O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, é um texto impecável

Encenada pela primeira vez em 29 de junho de 1960 no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, a peça O Pagador de Promessas, de Dias Gomes (1922-1999), contou na estreia com protagonistas importantíssimos da dramaturgia nacional, a exemplo de Leonardo Vilar, Natália Timberg, Cleyde Yanconis, Stênio Garcia, Maurício Nabuco, entre outros.

A peça é multipremiada, inclusive levando a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1962, em sua versão para o cinema. É um texto que desafia o tempo, é sempre atual, com simplicidade narrativa, impecável. Nenhuma palavra a mais. Nenhuma palavra a menos. Na reminiscência de nosso teatro penso que O Pagador de Promessas seja a peça que melhor enfrenta problemas permanentes de nossa condição brasileira. Está em forma de livro em edição da Bertrand Brasil, que é a que uso para a composição dos Embargos Culturais dessa semana.

Trata-se da estória de Zé do Burro, simplório homem do campo, que possuía uma pequena propriedade rural. Era inseparável de seu burro, Nicolau, em favor de quem fez uma promessa, como comprometimento ao restabelecimento do animal após um acidente. Havia feito uma promessa para Santa Bárbara. A promessa consistia em carregar uma pesada cruz, por mais de 300 km pelo interior da Bahia, presumivelmente até Salvador, justamente para a Igreja da Santa, em dia de festa a sua homenagem.

O problema teológico que dá vida à peça decorre do fato de que a promessa fora feita em um terreiro de candomblé, para Iansã, que no sincretismo religioso brasileiro representa justamente Santa Bárbara. Lê-se na entrada do Segundo Quadro que Iansã é a Santa Bárbara Nagô. A promessa é simples: Zé do Burro lembrou-se que Iansã era Santa Bárbara e comprometeu-se, se o burro ficasse bom, que em agradecimento carregaria uma cruz de madeira, da roça até a Igreja de Santa Bárbara, no dia de sua festa, “uma cruz tão pesada como a de Cristo”.

Zé do Burro não havia atentado para o fato de que o sincretismo era abominado pela Igreja, o que é fundamental na construção do problema do enredo. O Padre, radical e intransigente, não permitiu que Zé do Burro entrasse na Igreja com a cruz: a promessa, na visão da autoridade religiosa local, decorria de um erro na fé, e respondia a uma tentação que precisava ser expiada. Um problema de hermenêutica teológica transformou-se numa tragédia.

Zé do Burro insistia que fizera a promessa para Santa Bárbara. O Padre respondia que a promessa fora feita para Iansã. Explodindo, o Padre argumentava que Santa Bárbara era uma santa católica, que Zé do Burro havia ido a um ritual fetichista, que havia invocado uma falsa divindade, e que fora a essa falta divindade que prometera o sacrifício.

Fechou as portas da Igreja em dia de festa. O Sacristão (também limitadíssimo) segue as ordens do Padre, e torna-se cúmplice da resistência teológica imposta ao promitente. O Padre também não acredita que tamanha e difícil promessa fora feita por um burro. Segundo Zé, no entanto, “Nicolau não é um burro como os outros (…) é um burro com alma de gente”. O Padre condenava a promessa, na perspectiva que o promitente buscava o milagre, ao invés de buscar a Deus.

Zé do Burro, no entanto, não arreda o pé de seu compromisso. Sua atitude fortíssima de adesão aos propósitos bem ilustra o tema da ética da convicção, que Max Weber discorre em A Política como Vocação. Em oposição à ética da responsabilidade (que é pragmática e consequencialista) a ética da convicção é centrada em valores, princípios e crenças pessoais. Não interessam as consequências práticas da ação deliberada. Zé do Burro, nesse sentido, é um tipo ideal weberiano. Zé do Burro insistia que nunca podemos deixar de cumprir uma promessa. Para Zé do Burro, o Padre não podia fechar as portas da Igreja porque a Igreja não era do Padre, a Igreja é de Deus.

Na peça ainda há Rosa, a esposa saturada e dividida, ambígua com o casamento, raivosa com a falta de ciúmes do marido, obcecado com a promessa feita em favor do burro. Leitor ou espectador chocam-se ou comemoram a vingança de Rosa, em forma de traição. Lembra-nos Dias Gomes, a propósito da traição de Rosa, que “há apenas a imensa fraqueza da criatura humana no momento das grandes decisões”. Forte, não?

Zé do Burro, ao intuir a traição (porque a traição é intuída e não provada) tem o rosto coberto de sombras, “e ele busca nos olhos de Rosa uma explicação (…) ela não o fita”. Lírico e dolorido, não? Segundo Dias Gomes, no olhar de Zé do Burro “lê-se a dúvida, a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar”. Quem já viveu isso? Dolorido, não? Em favor de Rosa um arrependimento que parece sincero, para quem o que havia acontecido não acontecera, pois se foi, fora uma provocação divina. Argumento irrespondível porque traduz o determinismo em sua dimensão mais absoluta.

Há também um cafetão (frio e brutal na sua profissão), uma prostituta explorada (cujo amor pelo cafetão denota uma degradação voluntária), um repórter, um fotógrafo, um guarda e tipos vários da população local, de um Brasil distante. O policial, à primeira vista, segundo o autor da peça, tanto poderia ser o representante da lei como o fugitivo da lei.

O Pagador de Promessas trata de temas variados como o sincretismo religioso, a hierarquia da Igreja, a oposição sistemática do clero às manifestações religiosas ditas populares, a inocência do cidadão humilde que acredita na polícia, e inclusive trata de reforma agrária, maculou Dias Gomes como comunista, o que o dramaturgo nunca negou. Zé do Burro dividiu metade de suas terras entre os camponeses que trabalhavam para ele, também como forma de cumprimento da promessa. Questionado pelo repórter se era a favor da reforma agrária Zé do Burro respondia que não sabia do que se tratava, mas que achava que a terra deveria ser de quem trabalha.

O fim (que não conto aqui, em respeito ao leitor) é indescritível, ainda que verossímil. Na última cena tem-se uma transposição para nossa cultura e ambiente os grandes dilemas e problemas do teatro clássico, no contexto de tragédias que até hoje nos arrebatam. Não precisamos (necessariamente) de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, ou de irmos para Atenas, ou de viajarmos para o século IV a. C. para nos confrontarmos com nossa condição. Na Bahia, não tão longe de onde escrevo (Brasília); em 1960 (não faz tanto tempo assim), contemplamos em O Pagador de Promessas um resumo lírico de algumas de nossas contradições e angústias.

Em tempo, leiam também as memórias de Dias Gomes, Apenas um Subversivo, agora reeditada pela Bertrand Brasil. Dias Gomes inclusive explica a inspiração para a peça, que de algum modo se relaciona a uma promessa feita pela própria mãe, que prometera assistir a uma missa em cada uma das igrejas de Salvador.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

Consultor Júridico

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