A crescente onda de ataques terroristas às escolas púbicas e particulares brasileiras vem provocando pânico e também mobilização da sociedade. Para combater o problema, são colocadas sobre a mesa propostas de todos os tipos. Além disso, cobranças da responsabilidade do Estado em todos os níveis de governo e das escolas se intensificam. A revista eletrônica Consultor Jurídico ouviu especialistas no assunto para formar uma lista de leis que precisam ser observadas, alteradas e/ou aperfeiçoadas para garantir ações que visem a coibir os atos e punir autores e pessoas neles envolvidas.
“Há uma série de medidas a serem implementadas na prevenção à violência. Na legislação vigente, o artigo 227 da Constituição Federal fala da responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade, o que inclui as empresas privadas, as escolas. O artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente vai falar que a prevenção (desse tipo de conflito) é dever de todos”, destaca Ana Cláudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana.
Especialistas em educação responsáveis pela elaboração de relatório enviado ao Ministério da Educação durante o período de transição de governo observam que prevenir e impedir os ataques às escolas também passa por ações extra e intraescolares, por meio de um trabalho intersetorial, com ação efetiva da gestão das redes públicas de ensino.
Nesse sentido, faz-se necessária uma campanha contra a cooptação dos jovens por grupos de extrema-direita e para explicar como isso afeta o desenvolvimento destes e da sociedade. Objetivamente, aponta o documento, o principal foco devem ser a escola e a comunidade escolar.
“É urgente que professoras, professores, funcionários das escolas, e — principalmente — mães, pais e responsáveis recebam orientações para detectar alterações comportamentais e observarem o conteúdo digital consumido por crianças, adolescentes e jovens. Além disso, reitera-se: profissionais da educação devem participar de processos de formação continuada sobre o extremismo de direita e como enfrentá-lo”, diz o relatório enviado ao MEC.
Contra as armas
Educadores chamam a atenção para a necessidade de criar leis que possam ajudar no controle das atividades de academias militares e escolas que ensinam crianças a manusear armas de fogo.
De acordo com os especialistas, é preciso também debater as violências contra a escola, ou seja, contra os sujeitos que a constituem e são a razão da sua existência. Para tal, são necessárias leis que proíbam a criação e fechem as centenas de academias e institutos mirins militares — que ofertam cursos militares para crianças e adolescentes e colocam crianças, a partir de cinco anos de idade, para manusear, quando não armas de verdade, réplicas destas — e que proíbam o armamento da população e os discursos que o sustentam.
Em 2021, sete crianças ou adolescentes foram vítimas de violência letal por dia. A arma de fogo foi responsável por 50% das mortes entre crianças, enquanto entre os adolescentes o número chegou a 88%. E a cada 60 minutos uma criança ou adolescente morre no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo, conforme o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, de 2022.
Segundo levantamento do Instituto Sou da Paz, em metade dos ataques contra escolas as armas vieram das casas dos atiradores, seja por se tratar de armas registradas por CACs, seja por uso de armas pertencentes a policiais. Esses dados são fundamentais para a desconstrução da narrativa que coloca essa violência na conta das escolas.
Direitos no ambiente digital
O Comitê dos Direitos da Criança da ONU estabelece que os direitos das crianças também se aplicam ao ambiente digital. Ou seja, a Organização das Nações Unidas reforça o dever dos Estados de tomar medidas adequadas para prevenir, monitorar, investigar e punir qualquer desrespeito a tais direitos. Inclui ainda a proteção infantil frente à exploração comercial, inclusive com relação ao marketing baseado em dados, e reconhece a obrigação de empresas de atuar na proteção das crianças no ambiente digital.
No Brasil, esse reconhecimento reforça o artigo 227 da Constituição Federal, que determina que a responsabilidade de assegurar os direitos das crianças, com absoluta prioridade, é compartilhada entre famílias, Estado e toda a sociedade, incluindo o setor corporativo.
Outro parâmetro é o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que, em seu artigo 70, define que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. E segue o texto do dispositivo: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão atuar de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes”.
“A Constituição Federal, em seu artigo 227, atribui expressamente à família, à comunidade e ao Estado o dever de manter as crianças e os adolescentes a salvo de violência, crueldade e opressão. Por sua vez, o ECA estabelece, em seu artigo 131, que é o Conselho Tutelar que deve zelar por esses direitos. Além dele, existem os Conselhos de Direitos — seja em âmbito municipal, estadual ou federal —, a Defensoria Pública e o Ministério Público, que podem receber denúncias”, diz Vinicius de Carvalho Carreira, advogado especialista em Direito de Família e presidente da Comissão de Infância e Juventude da OAB Bauru.
