O juiz de garantias e suas implicações no processo penal

Em importantíssima decisão proferida no último dia 23, foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal que os tribunais deverão implementar, no prazo máximo de dois anos, a figura do juiz de garantias. Parte das inovações trazidas pela Lei nº 13.964/19, no entanto, sofreram significativas modificações, esvaziando, em parte, a função dessa importante proteção contra o arbítrio.

Aos tribunais foi conferida maior autonomia para definir a estrutura e organizar o funcionamento dos respectivos juízos de garantia, de modo a não prejudicar as ações penais em andamento e não sobrecarregar os magistrados que atuam sozinhos em suas comarcas. Passemos, pois, à análise dos pontos específicos enfrentados pelo STF nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

Por maioria, os ministros fizeram interpretação conforme a Constituição do artigo 3º-A do CPP, determinando que o juiz, pontualmente, e nos limites da legalidade, poderá determinar diligências suplementares para dirimir dúvida sobre ponto relevante, no momento de proferir decisão. Nesse sentido, o STF, ao invés de considerar a revogação artigo 156 do CPP por incompatibilidade com o artigo 3º-A, entendeu por sua permanência no ordenamento jurídico com limitação dos efeitos do artigo trazido pela Lei nº 13.964/19, consagrando a estrutura do sistema acusatório e a vedação da atuação do juiz durante a fase investigatória. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (CPP, artigo 3º-A, in verbis). Combinado com o artigo 156 do CPP, fica admitida, em caráter excepcional, a determinação pelo juiz, ex officio, da produção de provas relevantes e urgentes, necessárias ao esclarecimento da verdade.

No que tange ao artigo 3º-B do CPP, com apenas o voto vencido do ministro Luiz Fux, a Suprema Corte entendeu pela obrigatoriedade da implementação do juiz de garantias, por todos os tribunais, no prazo de 12 meses a partir da publicação do acórdão, sendo permitida uma única prorrogação por igual período, à critério do Conselho Nacional de Justiça, a quem também incumbirá estabelecer as diretrizes gerais do instituto.

Por sua vez, ao que se refere à constitucionalidade dos incisos IV, VII, VIII e IX, do artigo 3º-B, do CPP, por unanimidade, entendeu-se pela legalidade do controle judicial aos atos de investigação, determinando prazo de 90 dias, a partir da publicação do acórdão, para encaminhamento de todos os procedimentos investigatórios criminais e seus congêneres, independentemente da nomenclatura, ao respectivo juiz natural, ainda que não se tenha o juiz das garantias.

Outro ponto que merece destaque é a interpretação conforme a Constituição do artigo 3º-B, incisos VI e VII, quanto à possibilidade de o juiz prorrogar a prisão provisória, ou outra medida cautelar, bem como substituí-la ou revogá-la; e decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, desde que respeitado o direito fundamental ao contraditório, preferencialmente em audiência pública e oral.

Diferentemente do que previa a Lei nº 13.964/19, quem receberá a denúncia ou queixa será o juiz da instrução, e não o juiz de garantias, cuja competência cessará com o oferecimento da peça acusatória. Entendeu também o STF pela inconstitucionalidade da exclusão física dos autos do inquérito, devendo o caderno investigatório permanecer fisicamente anexado ao processo.

A corte reviu a vedação absoluta de realização de videoconferência na audiência presidida pelo juiz de garantias do preso em flagrante ou provisório. Previa o artigo 3º-B, § 1º, que: “o preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência“. Para o STF será autorizada, excepcionalmente, sua realização, caso haja impossibilidade fática da audiência presencial.

Por sua vez, no que concerne ao instituto do “prazo com sanção”, estabelecido pelo § 2º do artigo 3º-B, o STF determinou a inconstitucionalidade da limitação de prorrogação por apenas uma vez, do inquérito policial de investigado preso há mais de 15 dias, sob pena de relaxamento da prisão. Admitiu, portanto, a prorrogação ilimitada do inquérito de preso, sem a ameaça do relaxamento da prisão por excesso de prazo, nos termos do que já fora decidido na ADI 6.581. Em decorrência de tal entendimento, também ficou declarada a inconstitucionalidade do § 4º do artigo 310, que estabelecia: “Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva”.

Também foi decidido que o juiz de garantias não se aplica aos processos de competência originária dos tribunais, júri popular, violência doméstica e de competência dos Juizados Especiais Criminais. Aplica-se, contudo, aos processos de competência da Justiça Eleitoral, que tinham sido excluídos pela lei.

Decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 3º-C, que dizia em seu texto: “A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código”, bem como de seus §§ 3º e 4º, os quais, respectivamente, previam: “Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias”.

Da mesma forma, entendeu pela incompatibilidade do texto do artigo 3º-D e seu parágrafo único com o ordenamento jurídico, cuja redação dispunha: “O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo” e “Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo”.

Quanto ao artigo 3º-E do CPP, decidiu a corte substituir o verbete “designado” por “investido”. Por fim, declarou a constitucionalidade do artigo 3º, F, que versa sobre o dever de o juiz de garantias assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos de imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade penal, civil e administrativa.

Mudança significativa ocorreu na interpretação do artigo 28, CPP. Determinava o texto legal que: “Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei”. Desse modo, quem detinha o poder decisório sobre o arquivamento do inquérito era o órgão ministerial, cabendo ao juiz apenas homologar a decisão ou submetê-la à revisão da instância competente do Ministério Público.

Com o novo entendimento da Suprema Corte, o Ministério Público passa a pedir o arquivamento do inquérito ao juiz da instrução, que efetivamente determinará o arquivamento ou remeterá os autos à instância revisora do Ministério Público. Ainda nos termos do artigo 28, § 1º, do CPP, depois de requerido o arquivamento pelo órgão ministerial e determinado pelo juiz da instrução, poderá a vítima ou seu representante legal, no prazo de 30 dias da comunicação do arquivamento, submeter a matéria à instância revisora do Ministério Público, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.

Quanto ao acordo de não persecução penal, entendeu o STF pela constitucionalidade do artigo 28-A e incisos, do CPP. Por sua vez, entendeu pela inconstitucionalidade do § 5º do artigo 157, também do CPP, que versava acerca da impossibilidade de proferir sentença ou acórdão o juiz tivesse conhecimento do conteúdo de prova declarada ilícita.

Em que pesem algumas críticas quanto à modificação pelo STF de dispositivos que já tinham sido debatidos, votados e aprovados pelo Poder Legislativo, e que não tinham nenhuma efetiva inconstitucionalidade, a revelar novamente invasão de competência do legislador, a manutenção da figura do juiz de garantias implica em importante avanço civilizatório para o processo penal, afastando a possibilidade de comprometimento psicológico do juiz que determinou a prisão ou medidas cautelares restritivas, com a procedência da acusação.

Não é tarefa fácil a qualquer pessoa, nisso incluídos os magistrados, absolver um réu cuja prisão provisória decretou e manteve até a véspera da sentença. Por maior que seja o espírito de justiça, existe uma pressão ou autossugestão interna pela condenação e consequente manutenção do status quo do preso, muitas vezes condenado antecipadamente mediante um processo psicológico formado antes mesmo do processo, notadamente em casos de maior publicidade. O juiz de garantias é, assim, maior garantia de imparcialidade na prestação jurisdicional, ao menos na primeira instância, já que os detentores de foro privilegiado não terão a mesma proteção.

Fernando Capez é procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

Consultor Júridico

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