O novo white paper do Fórum Econômico Mundial sobre criptoativos

Seguindo a linha de nossa última coluna divulgada neste espaço[1], foi publicado, no mês de maio passado, o novo “white paper” do Fórum Econômico Mundial sobre experiências e recomendações para a regulação de criptoativos[2].

De modo amplo, o texto define criptoativo como “um ativo digital com uso financeiro que é habilitado por uma tecnologia ledger distribuída e protegido criptograficamente”, excluindo, expressamente, de seu alcance, as moedas digitais de bancos centrais (CBDCs),

O relatório da organização mundial é dividido em quatro partes, sublinhando a necessidade de uma regulamentação global, os desafios que se impõem a tal regulamentação, experiências locais de regulamentação e, finalmente, conclusões e recomendações.

Em todas as partes do texto fica nítida a dificuldade, por nós também apontada, de lidar com a nova tecnologia pelas lentes, métodos e estruturas tradicionais de regulação. Como enuncia a chamada do documento, “how best to regulate something that’s borderless, open-source, decentralized and constantly evolving?”

Quanto ao primeiro ponto, referente à necessidade de uma regulação global, são rememoradas algumas características não necessariamente exclusivas da tecnologia cripto, e que muito antes de seu desenvolvimento já prendiam a atenção de juristas, sociólogos, políticos e economistas, os quais ponderavam sobre as armas disponíveis para autoridades locais fazerem frente a desafios cujas causas e circunstâncias eram sobretudo globalizadas[3].

O diagnóstico do Fórum Econômico Mundial aponta, contudo, que fatores intrínsecos à tecnologia que move os criptoativos acabam por estender as dificuldades até um nível crítico de tensão.

Assim, enquanto na economia tradicional, ainda que globalizada, é possível identificar um ou vários locais em que se localizam as partes que transacionam e eventuais intermediários (pois mesmo os bancos internacionais com transações multicontinentais possuem sedes e agências localizáveis), o mesmo raciocínio não necessariamente se aplica aos criptoativos, sendo difícil encontrar até mesmo a legislação competente para lidar com transações peer-to-peer que podem correr o globo sem intermediários.

Ainda quando há um intermediário pré-definido, a forma como se desenvolve a tecnologia permite que as organizações se mantenham formalmente descentralizadas, sendo às vezes difícil encontrar um centro específico de operações[4]. Por ora, muitos países têm optado por manter a regulação centrada na natureza do bem, visto como um bem imaterial móvel, seguindo, assim, para diversos efeitos, a regulação do domicílio de seu detentor — o que se aplica, inclusive, ao caso brasileiro no tocante às regras tributárias.

Todavia, mesmo essa suposição pode enfrentar dificuldades ao ser concretamente aplicada, tendo em vista a existência de mecanismos que dificultam a identificação do detentor do bem, como protocolos voltados para a proteção contra essa identificação, a existência de wallets privadas não ligadas a uma identidade reconhecida, e as próprias corretoras descentralizadas (DEX — descentralized exchange), que se subtraem à possibilidade de responsabilização por políticas de identificação do cliente.

A estas dificuldades se soma também uma outra bastante antiga e agora ampliada, exposta, por exemplo, nos julgamentos dos crimes de guerra[5], referente à dificuldade de responsabilização individual em uma entidade suficientemente extensa e, como agora se põe, descentralizada.

Diferente das organizações comerciais tradicionais, a nova forma descentralizada pode trazer ponderações sobre responsabilizações que vão além de uma “diretoria” formalmente apontada e responsável, donde qualquer punição a um agente específico poderá potencialmente acarretar um certo sentimento insatisfatório de injustiça decorrente da liquefação dessa formalização.

Todas essas dificuldades, a recomendar a necessidade de regulamentação global, existem mesmo sem uma maior integração do mercado cripto com as instituições financeiras tradicionais, o que progressivamente deve ocorrer, levando a riscos de contágio e concentração de mercado que fatalmente atrairão o peso da economia real, a qual deve, assim, estar preparada para reagir em um nível global.

Definidos os desafios globais apresentados pela nova tecnologia, também a própria regulação em si apresentará dificuldades, especialmente na medida em que há uma falta de padronização de definições e taxonomia sobre o tema. Afinal, o bitcoin é uma moeda, um investimento, uma commodity? E o ether e sua plataforma? “Esfirra com orégano é minipizza?” [6]

A depender das definições iniciais surgirão abordagens muito diversas sobre a forma regulatória, o que acaba permitindo com que os players do mercado explorem brechas em uma verdadeira arbitragem entre diversas regulações, inclusive com o enfraquecimento dos mecanismos de supervisão e fiscalização que podem ser implementados satisfatoriamente em algumas jurisdições, mas não em todas[7].

Analisando, nesse aspecto, as diferentes formas já adotadas por países do globo para a regulação do mercado, são apontados 5 modelos: 1 – regulação com base em princípios, 2- regulação com base no risco; 3 – regulação “ágil”; 4 – autorregulação e corregulação; 5 – regulação pelo “enforcement”.