O Código Penal brasileiro prevê, conforme lembra Carreira, em seu artigo 121, parágrafo 2º, inciso IX, o crime de homicídio qualificado. Esse crime prevê pena de 12 a 30 anos de reclusão para quem matar pessoa menor de 14 anos.
“Além disso, é importante destacar que a legislação penal brasileira tem passado por mudanças nos últimos anos no que se refere aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes. Um exemplo disso é a Lei nº 13.718/2018, que aumentou a pena para crimes de estupro de vulnerável, incluindo aí atos libidinosos e o simples toque de cunho sexual. No caso específico de atentados em escolas e creches, a lei pode tipificar diferentes tipos de crime, dependendo das circunstâncias em que o fato ocorreu. É importante ressaltar, no entanto, que a prevenção desses casos é fundamental, e para isso é necessário que a legislação seja cumprida e fiscalizada”, afirma Philipe Monteiro Cardoso, advogado especializado em Direito Administrativo.
“O fenômeno que estamos vivenciando olha para a atuação da própria escola. Os conflitos enfrentados pelas crianças e adolescentes não estão sendo resolvidos dentro das escolas. Há bullying e outras coisas. Vivemos um momento de acirramento de embates ideológicos no país e é necessário identificar de onde vem isso e quem são os responsáveis por disseminar o ódio”, diz Ana Cláudia Cifali.
Importante destacar que os alvos de cooptação pelo discurso de extrema-direita são majoritariamente adolescentes brancos e heterossexuais, e a misoginia exerce um papel crucial no processo. Frustração sexual e raiva do mundo, entre outros processos típicos da adolescência, são mobilizados em espaços de discussão online onde muitos desses jovens se reúnem para desabafar ditas frustrações e confraternizar.
As lideranças dos grupos extremistas, notadamente os adultos responsáveis pelo recrutamento e instrumentalização de adolescentes e jovens para a prática de ataques, devem ser identificadas e punidas na forma da lei, observam os especialistas. É imperioso, apontam eles, que esse tipo de delito não seja entendido como de menor importância ou mesmo como exercício de “liberdade de expressão”. Nesse sentido é preciso capacitar os servidores públicos das polícias, dos Ministérios Públicos, das Advocacias Públicas e Defensorias e do Poder Judiciário para identificar e analisar os conflitos e problemas.
Os servidores públicos do sistema de Justiça, recomenda o documento enviado ao MEC, precisam ser atualizados sobre a edição do Decreto nº 10.932, de 10/1/2022. Recentemente, o Brasil incorporou a seu direito constitucional a Convenção Interamericana contra o Racismo e todas as Formas de Discriminação Racial e formas correlatas de Intolerância.
Análise crítica da mídia
Ainda no arcabouço de ações que precisam ser observadas e colocadas em prática, dizem os educadores e juristas, é imprescindível um trabalho pedagógico em educação crítica da mídia e combate à desinformação.
A educação crítica da mídia deve permear os variados componentes curriculares desde as séries iniciais do ensino fundamental até o ensino médio. Ainda dentro de uma atuação no campo pedagógico, cabe reforçar o crescente uso da internet e do compartilhamento de informações, sem que a escola tenha papel na educação crítica midiática e tecnológica dos estudantes.
O cenário mundial, incluindo o Brasil, é preocupante. Há uma ampliação do uso da internet por todos os públicos, inclusive crianças e adolescentes. Em 2017, segundo dados do Unicef, um a cada três usuários da internet era uma criança e, em termos comparativos, os jovens são a parcela da população mais conectada.
No Brasil, segundo dados da pesquisa TIC Domicílios 2021, 82% dos domicílios brasileiros possuem acesso à internet, percentual que cai para 71% quando considerados apenas os domicílios em áreas rurais. Por isso, apesar da alta digitalização da sociedade brasileira, ainda há um percentual considerável de brasileiros desconectados, especialmente quando considerados aspectos relacionados a localidade e renda familiar, apontando-se como principais barreiras para a universalização do acesso à internet o seu alto custo e ausência de infraestrutura. Ainda assim, 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos já acessaram a internet no Brasil.
Símbolos e propaganda nazista e supremacista
De acordo com os especialistas, há necessidade de aperfeiçoamento da Lei nº 7.716/89 no que se refere a fabricação, comercialização, distribuição e veiculação de símbolos, emblemas, distintivos ou propaganda de teor supremacista que não necessariamente façam uso da cruz suástica ou gamada, tal como menciona a lei.
Isso porque, segundo relatório enviado ao MEC, é da natureza dos movimentos e grupos extremistas de direita a necessidade do recurso de imagens e linguagem simbólica. É preciso que a lei, sem ser vaga ou genérica em demasia, criminalize os símbolos de conteúdo supremacista, o que deve ser averiguado no contexto de cada caso, sugerem os especialistas.
Além da criminalização da fabricação, comercialização, distribuição e veiculação de símbolos, emblemas, distintivos ou propaganda,é também necessário criminalizar a guarda e o depósito de material de teor supremacista, uma vez que tal conduta extrapola os limites do direito fundamental à privacidade e à intimidade, dado seu potencial de dano social.
Destaca-se ainda a necessidade de melhor definição normativa dos crimes de ódio, a fim de possibilitar o monitoramento e a produção de dados estatísticos com maior regularidade, uniformidade e abrangência nacional.
Os especialistas sugerem ainda o estabelecimento de causas de aumento de pena para crimes cuja motivação ou o critério de escolha da vítima apresentar elementos supremacistas e uma agravante genérica, de caráter subsidiário, para os crimes em geral, nos quais se identifica a supremacia, a misoginia, o capacitismo e o racismo como motivação do crime ou como critério de seleção da vítima.
“O aperfeiçoamento da Lei nº 7.716/89 a fim de suprir lacunas na tipificação das condutas relacionadas à cooptação e recrutamento de crianças e adolescentes por grupos e ideologias de extremistas de direita não conflita e nem impede que tais fenômenos sejam inseridos em programas de Justiça Restaurativa, de forma prévia à judicialização ou, nos casos já judicializados, de forma alternativa ou concorrente com as ações e procedimentos penais”, destaca relatório dos educadores.
Twitter
Para conter a disseminação de ataques no Twitter, a Defensoria Pública do Espírito Santo investiga se o crescimento desses ataques violentos a escolas tem relação direita com a influência das redes sociais.
No caso específico do Twitter, a instituição investiga se houve a disseminação prévia de conteúdos sobre o tema. A Defensoria sustenta a importância da adoção de medidas efetivas, por parte da rede social, para coibir o compartilhamento deste tipo de informação.
A ação civil pública da Defensoria capixaba sugere a exigência de CPF para criação de usuário na plataforma; o aperfeiçoamento do sistema para tornar mais veloz o banimento de contas que empregam discurso de ódio e violência no contexto em questão; a desativação de todos os perfis ligados a planejamento, incitação ou exaltação de ataques a escolas no Brasil; o aperfeiçoamento do catálogo de queries utilizadas para limitação de usuário/conta/postagens; a criação de mecanismo de canalização das mensagens para os órgãos do Estado com condições de atuar de modo preventivo; além de outras medidas necessárias compreendidas no âmbito da ciência de dados, passíveis de melhor detecção pelos especialistas que operam no Twitter, inclusive para evitar o chamado “efeito contágio”.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que 756 perfis em diferentes redes sociais já foram retirados do ar nos últimos dias por influenciar e/ou estimular ataques às escolas. Foram recebidas 7.473 denúncias pelo canal oficial do governo federal para investigar esses casos.
Catraca e detectores
Chama a atenção, diz Ana Cláudia Cifali, que a complexidade que envolve a temática e os múltiplos fatores que a permeiam requerem ações que possam enfrentar as causas do problema, e não apenas as suas consequências.
A inserção nas escolas de artefatos de segurança, tais como catracas, detectores de metais, dispositivos de identificação facial e seguranças armados, não vai enfrentar o impacto do ultrarreacionarismo extremista nos jovens e, pelo contrário, tende a aumentar as ameaças, pois afetará o clima escolar — tornando-o potencialmente mais insalubre —, além de tornar a escola um espaço ainda mais relevante em termos de propaganda extremista, ocasionando riscos de novos atentados. “Essas medidas não vão resolver o problema”, analisa a advogada do Instituto Alana.
Segundo os especialistas ouvidos pela Conjur, o ambiente escolar deve ser saudável e acolhedor, com o objetivo de corresponder à missão constitucional da educação, inscrita no artigo nº 205 da Constituição Federal: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
“A prevenção de violência futura, embora contida no comando do artigo 227 da Constituição Federal, foge ao objetivo da norma — além de ser medida de difícil operacionalização, por a ser a violência um fenômeno complexo e multifacetado. Exemplo dessa complexidade é a formatação do espaço escolar, que não pode ser tão fortificado a ponto de atrapalhar as atividades educacionais, nem tão aberto a ponto de deixar os alunos vulneráveis a atentados como os que ocorreram recentemente”, explica Vinicius de Carvalho Carreira.
Também é observada, segundo os estudiosos do tema, discrepância pedagógica na elaboração de projetos de lei sobre o assunto.
O Projeto de Lei n° 1.372, de 2022, do deputado Paulo Bengtson (PTB-BA), que teve seu processo de tramitação acelerado após o ataque em Aracruz (ES), em novembro de 2022, é um exemplo de, apesar de promissor, mau uso da expressão “violência escolar” (ou “escolas violentas”). A ementa diz que o PL autoriza o Poder Executivo a implantar serviço de monitoramento de ocorrências de violência escolar.
Aprovado na Câmara dos Deputados no dia 7 de dezembro do ano passado, o PL foi enviado ao Senado Federal e aguarda apreciação da casa.
O artigo 1º define o teor do PL e o parágrafo 1º traz quais serão as prioridades de atuação do Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (SNAVE).
Por outro lado, o Senado já aprovou um projeto de lei que criminaliza as fake news e pode cooperar nas ações para evitar ataques às escolas. Agora o texto aguarda decisão da Câmara dos Deputados, onde deve ser apreciado entre os dias 26 e 27 deste mês, de acordo com o deputado relator, Orlando Silva (PCdoB-SP).
Lei 7.716/1989
Ainda que o Direito Penal não seja o veículo mais eficaz nas políticas públicas de enfrentamento ao extremismo de direita dos jovens, alertam os especialistas, há aspectos a destacar no aprimoramento da legislação penal que podem atuar como fator coadjuvante no enfrentamento dos crimes praticados por extremistas de direita.
Destaca-se a necessidade de melhor definição normativa dos crimes de ódio a fim de possibilitar o monitoramento e a produção de dados estatísticos com maior regularidade, uniformidade e abrangência nacional, sugere o relatório enviado ao MEC. Nesse sentido, cabe citar a experiência de lei nos Estados Unidos (Hate Crimes Statistics Act — HCSA) que, ao mesmo tempo em que estabeleceu uma definição normativa para os crimes de ódio em uma lei federal, determinou a compilação e publicação de relatórios estatísticos em bases anuais e estabeleceu os parâmetros para essa coleta de dados
Por fim, sugere-se que as penas de multa e de prestação pecuniária eventualmente impostas nas ações penais que tratam dos crimes de ódio e de discriminação sejam destinadas a um fundo específico, criado por lei, destinado ao financiamento de programas educacionais, ações culturais e programas de Justiça Restaurativa no âmbito das comunidades atingidas. Vale lembrar que, nesse caso, as medidas sugeridas não materializam indevida expansão do Direito Penal, mas cumprimento de política criminal constitucional, haja vista que a Constituição Federal determina expressamente a criminalização do racismo e das demais formas de discriminação.
O aperfeiçoamento da Lei nº 7.716/1989 não conflita e nem impede que tais fenômenos sejam inseridos em programas de Justiça Restaurativa, de forma prévia à judicialização ou, nos casos já judicializados, de forma alternativa ou concorrente com as ações e procedimentos penais.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, artigo 1º, conceituou a Justiça Restaurativa como “um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato”.
Essa importante regulamentação estabelece que as práticas, os procedimentos e as sessões devem orientar-se pelo enfoque restaurativo, ou seja, uma “abordagem diferenciada das situações descritas no caput deste artigo, ou dos contextos a elas relacionados, compreendendo os seguintes elementos: a) participação dos envolvidos, das famílias e das comunidades; b) atenção às necessidades legítimas da vítima e do ofensor; c) reparação dos danos sofridos; d) compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima, famílias e comunidade para superação das causas e consequências do ocorrido”.
A participação das comunidades nos procedimentos restaurativos abre um relevante campo de atuação da Justiça Restaurativa nos locais atingidos pelo fenômeno da violência praticada por grupos extremistas de direita e dirigida contra as escolas, observados os requisitos para sua aplicação, notadamente a voluntariedade, a autorresponsabilidade e a consensualidade.