O positivismo (jurídico) à brasileira

O amor vem por princípio, a ordem por base

O progresso é que deve vir por fim

Desprezaste esta lei de Auguste Comte

E foste ser feliz longe de mim

Os versos do poeta e músico popular Noel Rosa (1920 – 1937), gravados em 1933, fazem ecoar o lema da doutrina positivista de Augusto Comte (1798 — 1857), conhecido como o pai da sociologia. Como o leitor sabe, vêm daí as palavras eternizadas na bandeira nacional, adotada oficialmente em 19 de novembro de 1889, 4 dias após a Proclamação da República. Este símbolo representa, nesse sentido, a influência que o positivismo possui na formação do Brasil moderno. Como comenta Boris Fausto, os jovens oficiais que se reuniram em torno de Floriano Peixoto haviam frequentado a Escola Militar e receberam, portanto, forte influência positivista. A Primeira República, resultante do golpe militar, nas palavras do historiador, “deveria ter ordem e progresso. Progresso significa, como vimos, a modernização da sociedade pela ampliação dos conhecimentos técnicos, do crescimento da indústria, da expansão das comunicações”1.

Em que pese este positivismo ser hoje não mais do que uma doutrina empoeirada na história das ideias, é curioso pensar que seus ecos na vida pública brasileira entre a queles que bradam por “ordem e progresso” respaldam tão somente o golpismo dos militares de antanho. A crença na ciência moderna e a crítica ao pensamento teológico de Comte, em contrapartida, foram convertidas em negacionismo científico e em defesa do neopentecostalismo demagógico, como pudemos perceber recentemente durante a pandemia de Covid-19 e a partir de discursos fundamentalistas que invadem o debate público nacional.

Quando falamos de positivismo e de sua repercussão na vida institucional brasileira, no entanto, não é exatamente com as ideias comteanas que nós, juristas do século XXI, devemos nos preocupar. O positivismo a que nos referimos em cursos, manuais e teses é o positivismo jurídico de autores como Hans Kelsen e H.L.A Hart, o qual guarda muito pouca ou quase nenhuma relação epistemológica com o de Comte.

Se bem que, tal como nossos militares e políticos traem a própria doutrina a que fazem eco ao renegarem a relevância da ciência e da pesquisa, revelando um total desconhecimento do legado que (ainda, para o azar da república) representam, é bem verdade que o positivismo jurídico do século XX também é vítima de compreensões contraditórias em relação aos seus próprios propósitos (neste caso, para o azar da teoria do direito e da prática jurídica). Explico-me.

É conhecida por todos os leitores desta coluna a crítica desenvolvida pelo professor Lenio Streck, principalmente na obra Verdade e Consenso, ao assim chamado neoconstitucionalismo brasileiro. A crítica se dá, em síntese, no sentido de que a doutrina jurídica, intencionando desenvolver novas abordagens diante do texto constitucional de 1988, importou de maneira pouco crítica e com baixo rigor teorias sobre o tratamento dos princípios jurídicos e da atividade jurisdicional no novo horizonte democrático que então exsurgia2. De acordo com a perspectiva criticada, o novo direito constitucional seria incompatível com a metodologia formalista do positivismo, a qual, por sua vez, implicaria a exclusão da moral (entendida em sentido bastante amplo) por parte dos julgadores e do núcleo normativo do próprio direito.

De acordo com esta imagem, portanto, o positivismo jurídico, doutrina a ser combatida, pressuporia a ideia de um “juiz boca da lei” e de regras jurídicas cujo teor normativo seria incontestável pelos aplicadores do direito. Quem de nós, afinal, não cursou a disciplina de TGD – Teoria Geral do Direito na graduação e não ouviu de seu professor o discurso padrão sobre a “pirâmide kelseniana”, a “separação do direito e da moral”, a referida ideia de juiz boca da lei e, em alguns casos, a responsabilização do positivismo jurídico pela ascensão do nazifascismo?

Com efeito, em contrapartida a esta concepção fria e insensível do direito, que o desvincularia do ideal de justiça, formulou-se um contraponto: o pós-positivismo. Este, por sua vez, reconectaria o direito à moral a partir da ideia de princípios e/ou valores que se incorporaram ao sistema jurídico e que, por serem subjetivos como a própria moralidade (em contraposição ao objetivismo silogístico das regras), estariam sujeitos ao procedimento de “ponderação”.

Essa é exatamente a compreensão exposta por Luíz Roberto Barroso em sua obra O novo direito constitucional brasileiro. Para o autor, “o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto”. Barroso explica que o método de trabalho dos princípios é o da ponderação, que “consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicada a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas”. Admite ainda o autor que “a estrutura interna do raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja sempre associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas.”

