Em momentos de crise, nas quais aspectos intimamente ligados à democracia e ao Estado de Direito são colocados à prova, algumas instituições mostram sua relevância e sua vocação na defesa dos princípios constitucionais e de uma sociedade mais justa.
Muitas vezes, é a Defensoria Pública quem assume esse papel, notadamente contramajoritário, porém essencial, para que, nos termos do que manda a Constituição, o cidadão tenha o sagrado direito de se defender, de forma técnica e qualificada.
Em 8 de janeiro de 2023, enquanto as telas transmitiam imagens assustadoras da movimentação na Praça dos Três Poderes, muitas defensoras e defensores públicos já agregavam ao próprio espanto a sensação premonitória de que dali viria um volume colossal de demandas a exigir-lhes a atuação.
Nos celulares os vídeos e as fotos dos acontecimentos na Esplanada dos Ministérios dividiam espaço com uma troca frenética de mensagens noite adentro na busca de antever os próximos passos e organizar estrutura apta a acomodar a imensa quantidade de casos que aportariam à Defensoria Pública logo na sequência. As dúvidas sobre os aspectos jurídicos ainda eram muitas diante daquele evento absolutamente excepcional: “Mas a ordem de prisão é igual pra todo mundo?”, “como vão acomodar na penitenciária aquele tanto de gente sem comprometer alimentação, higiene e saúde?”, “e as audiências de custódia? O STF vai fazer todas?”, “e os idosos e as mães de crianças?”.
Os dias que se seguiram responderam a algumas dessas perguntas e confirmaram aquele sentimento inicial — 2.151 pessoas foram presas e deveriam ser submetidas a audiências de custódia naquela segunda semana de janeiro.
Apesar da liberação de 745 logo após a identificação — idosos com mais de 70 anos ou com idade entre 60 e 70 anos com comorbidades, além de 50 mulheres que estavam com filhos menores de 12 anos nos atos — ainda restavam 1.406 para serem submetidas a audiências de custódia.
A audiência de custódia é um procedimento judicial que visa apresentar a pessoa presa ao juízo, que, por sua vez, avaliará a legalidade e a necessidade da prisão. Durante a audiência, são discutidos aspectos como as circunstâncias da prisão, o estado de saúde da pessoa presa e a existência de indícios de violência ou tortura. Permite ainda que se avalie a necessidade da prisão, podendo determinar medidas alternativas, como o uso de tornozeleiras eletrônicas. É medida de proteção dos direitos humanos e de garantia de que ninguém seja preso de forma arbitrária ou submetido a tratamentos desumanos e degradantes.
Nessa audiência é imprescindível a presença da defesa, seja pela Defensoria Pública, seja pela advocacia privada.
O súbito aumento de demanda pelo serviço de assistência jurídica a ser prestado naquele curto período exigiu que instituições se apoiassem — a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal se uniram para conseguir realizar as mais as audiências de custódia de pessoas que não podiam pagar por advogados.
A Defensoria Pública então instituiu forças-tarefa com 39 membros do órgão federal e 64 do distrital. No período de 11 a 17 de janeiro, a DPU defendeu mais de duzentas pessoas em audiências de custódia realizadas nos turnos da manhã, da tarde e da noite.
Nos casos do 8 de janeiro havia, contudo, uma peculiaridade: a condução das audiências de custódia fora delegada a juízes e juízas estaduais e federais, com o decote de um importante poder — o de decidir sobre a necessidade ou não da prisão.
A Defensoria Pública insistiu que aquele proceder nas audiências de custódia era ofensivo às garantias previstas no artigo 310 do Código de Processo Penal e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos, porque a delegação parcial de competência impedia que juízo condutor exercesse qualquer crivo sobre a necessidade da prisão.
Argumentou também em diversos processos que as prisões eram irregulares por ausência de comunicação à Defensoria Pública em até 24h horas após sua efetivação, como manda o artigo 306, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal, o artigo 5º, LXII, da Constituição Federal, e a Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça; que as prisões eram irregulares porque se originavam de ordem genérica, com indicação de aplicação de responsabilidade objetiva; que havia sido extrapolado o prazo de 24h para realização de audiência de custódia previsto no artigo 310 do CPP.
Os argumentos, todavia, não sensibilizaram e centenas de pessoas permaneceram nas penitenciárias do Distrito Federal.
A Defensoria Pública seguiu atuando em defesa dos direitos daquelas pessoas.
Nos dias 9 e 10 de janeiro de 2023, a DPU e a DP-DF inspecionaram as instalações tanto da Academia Nacional de Polícia, quanto da Academia Nacional da Polícia Federal, para conferir as condições das pessoas conduzidas, notadamente quanto à assistência médica, alimentação e acesso a informações.
Avaliaram ainda as condições da Penitenciária Feminina do DF e, acompanhadas de três peritas do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, inspecionaram o local no complexo penitenciário da Papuda onde ficariam os homens presos pelos atos – um centro de detenção que acabaria por incrementar sua população em 85%, ao receber 904 novos presos, além dos 1.200 que já mantinha.
Apesar de a administração penitenciária relatar à DPU e à DP-DF que todos os esforços estavam sendo feitos para garantir a assistência material às presas e aos presos com itens de higiene, colchões e cobertores, nas conversas com as pessoas detidas havia queixas generalizadas sobre a má-qualidade da comida.
A Defensoria Pública seguiu insistente em auxiliar na busca de soluções para esses problemas. Documentou os achados nas inspeções em um documento, o 2º Relatório Conjunto de Monitoramento de Direitos Humanos, e o entregou às autoridades federais e distritais competentes, em especial o próprio Supremo Tribunal Federal, para permitir um esforço conjunto que garantisse a dignidade das pessoas presas.
Em outra frente, a Defensoria Pública criou canais de comunicação com os familiares e passou a buscar documentos que, por exemplo, comprovassem a maternidade ou a paternidade de crianças ou adolescentes, demonstrassem vínculos de trabalho e de residência, tudo na tentativa de ancorar novos pedidos de liberdade capazes de convencer a Corte de que não havia ameaça de fuga, e de que aquelas pessoas necessitavam do trabalho para manter as próprias famílias.
A partir da documentação formalizou mais de cem pedidos de liberdade.
Eram comuns casos tristes como o da mãe que havia deixado uma filha menor com deficiência visual aos cuidados da irmã para vir a Brasília. Presa, não pode retomar os cuidados dela. O da idosa de 72 anos que causou apreensão a todos na audiência de custódia ao quase desfalecer quando soube que se discutia ali sua prisão. Havia ainda casos curiosos como o do preso que não aceitou ser visitado por sua irmã, a única da família vacinada contra a Covid-19.
Os familiares das pessoas presas passaram a enfrentar outro problema, além das questões penais. Várias tiveram suas contas bloqueadas, a pedido da Advocacia-Geral da União, o que tem causado grande dificuldade para os filhos pequenos que, além de estarem privados dos pais, não têm conseguido acessar valores deixado por eles em contas bancárias, valores estes baixos e necessários à sua manutenção imediata.
Até o final de março de 2023, 919 pessoas haviam sido denunciadas pela Procuradoria-Geral da República; 520 homens e 82 mulheres continuavam presos. A Defensoria Pública da União já apresentou 135 respostas à denúncia e se prepara para oferecer, ao menos, mais 256.
Tem defendido que aquelas pessoas não podem ser julgadas pelo STF porque não têm foro por prerrogativa de função, bem como que não podem ser genericamente acusadas de crime, ou seja, sem que a acusação aponte, individualizadamente, quais ações teriam sido concretamente praticadas por cada uma delas, como tem acontecido.
Agora no início de abril, a PGR ofertou o restante das denúncias, o que, certamente, resultará em novas intimações.
O trabalho não se encerrou, estando longe disso. Ainda chegam intimações para o comparecimento dos defensores a audiências de custódia, com todas as suas consequências: pedidos de liberdade, juntada de documentos, apresentação de defesa.
A instituição continua trabalhando diuturnamente em favor das pessoas acusadas que não tenham advogado, buscando, apesar de dificuldades estruturais já conhecidas, agir com a maior celeridade possível, seja no que respeita ao aspecto prisional (prisão cautelar), seja na elaboração de peças defensivas quanto às acusações apresentadas pela Procuradoria-Geral da República.
Talvez não seja desproporcional dizer que, sem o trabalho organizado da Defensoria, garantindo que todas as pessoas tenham defesa técnica de qualidade, o andamento dos trabalhos, ou, o que é pior, o princípio constitucional da ampla defesa, em muito ficariam prejudicados, uma vez que as condições socioeconômicas dos diversos acusados pelos atos de 8 de janeiro variam enormemente.
Essa lembrança, que, para aqueles que estão pessoal ou profissionalmente envolvidos nos processos, pode parecer despicienda, mas é essencial, pois a importância de uma instituição de defesa dos direitos humanos mostra-se justamente nos momentos de maior desafio, em que julgamentos açodados grassam e em que ouvir o outro lado mostra-se ainda mais necessário.
Bruno Arruda é defensor público da União em atuação no Supremo Tribunal Federal.