Opinião: A criminalização do licenciamento ambiental

Quando surgiu, em 1998, a Lei de Crimes Ambientais representou uma quebra de paradigmas. É bem verdade que a norma não foi a primeira a tutelar criminalmente as condutas que interferem nos recursos naturais. Além de leis esparsas, o Código Florestal de 1965 e a Política Nacional do Meio Ambiente de 1981, mesmo que timidamente, previam contravenções penais. Contudo, as mudanças trazidas em 1998 tinham o potencial — que se confirmou — de alterar todo o sistema de responsabilização vigente.

A lei criou um microssistema próprio e instituiu um amplo leque de pessoas puníveis pela prática dos crimes ambientais. A maior inovação, sem dúvida, foi a previsão da responsabilidade das pessoas jurídicas, sujeitos até então estranhos ao Direito Penal. Contudo, a preocupação criminal com o meio ambiente, considerada por alguns como revolucionária, não torna a legislação imune de críticas e problemas práticos, que requerem atualizações interpretativas e legislativas sobre o tema, e também não afasta a necessária interpretação da lei especial a partir dos princípios e preceitos que orientam o Direito Penal como um todo.

Traremos, neste pequeno texto, argumentos que justificam a revisão de um ponto específico da lei, que diz respeito à criminalização do agente responsável pelo licenciamento ambiental [1], prevista pelo artigo 67:

“Art. 67. Conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público: Pena – detenção, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.”

Considerando que o crime previsto no artigo 67 tutela dois bens jurídicos — o meio ambiente e o bom desempenho da função pública — é perfeitamente compreensível a previsão da modalidade dolosa. Quando o agente público age de forma livre e consciente para descumprir normas ambientais, há o nítido descumprimento das funções que devem ser desempenhadas no âmbito da administração pública.

O problema está na previsão da modalidade culposa (parágrafo único) que permite a responsabilização do funcionário público que, agindo com imprudência, negligência ou imperícia, concede licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais.

É que os crimes culposos não devem ser entendidos como uma amenização do dolo. A modalidade pautada na culpa é exceção no Direito Penal brasileiro, pois ao contrário dos crimes dolosos, não exigem a voluntariedade na violação da lei penal, mas apenas uma conduta desatenta.

A lógica da existência dos crimes culposos — também chamados de imprudentes — é a proteção máxima do bem jurídico tutelado pela norma, preservando-se a sua aplicabilidade para os ataques mais graves a bens jurídicos, ou, em outras palavras, para casos onde existe uma lesão preocupante ao bem protegido [2]. O fundamento da modalidade está na necessidade de criminalizar condutas que excedam os limites do risco autorizado pelo ordenamento [3]. A reserva foi concebida, assim, para os casos em que a falha do agente acarreta efeitos tão dramáticos para a sociedade que exigem uma responsabilização penal.

Partindo dessa premissa, a previsão do artigo 67, parágrafo único, da Lei de Crimes Ambientais encontra a sua primeira contradição.

Veja-se que a consumação do crime ocorre na emissão do ato administrativo, o que significa que não é relevante, para a responsabilização, a existência de dano ambiental ou qualquer outro efeito posterior. É plenamente possível — e aceitável — a condenação do agente mesmo quando não ocorre lesão alguma ao bem jurídico tutelado do meio ambiente. Nesse sentido, toda a lógica anterior se perde, tornando, já na teoria, a tipificação um estranho no ninho. E os problemas são ainda mais evidentes quando verificadas as circunstâncias práticas dos procedimentos autorizativos.

Licenças, autorizações ou permissões ambientais podem envolver processos administrativos extremamente complexos, longos e que exigem a participação de múltiplos agentes com formações e conhecimentos diversos. E é nesse sentido que o licenciamento ambiental, em particular, apresenta-se como um grande desafio para a administração pública.

O licenciamento muitas vezes permite mais de uma resposta para a análise de situações idênticas. Existem diferentes métodos, teorias, sistemas e equipamentos que verificam os efeitos da ação humana em determinado cenário, não necessariamente sendo um melhor do que outro.

Além disso, o ato que emite a licença ambiental não é uma mera conferência de um check list por parte da Administração Pública. A licença não é, como se costuma dizer no Direito Administrativo, um ato vinculado. A decisão do responsável envolve um somatório de elementos que ultrapassam apenas questões de natureza técnica.

O procedimento de licenciamento pode ser considerado um “balanceamento de interesses” [4], uma vez que pretende equilibrar os preceitos do desenvolvimento sustentável: a proteção ambiental, o crescimento econômico e o desenvolvimento social. Existe margem para o agente público tomar a decisão, desde que embasado nos pareceres, análises, estudos e dados apresentados pela equipe envolvida. Tomando, novamente, por emprestada a terminologia do Direito Administrativo: o que existe é a discricionariedade técnica.

E o que tudo isso quer dizer? Quer dizer que uma mesma situação, um mesmo empreendimento, uma mesma atividade, podem gerar dados e estudos com conclusões diferentes, sem que nenhum deles esteja incorreto. E mais, quer dizer, também, que até processos idênticos, com as mesmas informações, podem gerar decisões diversas, sendo ambas lícitas, desde que tomadas dentro da margem de discricionariedade que é permitida ao agente.

Essa realidade cria um grande problema para a criminalização, ainda maior quando se trata da modalidade culposa.

Nos crimes dolosos, existe uma imediata adequação entre o fato e o tipo penal: concede-se a licença em desacordo com as normas ambientais, em inobservância ao dever intrínseco à atividade pública. Em outras palavras, existe, com mais facilidade, a verificação da relação entre o ato do agente e a conduta descrita como crime. Nos crimes culposos a situação não é essa. O julgador precisa estabelecer um critério, considerando o caso concreto, que lhe permite determinar até que ponto uma conduta pode ser considerada típica ou não [5].

Esse critério é quase como um padrão de conduta — um limite, uma fronteira até onde o agente pode atuar. É nesse momento que começam as dificuldades.

O primeiro problema é inerente ao próprio judiciário. Dificilmente um juiz, desembargador ou ministro terá expertise técnica para criar esse critério. Sua formação, muito provavelmente, não contempla a ampla gama de aptidões necessárias para avaliar a totalidade das informações existentes em um processo de licenciamento [6]. “Basta acionar um perito”, pode pensar o leitor. Ocorre que mesmo um perito enfrentaria dificuldades, tendo em vista a natureza multidisciplinar do licenciamento, que pode envolver biólogos, sociólogos, antropólogos, engenheiros, químicos e diversos outros profissionais, dos mais variados campos de atuação.

Ainda que existisse a possibilidade dessa análise complexa e integrada, restaria o problema inerente à já mencionada peculiaridade do licenciamento, quais sejam, as múltiplas possibilidades interpretativas e a discricionariedade técnica, que têm o potencial de tornar a definição de qualquer padrão de conduta uma tarefa impossível.

Por esses motivos, a modalidade culposa do artigo 67 cria uma excessiva responsabilização do agente licenciador, permitindo-se a sua condenação em situações decorrentes do seu mero exercício profissional, e isso sem tutelar, necessariamente, o meio ambiente.

Essa criminalização cria um risco para o agente, gerando impactos diretos na gestão pública. A possibilidade de ser responsabilizado estimula a postura de não decidir, engessando a máquina do Estado em um fenômeno que tem sido denominado como apagão das canetas. Nos últimos anos foram debatidas propostas, projetos e reformas para alterar esse fenômeno, visando maior segurança para que os gestores possam decidir e exercer sua função pública [7].

Duas mudanças legislativas podem ser consideradas fruto desse novo momento: (1) a atualização da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), e a (2) aprovação da Nova Lei de Improbidade Administrativa (LIA) [8].

Nenhuma das duas leis alterou as disposições da Lei de Crimes Ambientais, mas escancaram uma segunda contradição do parágrafo primeiro do artigo 67. Enquanto a primeira contradição é interna ao Direito Penal, a segunda está relacionada ao ordenamento jurídico como um todo.

O direito penal possui, como questão básica e imprescindível para a sua própria concepção, o princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio. A intervenção mínima surge como meio de proteção do indivíduo perante a autoridade estatal, e, em poucas palavras, significa que a criminalização deve ser instituída como último recurso, sendo uma ferramenta de controle social de emergência [9].

Em comparação à postura adotada nos procedimentos disciplinados pela LIA e pela Lindb, a manutenção da modalidade culposa do crime praticado por funcionários públicos na Lei de Crimes Ambientais retira o referido caráter de exceção, intrínseco ao Direito Penal.

Ao tratar da responsabilidade pessoal dos agentes públicos, a Lindb dispõe que ela só acontecerá nos casos de erro grosseiro ou dolo. O Decreto 9.830/2019, que regulamentou a Lindb, definiu o erro grosseiro como “[…] aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

A LIA, por sua vez, passou a exigir, para a condenação por improbidade, uma ação ou omissão dolosa, entendida como “a vontade livre e consciente de alcançar resultado ilícito“, não sendo suficiente a mera “voluntariedade do agente“. Também foram criados dispositivos exigindo a comprovação de que o agente agiu com intenção de obter proveito ou benefício, além de que a sua conduta tenha causado alguma lesividade relevante.

