Obstáculos epistemológicos e construção de tese em HC

Nos anos 1980, estudávamos, no mestrado, as obras de Gaston Bachelard e os “obstáculos epistemológicos”. Era a belle époque da pós. Quem ainda conhece ou ouviu falar de Bachelard nestes tempos de direito desenhado e de tese sobre agravo ou cheque? Ou de teses de doutorado que ainda sustentam, contra legem, o livre convencimento?

Falo dos “obstáculos” para demonstrar como existem entraves à compreensão de um fenômeno. E como há formas de os evitar. Diogo Bacha, Marcelo Cattoni e eu (ver aqui) explicitamos isso em texto aqui na ConJur.

Um bom exemplo sobre “obstáculos epistemológicos” pode ser o caso do fenômeno chamado “cultura dos precedentes”. O que isso tem a ver com o julgamento do habeas corpus e da discussão da tese (precedente) sobre abordagem policial, por exemplo?

Tudo.

Já se criou, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, uma capa de sentido praticamente indestrutível. De forma criterialista (refiro-me ao aguilhão semântico dworkiniano), estabeleceu-se inclusive um conceito de precedente qualificado. Algo como “precedente em sentido forte…”.

 O outro “precedente” seria apenas “aconselhativo”, eufemisticamente apelidado de “persuasivo” (só não sei se “persuasivo” é no sentido forte ou fraco, para usar a linguagem do aguilhão semântico).

Mas isso tudo tem um contexto. A dogmática jurídica prevalente normalizou o criterialismo. Um deles é o de que os tribunais superiores são qualificados para fazer precedentes pro futuro. O que isto quer dizer? Simples: em vez de olhar para o passado, os tribunais buscam construir respostas antes das perguntas. Essa pretensão sempre foi denunciada por autores como Fr. Müller — para falar só deste — no sentido de que é o positivismo que pretende dar respostas gerais — antecipadoras. De um outro modo, Castanheira Neves lutava contra isso também.

Comecemos daí — e o faço com toda a lhaneza com que venho tratando dos debates jurídicos. O aguilhão semântico é uni presente: vemos isso acontecer no exemplo do conceito de “flagrante”. Ora, o que é um flagrante em 2021? É o mesmo flagrante de, digamos, 1943? Ou 1964? Por que digo que isso é um problema tipicamente positivista? Porque o positivismo — e aqui está o ponto —, ainda que não se saiba (ou se reconheça) positivismo, trata todos os conceitos jurídicos como se fossem criteriais, isto é, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica. Com todo o respeito acadêmico, permito-me dizer que, sem compreender esse fenômeno, o Direito andará em círculos.

O caso do Habeas Corpus e a busca por uma tese sobre racismo na abordagem policial que tramita no STF é um bom (ou mau) exemplo de como não se deve procurar respostas antes das perguntas.

Habeas Corpus serve para resolver um problema de violação de direitos. Pretender que um tribunal — mesmo sendo o Supremo Tribunal —busque todas as respostas antes das perguntas (os casos) é pedir demais do direito. Até porque o STF deve decidir sobre o que passou e não sobre o que vai passar.

Escrevemos, Cattoni, Diogo e eu:

“A função do Poder Judiciário é levar os elementos e as circunstâncias do caso concreto a sério para, enfim, realizar o julgamento. A edição de enunciados com a pretensão de que se tornem, ex ante, precedentes e abarquem casos futuros desconsidera o fato de que, em primeiro lugar, os precedentes são relevantes julgamentos realizados no passado que se tornam autoridade argumentativa — de forma contingencial — na discussão presente de um caso concreto. Em segundo lugar, desconsidera também que as “teses”, como textos normativos que são, não prescindem jamais do processo de interpretação/concretização que só se dará analisando os casos concretos e levando-os a sério.

Levar o caso concreto a sério é conhecê-lo nas suas mínimas circunstâncias e o examinar. Não foi o caso. O ministro Fachin não conheceu (d)o caso. Se já é indevido fazer uma “norma geral”‘ sobre um caso de Habeas Corpus, muito mais grave é estabelecer uma tese (norma geral) a parte de um caso que a Corte sequer conheceu.

De todo modo, insisto para que removamos os obstáculos epistemológicos da presente discussão e possamos responder: que sistema de justiça é essa que leva um caso desses à Suprema Corte? Um jovem com algumas gramas de maconha é perfilhado, preso e condenado a sete anos de reclusão e isso vai para o STF? Como isso não foi resolvido antes?

E, finalmente: que sistema de justiça é esse que necessita que a Suprema Corte faça uma “lei geral” para dizer que a polícia não deve fazer perfilamentos com conotação racial?

Que sistema é esse que o STF tem de fazer uma tese para que o Ministério Público não ofereça denúncias nesses casos porque a prova é nula?

O que houve, afinal? Ou: o que está acontecendo?

Antes de fazermos normas gerais a partir do Poder não legitimado para tal (afinal, quem legisla é o outro Poder), não estaria na hora de repensarmos o nosso direito e o nosso Sistema de Justiça?

Precisamos falar sobre isso.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor