Nos últimos dias 28 e 29 de março, o Marco Civil da Internet (MCI) — Lei n° 12.865/2014 — [1] voltou a ser objeto de atenção dos brasileiros, no momento em que também se discute o melhor modelo de regulação das plataformas, o combate à desinformação e ao discurso do ódio no país. Durante os referidos dias, ocorreu no Supremo Tribunal Federal (STF) audiência pública para ouvir representantes da sociedade civil, especialistas, órgãos públicos, cientistas, redes sociais, big techs, a Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e representantes de empresas de telecomunicação sobre a constitucionalidade do artigo 19 do MCI, que versa acerca da responsabilidade dos provedores de aplicação sobre conteúdos ilegais que são publicados e compartilhados em seus serviços e violam direitos de outros usuários.
O STF reconheceu a repercussão geral do tema em dois recursos extraordinários (REs). Esses apelos processuais têm como base discussões acerca da possibilidade de os provedores serem responsabilizados pelos conteúdos que os seus usuários publicam, bem como a sua remoção em casos de postagens que ataquem direitos fundamentais, como os de personalidade, por exemplo.
O RE 1.057.258 [2], tendo como relator o ministro Luiz Fux, resultou de caso em que uma professora de duas escolas foi alvo de ataques no Orkut. Nesse cenário, o que consta é que ela foi informada por seus alunos sobre a criação de uma comunidade, dentro dessa rede social, que continha conteúdos ofensivos a sua própria pessoa, mas inicialmente não se interessou porque imaginava ser uma brincadeira inocente de autoria de algum aluno ou ex-aluno.
Contudo, quando o conteúdo viralizou, alcançando outros docentes, familiares e centenas de estudantes, solicitou ao Orkut a exclusão. Ainda assim, o Orkut negou tal pedido. Diante disso, a professora ingressou com uma ação requisitando, dentre outros pedidos, a retirada da comunidade da internet, sob a pena de multa, e a indenização por danos morais em face do Google, proprietária do antigo Orkut. Do outro lado, o Google argumentou não possuir legitimidade para figurar no polo passivo da ação, uma vez que não seria responsável pelos conteúdos publicados pelos seus usuários, além de que sequer haveria responsabilidade, seja objetiva ou subjetiva.
Já o RE 1.037.396 [3], tendo como relator o ministro Dias Toffoli, ademais, teve como estopim a criação de um perfil fake no Facebook. Isso ocorreu ainda que a vítima nunca tenha se interessado em realizar cadastro na plataforma, o que a fez abrir um boletim de ocorrência, pois esse perfil começou a ofender pessoas de sua comunidade, inclusive a sua irmã, o que gerou transtornos e inimizades. Além disso, denunciaram o perfil e o Facebook continuou inerte, tornando insuficientes as tentativas extrajudiciais. Por isso, ingressou com ação pedindo, principalmente, a exclusão do perfil e indenizações a título de danos morais.
De todo o modo, foi também interposto recurso extraordinário sob a alegação de ser uma matéria reconhecida como de repercussão geral, análoga ao caso do Orkut (Tema 533). Além disso, salienta-se que este, diferentemente do primeiro caso, ocorreu durante a vigência do MCI, logo se tratou também dos debates sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco, que dispõe sobre a responsabilização dos provedores de aplicação e se estão obrigados a remover os conteúdos ofensivos somente após determinação de decisão judicial (Tema nº 987).
Igualmente, destaca-se que o Tema n° 987 trata basicamente sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, enquanto o Tema n° 533 sobre o dever da empresa que hospeda sítio eletrônico de fiscalizar o que tiver sido publicado em seus serviços e, caso seja ofensivo, retirar do ar mesmo sem que o Poder Judiciário necessite manifestar-se.