A primeira forma de regulação se baseia na definição de princípio gerais e resultados com eles pretendidos. De modo amplo, acaba se servindo mais de padrões da própria indústria e mercado do que de regras formalmente impositivas, denotando, assim, uma maior flexibilidade e potencial incentivo à inovação responsável, gerando, contudo, possíveis incertezas em regiões de penumbra e dificuldades no feedback dos resultados atingidos. Destaca-se a legislação de Liechtenstein e, em certa medida, do Reino Unido, como voltadas a uma regulação por princípios.

Pela regulação com base no risco, há uma definição inicial de uma matriz de riscos dos diversos tipos de criptoativos e, a partir de então, um maior ou menor nível de intervenção, conforme seja maior ou menor o risco estimado. A vantagem desse tipo de abordagem é a aplicação eficiente de recursos[8], bem como a segurança dada pela regulação específica nos casos de maior risco. São exemplos a norma de proteção ao consumidor no trato com criptoativos em Singapura, as normas de combate à lavagem de dinheiro no Reino Unido e as de proteção ao investidor em Hong Kong.

A abordagem dada pela regulação “ágil”, ao invés de focar em regras, constrói um ecossistema descentralizado responsivo e iterativo, com participações de entidades não governamentais através de guidances, sandboxes etc, os quais permitem novos desenvolvimentos com soluções localizadas. É uma abordagem mais flexível e rápida, contudo, gerando certa incerteza regulatória e necessidade de atitudes cooperativas. Entre os diversos países do mundo a adotar a prática, o relatório cita a Índia, a União Europeia, e poderíamos incluir, o Brasil, em especial na regulação dada pela CVM.

Pela auto e corregulação, a própria indústria se uniria para formular standards e normas de conduta, ou então formar uma organização não governamental, auxiliando na montagem do sistema regulatório com a supervisão do regulador estatal. Um possível risco dessa abordagem seria a possibilidade de captura da entidade e a falta de uma fiscalização adequada, enquanto os benefícios claros seriam o estímulo à inovação e o potencial ganho de confiança no ecossistema cripto. Em certo sentido, a lei sobre corretoras de criptoativos japonesa seria um exemplo desse tipo, ao outorgar poderes regulatórios à associação do setor.

Por fim, a regulação por “enforcement” seria aquela pautada por ações sancionatórias, especialmente utilizadas pela SEC americana, em que os casos punidos acabam servindo de exemplo para os players no futuro, sob o argumento de que as leis já existentes para outros setores também podem e devem ser aplicadas para o mercado cripto. Sem expressar em todas as letras, o relatório deixa claro que esse tipo de abordagem não é recomendável, justamente por fazer precluir exatamente a questão central sobre o como e se se deve regular especificamente o setor cripto. O benefício, contudo, seria a formação de uma jurisprudência sobre os casos e o reforço da responsabilização dos agentes.

Em um balanço dos cinco tipos de abordagens comentadas, a regulação por princípios e a regulação “ágil” teriam uma maior afinidade com a promoção da inovação, enquanto a regulamentação pelo risco e pelo “enforcement” trariam uma maior eficácia em sua aplicação, com vantagem para a primeira que permitiria também uma maior certeza para os negócios.

O relatório conclui então com recomendações para as organizações internacionais, para as autoridades reguladoras locais e para a indústria como um todo. Para as primeiras, urge promover um entendimento taxonômico harmonioso dos criptoativos, e, então, de acordo com cada ativo, estabelecer leis modelo e melhores práticas, para tanto sendo necessário encorajar o compartilhamento de dados entre os diversos players. Para as autoridades reguladoras, a grande recomendação seria se basear nas melhores práticas do próprio mercado já existente fora do mundo cripto, permitindo a coordenação entre diversos setores e agências, para promover a certeza regulatória e, mesmo, usar a tecnologia que favoreça, pelo seu próprio design, os objetivos da regulação.

Por fim, à indústria é recomendado colaborar com o regulador, criando standards nos diversos setores de fricção, como o do direito de consumidor e o da proteção de dados, bem como compartilhar as melhores práticas e promover uma inovação tecnológica responsável, especialmente voltada para a proteção do consumidor, considerando seu grau de maturidade.

Como se demonstra, não há exatamente um único “pathway” para a regulação, e nem tampouco os “pathways” existentes são certos, seguros e recomendáveis sem uma alta dose de ponderação. Na busca pelas melhores formas de lidar com os desafios impostos pelos criptoativos, a única certeza é a de que decisões formal e materialmente coerentes não podem ser encontradas ad hoc, e nem tampouco de forma vinculada às práticas analógicas já existentes.               

Alexandre Gonçalves Kassama é tabelião de notas em São Paulo (SP), membro da Comissão da Academia Notarial Americana da União Internacional dos Notários Latinos, mestre em Direito Penal, ex-defensor Público do Estado e pesquisador do Legal Grounds Institute.

Consultor Júridico

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