A inclusão de interesses, bens, valores ou normas na argumentação jurídica e a equiparação destes a princípios, os quais devem ser sopesados para “a realização da justiça no caso concreto”, ao fim e ao cabo, não poderia ter outra natureza que não a particular, subjetiva. Por esse motivo, é reconhecida por Barroso uma margem de discricionariedade judicial: “no estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial. Tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer”. Por fim, o autor salienta que este “novo paradigma” “deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin e aos desenvolvimentos a ela dados por Robert Alexy3.

A sedimentação paulatina destas noções vagas no imaginário jurídico brasileiro, assimiladas como se fossem técnicas inovadoras, contribuiu para a formação de um cenário de relativismo judicial, como corretamente aponta Streck. Afinal, o que distingue conceitualmente princípios de valores, bens, interesses (seriam estes as “vozes na sociedade” mencionadas recentemente pelo Min. André Mendonça?) e normas? Diante desta confusão, constatamos uma prática judicial na qual estas definições são utilizadas de maneira aleatória a depender de cada caso e, muitas vezes, em prejuízo de garantias constitucionais positivadas4.

O problema central do neoconstitucionalismo está no fato de que ele formulou remédios conceituais para uma enfermidade teórica que foi equivocadamente diagnosticada. Afinal, a imagem do senso comum sobre o positivismo jurídico é falsa. Nossas aulas de TGD que versam sobre a neutralidade moral do positivismo e do objetivismo jurídico de Kelsen nos ensinaram errado. O austríaco nunca defendeu tal postura e tampouco o fez Hart. Ambos argumentaram, cada um a seu modo, a favor da tese da discricionariedade judicial, segundo a qual, ao menos em determinados casos, o órgão responsável pela aplicação do direito cria normas cujo fundamento não está contido no próprio sistema de regras, mas em juízos que ultrapassam os contornos do direito vigente (moral, política, economia…). Tampouco Kelsen e Hart, embora autoadjetivados como positivistas, compartilham as mesmas referências epistemológicas5. Importante destacar, também, que a corrente positivista do direito não se encerra nestes dois autores, muito embora eles (e principalmente Hart) sejam os marcos do positivismo jurídico contemporâneo.

Na medida em que se contrapõe ao positivismo a partir de uma leitura contraditória deste, as teses neoconstitucionalistas e pós-positivistas geram um resultado prático idêntico: a discricionariedade judicial. Em que pesem críticas que devem ser feitas aos positivistas (e, por óbvio, as há), não se pode dizer que Kelsen e Hart não prezavam pelo rigor conceitual, o que, todavia, passa longe da dogmática brasileira que cristalizou no cotidiano jurídico jargões e pseudoconceitos sem qualquer densidade teórica.

O mundo me condena e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome! […]” canta Noel Rosa sobre o filósofo marginalizado. Assim também ocorre com o positivismo. Nesse sentido, com o objetivo de contribuir para a compreensão desta corrente teórica que, para o bem ou para o mal, está enraizada na cultura institucional e jurídica brasileira, eu e Luísa Giuliani oferecemos, por meio do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos, coordenado pelo prof. Lenio, o Grupo de Estudo Positivismo (jurídico): uma introdução. Nossa proposta é a de abordar o pano de fundo das teorias positivistas do século XX, resgatando a relação desta corrente com o desenvolvimento da filosofia moderna. Na medida em que visitarmos as bases do “paradigma positivista”, avançaremos rumo ao positivismo enquanto teoria jurídica, chegando a Kelsen e a Hart e apontando as implicações de suas obras no debate contemporâneo de filosofia do direito. Os encontros serão quinzenais às quartas-feiras, 19:00, de maneira online. Convidamos a todos da comunidade acadêmica que tenham interesse no tema e disposição para ler e debater. Para mais informações, entrar em contato com giuliani.luisa@gmail.com .


1 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019, p. 212.

2 Ver também, nesse sentido, o verbete “Neoconstitucionalismo” em STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Editora Livramento, 2020, p. 243 e ss.

3BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 148, 149, 152.

4 Nesse sentido, ver: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

5 Sobre Kelsen, ver artigo recentemente publicado por mim e pelo professor Lenio Streck: < http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/29599> e também < https://estadodaarte.estadao.com.br/pureza-kelsen-streck/>

Luã Jung é advogado, doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS (bolsa Capes), professor do programa de pós-graduação em Direito da Unesa e membro do Dasein — Núcleo de estudos hermenêuticos.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor