Oliveira e Cavallari: O compartilhamento de dados sigilosos

A novel Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) dispõe em seu artigo 169 que as contratações públicas estão subordinadas ao controle social e sujeitas à terceira linha de defesa, composta pelo órgão central de controle interno e pelo tribunal de contas, que, por sua vez, deverão ter acesso irrestrito a documentos e informações necessários à realização dos trabalhos, inclusive os documentos classificados pela Lei de Acesso à Informação, sem deixar de ser corresponsável pela manutenção do sigilo.

O dispositivo supra tem plena sintonia com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Mandado de Segurança (MS) 33.340, referente a pedido de medida liminar, impetrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) contra decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), que havia determinado o envio de documentos específicos referentes às operações realizadas com um grande grupo empresarial.

O STF defendeu a relativização do sigilo em um Estado democrático de Direito quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos: “a contratação pública não pode ser feita em esconderijos envernizados por um arcabouço jurídico capaz de impedir o controle social quanto ao emprego das verbas públicas”.

Na mesma linha de raciocínio, o MS 34.446 DF, em que a ministra Rosa Weber explicita [1] a possibilidade de transferência de dados sigilosos, de entidades bancárias, para o Fisco, e, de maneira análoga, para o TCU:

“36. Tampouco parece abalar a validade do emprego, pelo TCU, da medida cautelar de indisponibilidade de bens, a assertiva de que sua implementação ensejaria quebra do sigilo bancário. Ao julgamento do RE 601.314, Rel. Min. Edson Fachin, em conjunto com as ADIs 2.859, 2.386, 2.390 e 2.397, o Plenário desta Casa considerou compatível com a Carta Magna o art. 6º da LC nº 105/2001. Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal, entre outros aspectos, enfatizou não haver propriamente quebra de sigilo bancário, mas apenas a transferência de dados sigilosos, de entidades bancárias, para o fisco, que deveria adotar medidas para resguardar as informações obtidas. 37. De maneira análoga, entendo que a indisponibilidade de bens financeiros, decretada pelo TCU, além de não propiciar efetiva devassa acerca das movimentações bancárias da impetrante, por consistir em medida voltada a segregar ativos para o pagamento de eventual condenação de ressarcimento ao erário, em absoluto evidencia ‘quebra’ de sigilo bancário, mas apenas a transferência de informações protegidas à autoridade impetrada, à qual competirá adotar medidas para sua salvaguarda.”

A situação descrita nos faz recordar de auditoria na Receita Federal com o objetivo de identificar os riscos e impactos do estágio de transparência da administração tributária. Dezenas de fiscalizações haviam sido prejudicadas pela recusa em fornecer as informações solicitadas, sob alegação de sigilo fiscal. Consequentemente, quase R$ 6 trilhões anuais não eram auditáveis, o que “priva a sociedade de ter acesso a informações sobre a gestão pública tributária”, conforme voto do Acórdão 1.174/2019-Plenário [2].

Nos casos em que o TCU calculou débitos altíssimos em obras públicas as notas fiscais foram obtidas após compartilhamento dos dados pelo Judiciário [3]. Por exemplo, no âmbito de tomada de contas especial que apurou irregularidades no contrato para as obras de implantação das unidades de coqueamento retardado (UCR) da refinaria Abreu e Lima, em apenas 17 itens do orçamento apurou-se um sobrepreço de R$ 100 milhões (data base 5/2009) com base nos custos efetivamente incorridos. Itens apresentaram mais de 12.000% de sobrepreço (Acórdão 1.361/2021-Plenário).

Dessa forma, a atuação histórica do tribunal foi prejudicada pelas restrições pretéritas da Receita em fornecer os dados, inclusive porque o convênio somente foi assinado recentemente, em 23/11/2020 [iv], e em janeiro de 2021 foi emitida a Portaria RFB 4/2021, que exige a demonstração pelo controle externo de que existe pertinência temática dos dados e das informações solicitados com o objeto da auditoria ou da inspeção e a necessidade e a indispensabilidade de acesso a eles.

A Petrobras também se negou por cinco anos a prestar as informações que permitiriam o adequado exercício do controle externo, conforme Acórdão 2.735/2011 e Acórdão de Relação 3.465/2013, ambos do Plenário. Posteriormente, a rede de controle brasileira comprovou que grandes empreiteiras, o denominado “Clube”, associavam-se no mercado de grandes obras de engenharia civil demandadas pela Petrobras, em conduta anticompetitiva (detalhes no Acórdão 1.583/2016-Plenário).

Em relação aos acordos de leniência, relevantes instrumentos de combate à corrupção realizada por agentes econômicos que fraudam as regras de licitações públicas, os votos dos Acórdãos 2.920/2019, 1998/2020 e 1999/2020, todos do Plenário, evidenciaram o dever do controle interno de auxiliar o controle externo no exercício de sua missão institucional, e não obstar esse exercício, bem como a falta de acesso aos documentos – anexos, histórico de conduta da empresa e processo que conduziu a negociação, o que prejudicava qualquer opinião sobre a legalidade, legitimidade e economicidade dos atos dos agentes.

O STF já havia avaliado [v] se o poder sancionador do TCU seria, de alguma maneira, impactado pela disciplina dos acordos de leniência da Lei Anticorrupção firmados com a CGU ou pelos acordos firmados pelo MPF, ressaltando-se a importância da atuação coordenada da administração pública e a necessidade de atuação harmônica diante de uma “sobreposição fática entre os ilícitos admitidos pelas colaboradoras perante a CGU/AGU e o objeto de apuração do controle externo”.

Neste contexto, a Controladoria, o TCU, a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (signatárias) assinaram em 6/8/2020 um acordo de cooperação técnica (ACT) [6].

O ACT parecia sinalizar um avanço de articulação interinstitucional entre CGU e TCU, especialmente a quarta ação operacional: “após a celebração do acordo de leniência, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União compartilharão com as demais SIGNATÁRIAS DO ACT a integralidade das informações (…)”.

Contudo, o Acórdão 390/2023-Plenário demonstrou que o não compartilhamento das informações pela CGU permanece. O Acórdão 382/2023-Plenário, por sua vez, reforçou a imprescindibilidade do acesso às fontes primárias de informações, expondo com clareza três frentes de atuação do TCU:

  • cooperação com a AGU e a CGU (objetivo principal do ACT);
  • fiscalização concorrente dos atos irregulares motivadores do acordo de leniência, respeitadas as limitações do poder sancionador pactuadas no Acordo; e
  • fiscalização da aderência dos agentes públicos responsáveis pelas análises, celebração e fiscalização primária do ACT aos princípios norteadores da administração pública e às regras postas na Lei 12.846/2013.

Portanto, a sociedade brasileira, protagonista do controle social, deve conhecer o destino dos recursos públicos. Para tanto, é importante que, nos termos e limites da legislação e da jurisprudência do STF, informações e dados sigilosos sejam tempestivamente compartilhados com o TCU, a fim de que, na qualidade de órgão que representa uma das manifestações institucionais da democracia, tenha plenas condições de exercer o controle que lhe foi outorgado pela Constituição, com vistas à efetivação do direito à informação de que todo cidadão é titular e à preservação do patrimônio público.

*Eventuais opiniões são pessoais e não expressam posicionamento institucional do TCU

 


[2] Artigo recente demonstrou que a cooperação interinstitucional favorece os esforços no Brasil para o combate à corrupção: OLIVEIRA, Igor Pereira. O compartilhamento de dados e informações protegidos pelo Sigilo fiscal com os Tribunais de Contas: uma estratégia para fortalecer a cultura de combate à corrupção no Brasil. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Escola de Contas e Gestão do TCE-RJ, v. 3, n. 2 (2022)

Igor Pereira Oliveira é engenheiro, auditor e coordenador de ações de controle na Secretaria de Controle Externo de Infraestrutura do TCU, ex-especialista em regulação da Aneel e mestre pela Escola Politécnica da USP.

Odilon Cavallari é advogado, assessor de ministro do TCU, auditor federal de Controle Externo, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub).

Consultor Júridico

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