vinculação da ação de improbidade se mostra impossível.
Denota-se que a ideia acima descrita diz respeito à vinculação entre a decisão tomada no âmbito criminal daquela proferida no âmbito do direito administrativo. Essa discussão toma outros contornos (que revelam a dita interdependência acentuada entre o Direito Penal e a improbidade administrativa) quando se discute não a vinculação, mas a influência de elementos produzidos entre as diferentes searas do direito.
Isso porque, conforme já entendeu a 5ª Turma do STJ, a independência das instâncias não significa impossibilidade de, em tese, uma esfera jurídica considerar os “elementos de persuasão” ponderados em outra esfera para absolvição do agente [5].
Com efeito, a força da comunicabilidade estrita somada ao dever de coerência imposto aos órgãos jurisdicionais e acusatórios que investigam fatos idênticos já levou o STJ a, no âmbito de ação penal, decidir favoravelmente ao réu por ausência de prova do dolo (em crime que não aceita a modalidade culposa) após considerar a absolvição em improbidade administrativa sob o mesmo fundamento [6].
Exemplo disso é o julgamento do RHC nº 173.448/DF, no qual a 5ª Turma do STJ afirmou que, embora suspensa a eficácia do artigo 21, §4º, da nova Lei de Improbidade, tem-se que “o legislador pretendeu definir ampla exceção legal à independência das esferas que, embora não autorize o encerramento da ação penal em virtude da absolvição na ação de improbidade administrativa por qualquer fundamento, revela que existem fundamentos tão relevantes que não podem ser ignorados pelas demais esferas”.
Esse cenário permite concluir que a comunicabilidade de sentença absolutória fundada em inexistência do fato ou negativa de autoria transcende a invocação do artigo 21, §4º, da nova LIA e não é prejudicada pela suspensão da eficácia do dispositivo. Além disso, a discussão quanto ao grau de mitigação da independência entre as instâncias sinaliza o caminhar em direção à coerência e à segurança jurídica, ao menos entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, quando perseguida a responsabilização pelo mesmo fato, sendo certo que os fundamentos de absolvição em uma esfera não podem ser desconsiderados por outra — ainda que não digam sobre inexistência do fato ou negativa de autoria, hipóteses em que, no caso concreto, gozarão do mínimo poder de persuasão do juízo.
A conclusão, portanto, é a de que a ampliação da comunicabilidade da sentença absolutória, prevista no artigo 21, §4º, da nova Lei de Improbidade Administrativa, consubstancia escolha legislativa e imperativo de coerência e racionalidade na interseção entre o Direito Penal e Administrativo Sancionador, em benefício da pessoa sobre a qual recai o poder investigatório do Estado. É necessário, contudo, ressalvar pontuais hipóteses em que o intercâmbio da sentença de absolvição fica impossibilitado pela natureza de seu fundamento, oportunidades em que, certamente, a absolvição penal será elemento relevante na ação de improbidade administrativa, mas não resultará em automática absolvição nesse âmbito.
Miguel Filipi Pimentel Novaes é advogado, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e sócio do escritório Ferraro, Rocha e Novaes Advogados.
Gean Carlos Ferreira de M. Aguiar é advogado, pós-graduado em Direito Processual pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais, com ênfase em Direito Processual Civil. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB-DF e sócio do escritório Ferraro, Rocha e Novaes Advogados.