Ambos os temas foram objetos de discussão em audiência pública com a presença de vários amicus curiae (amigos da corte); foram ao todo 47 participantes multissetoriais selecionados pelo STF. Ressalta-se que a necessidade desses participantes se dá quando é preciso ouvir a sociedade civil, ou mesmo o poder público, com perspectivas interdisciplinares a partir de informações técnicas e jurídicas. Então, diversas representatividades estiveram presentes durante esse momento como forma de amplificar o debate e mostrar suas perspectivas.
Acompanhou-se parte dessas discussões mencionadas e destacaram-se as seguintes perspectivas de diversos atores como Twitter Brasil, GetEdu, a Associação Brasileira de Internet (Abranet) e a Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint). As participações orais dos referidos amigos da corte enalteceram a liberdade de expressão dos usuários como nunca ocorrera em meios de comunicação de massa, bem como os protocolos de proteção e de segurança que as plataformas detêm, além de destacarem a constitucionalidade do artigo 19 do MCI.
Defendendo igualmente a literalidade e a constitucionalidade desse dispositivo, o Instituto de Advogados de São Paulo e a OAB-SP ressaltaram o longo processo de consolidação da referida legislação (MCI) e que, por meio do Congresso Nacional, devem ser realizados mais debates para inserirem diversas outras hipóteses de incidência de responsabilização das plataformas como parte da democratização do debate. Ambos opinaram pela constitucionalidade do artigo 19 do MCI.
De outro modo, a Agência Nacional de Comunicação (Anatel) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) reforçaram que muitas vezes as plataformas se colocam como intermediários nas relações consumeristas dificultando a responsabilização e a aplicação de sanções no microssistema do direito do consumidor, aumentando a vulnerabilidade do consumidor.
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABC Pública) defenderam que a responsabilização das plataformas precisa ser maior. Opinaram que exista maior rigor e que o artigo 19 do MIC precisa de mais reforço, pois não se adequa mais às hodiernas questões de plano social, político e econômico no Brasil.
No âmbito de proteção dos direitos da criança e do adolescente, o Instituto Alana, apesar de tecer inúmeras críticas à sistemática atual da internet do Brasil que afeta esses grupos vulneráveis, opinou pela constitucionalidade do mencionado dispositivo.
Outra perspectiva apresentada e bastante relevante foi a noção de censura prévia caso o artigo 19 seja declarado inconstitucional, trazida à discussão pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Segundo ela, o tema é bastante nebuloso. Para a Abraji, filtros e remoções não vão resolver a totalidade dos problemas concernentes à internet, não sendo recomendável que seja garantido às plataformas (empresas privadas) o direito de realizar retiradas de conteúdo sem determinação judicial.
A questão principal aqui é, portanto, definir se as empresas de tecnologia podem ser responsabilizadas pelo conteúdo ilícito de terceiros sem uma decisão judicial que as obrigue. O sopesamento dessa questão fica por conta de duas premissas fundamentais para a ordem constitucional. Trata-se, de um lado, do princípio da liberdade de expressão e, de outro, do combate ao discurso de ódio, às fake news, aos atos antidemocráticos, à intolerância religiosa, à misoginia e ao racismo, dentre outros tipos de ações e discursos extremistas.
As explanações das big techs apresentaram uma linha de raciocínio fundada, principalmente, na ideia de que a declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do MCI pode causar um efeito chamado de chilling effect. O tal efeito inibidor seria uma estratégia adotada pelas plataformas para censurar previamente conteúdos controversos, com o fito de evitar que sejam responsabilizadas pelo que outras pessoas postam. Não obstante, apresentaram dados vultosos de publicações excluídas voluntariamente.
Outras organizações civis, outros especialistas e órgãos governamentais — tais como a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, a Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital, o Ministério da Justiça e Segurança Pública — argumentaram no sentido de buscar uma regulamentação mais dura para coibir o discurso de ódio, as notícias falsas e tramas conspiratórias. Boa parte desses amigos da corte, como visto anteriormente, defendem que o artigo 19 é insuficiente para a responsabilização das plataformas. Não obstante, há que se ressaltar o posicionamento do Ministério das Comunicações. Ao ser chamado ao debate, o órgão contribuiu se posicionando no sentido de que o Marco Civil não impede a remoção do conteúdo por conta própria e defendeu a interpretação conforme a Constituição do artigo 19. O ministério entende que a responsabilização por conteúdo ilegal de terceiros já existe e citou o que se tem na radiodifusão, traçando um paralelo de modo a exemplificar que a responsabilização das empresas não prejudicou o desenvolvimento da atividade.
Apesar de minoritária, a posição pela inconstitucionalidade do artigo 19 partiu, em grande medida, de setores da sociedade civil e da academia. Para a Clínica de Responsabilidade Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o artigo 19 do MCI representa uma imunidade às plataformas sem precedente no direito civil ao vincular a responsabilização à não observância de ordem judicial, criando barreiras à proteção dos direitos fundamentais no âmbito digital. Para a representante do Instituto Internet no Estado da Arte (Istart) e do Instituto Norberto Bobbio (INB), o dispositivo do MCI não prevê nenhum prazo adequado para que as plataformas atendam a ordem judicial permitindo que o conteúdo ilícito permaneça online indevidamente, estimulando vezes sua monetização pela demora em detrimento da tutela da dignidade da pessoa humana protegida pela Constituição de 1988 e pelas declarações internacionais de direitos humanos.
A ideia de regulamentação não assusta as gigantes da tecnologia que já precisam lidar com essa discussão em diversas partes do mundo. No entanto, malgrado os números apresentados, é preciso dizer que nem todas as plataformas agem da mesma forma. Mais ainda, foi possível visualizar na audiência incongruências com algumas políticas, em que, por vezes, excluem postagens inofensivas e deixam no ar contas e publicações nocivas. Nessa seara, surge o dever de cuidado, como citado pela Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União.
O debate acerca da constitucionalidade do artigo 19 ressurge diante de uma ainda abalada democracia em decorrência dos eventos golpistas do dia 8 de janeiro. Gestado em redes sociais e amplamente difundidos por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, os eventos foram uma prova de fogo para a democracia brasileira. O questionamento que fica depois daquele fatídico dia é: o que aconteceria com a ordem democrática se ocorresse um novo 8 de janeiro? Sem dúvidas o ambiente de animosidade e desconfiança para com essas empresas influencia diretamente no debate.
Independentemente da decisão que será tomada pelo STF, o parlamento deve se debruçar a respeito de regras que ajudem a definir alguns termos que não estão claros. Mesmo com um eventual julgamento de confirmação da constitucionalidade do artigo 19, há que se ficar atento para um regime legal que busque enfrentar os excessos nas redes sociais. Em caso de se considerar o dispositivo inconstitucional, deve o Legislativo se posicionar para encontrar um substitutivo para que as plataformas não censurem previamente conteúdos para evitar possível responsabilização.
Por fim, vale ressaltar que o julgamento desses recursos extraordinários é, sem dúvida, um divisor de águas para a concretização do recém reconhecido direito fundamental à proteção de dados pessoais no âmbito digital. Através dele, as diretrizes de enfrentamento às mazelas nas redes sociais começarão a ser tratadas. Engana-se quem pensa que o assunto morre com a decisão da Corte Suprema, na verdade, o debate está apenas começando. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos no Congresso e no Executivo federal.
Notas
[1] Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5217273
[3] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549
Rodrigo Vieira é professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e coordenador-líder do Digicult/Ufersa — Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais.
Vládia Marques Monteiro é advogada, mestra em Direito pelo PPGD/Ufersa e integrante do DigiCult/Ufersa.
Felipe Mariz é advogado, mestrando em Direito no PPGD/Ufersa e integrante do DigiCult/Ufersa.
Lucas Eduardo da Costa Oliveira é graduando em Direito da Ufersa e integrante do DigiCult/Ufersa.