Nota-se que, com as reformas mencionadas, é mais fácil um agente licenciador ser responsabilizado criminalmente, por meio do parágrafo único do artigo 67, do que sofrer qualquer consequência nas demais esferas de responsabilização.

É evidente, portanto, a necessidade de uma reforma da Lei de Crimes Ambientais, no sentido de suprimir o parágrafo primeiro do artigo 67. Nessa linha, a discussão do Projeto de Lei 2.159/2021, que cria uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental, pode oportunizar essa importante adequação, já que, nela, é prevista a supressão da modalidade culposa que persiste na esfera ambiental (artigo 60 do Projeto).

Enquanto as alterações não ocorrem no legislativo, torna-se necessária uma mudança interpretativa do que deve, ou não, ser considerado culpa nos termos do artigo 67.

Pensa-se, nesse sentido, que não deve ser responsabilizado o agente público que, no exercício das suas atribuições, atuou dentro dos limites da discricionariedade técnica, mesmo que porventura essa discricionariedade venha a ser questionada judicialmente no futuro, ratificando-se, ou anulando-se, a licença ambiental em questão. Da mesma forma, divergências técnicas, que abarcam mais de uma interpretação sobre o mesmo fato, não podem ser consideradas como suficientes para a responsabilização penal do funcionário público.

Além disso, decisões embasadas em elementos técnicos, cujo responsável pela decisão não possui aptidão para revisão detalhada de documentos e elementos apresentados pela sua equipe, também não podem ser entendidas como imprudência, negligência ou imperícia. A boa fé do agente que seguiu essas orientações precisa ser sempre considerada.

Disso decorre o entendimento que se defende neste artigo: para que ocorra a responsabilização culposa, é preciso a configuração do erro grosseiro. Deve-se levar em conta, para aplicação do dispositivo, situações em que, fora de uma margem interpretativa e dentro das condições reais do gestor, seja plenamente possível verificar o ato em desacordo com as normas ambientais, restando clara, manifesta e evidente a existência de falha grave por parte do funcionário público.

Mesmo com essa interpretação, que exige uma qualificação da culpa para que ocorra a condenação do agente licenciador, entende-se que não são resolvidas todas as problemáticas decorrentes do parágrafo único do artigo 67. A Lei de Crimes Ambientais, que foi revolucionária em 1988, hoje precisa ser adequada ao paradigma vigente, revendo-se a criminalização do licenciamento ambiental.

 


[1] Esse artigo sintetiza os argumentos apresentados de forma mais extensa no capítulo “A responsabilidade penal e a insegurança para licenciar – Uma análise do artigo 67 da Lei de Crimes Ambientais”, que será publicado na obra “25 anos da Lei 9.605/98: antecedentes, efetividade e perspectivas da tutela penal e administrativa do meio ambiente no Brasil”, organizada por Rodrigo Jorge Moraes, Talden Farias e Fabio Machado de Almeida Delmanto.

[2] BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2015, p. 422.

[3] TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 3.

[4] BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento Ambiental. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 29-42.

[5] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Saraiva, 19ª ed., 1º Vol., 1995, p. 253-254.

[6] Nos EUA o limite da ingerência do judiciário é muito debatido por meio da doutrina Chrevron. Cass Sunstein e Adrian Vermeule defendem, por meio do conceito de capacidades institucionais, que instâncias generalistas, como os tribunais, tenham uma postura mais formalista na interpretação quando comparado com instâncias especializadas, como os órgãos ambientais. Sobre o tema: MEDEIROS, Isaac Kofi. Ativismo judicial e princípio da deferência à administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 171 – 178.

[7] Um artigo que sistematizou o movimento mencionado é “Chega de Axé no Direito Administrativo“, de Carlos Ari Sundfeld. Disponível em: http://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/01/artigos-carlos-ari-sundfeld-chega-de-axe-no-direito-administrativo.pdf.

[8] Para aprofundamentos sobre as disposições da reforma da Lindb recomendamos: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: O novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022. Já sobre os efeitos da nova LIA especificamente no licenciamento ambiental: COSTA, Mateus Stallivieri da; MORAES, Leonardo Bruno Pereira. Nova LIA e mudanças no âmbito do licenciamento ambiental. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-29/opiniao-lia-mudancas-licenciamento-ambiental. Acesso 27.03.2023.

[9] BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2015, p. 4

Ana Paula Sigounas Muhammad é advogada, especialista em Direito e Processo Penal pela ABDConst e em Direito Empresarial pela FGV.

Jaqueline de Andrade é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Mateus Stallivieri da Costa é advogado, doutorando em Direito e Desenvolvimento pelo PPGD da FGV-SP, mestre em Direito Internacional e Sustentabilidade pelo PPGD da UFSC e especialista em Direitos e Negócios Imobiliários e em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Ibmec-SP.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor