Opinião: Controle de poder com transparência e participação

Guillermo O’Donnell (1936-2011), cientista político argentino, dedicou-se entre os anos 1990 e 2000 [1] aos estudos para compreensão dos caminhos e características das democracias latino-americanas recém instituídas nas décadas anteriores.

Propôs a ideia de “democracia delegativa” como o novo tipo de regime erigido entre tais países, nos quais os pleitos eleitorais, mesmo que livres e periódicos, seriam praticamente os únicos mecanismos em que o exercício do poder seria de fato levado a algum nível de controle, o que denominou de accountability vertical. Entre os pleitos, o poder nesse tipo de democracia restaria sob reduzido controle exercido pelos cidadãos e instituições mais perenes, nas formas da accountability societal-vertical e horizontal.

Para o autor, em “democracias representativas” a accountability não restrita às eleições seria exercida com maior plenitude e cooperação entre suas dimensões popular e técnico-especializada, esta última relativa às burocracias de controle governamental. Na atual visão sobre governança pública e capacidades estatais, tais dimensões referem-se à participação e controle social, exercida por meio de conselhos de políticas públicas e de canais de denúncia e mecanismos de transparência, e ao corpo de auditores e congêneres.

No ordenamento brasileiro, esse arranjo que une sociedade e máquina pública está nos dispositivos da carta magna sobre direito à informação, princípios da administração pública, controle externo e interno, Ministério Público, conselhos etc. Um ecossistema de atores autônomos e que atuam em rede e que convivem com mecanismos de fomento e viabilização da participação popular.

Essa abordagem pressupõe que não existe “controle sem povo”. Ainda que sejam relevantes as atuações de órgãos especializados e que no Brasil eles tenham sido objeto de destaque e robustecimento, sua ação pode se ver dissociada de demandas populares e afastada dos problemas dos cidadãos no cotidiano das políticas públicas. Como resultado, representações, práticas e estruturas vêm reproduzindo uma certa tecnocracia e insulamento no funcionamento das burocracias de controle governamental, a partir um olhar que prioriza, com determinada particularização, perspectivas que excluem e reproduzem desigualdades.

E como fazer o controle burocrático encontrar a população? Uma das soluções pode estar no aprimoramento do controle com o binômio transparência e participação social. Esse binômio indissociável funda-se a partir de princípios constitucionais cuja efetivação vem sendo implementada pelos mais diversos arranjos políticos-institucionais, que têm como exemplos paradigmáticos a construção de uma institucionalidade de conselhos, comitês, grupos de trabalho e outros espaços que vêm auxiliando a administração pública na tomada e na implementação de um arcabouço jurídico voltado à transparência, e cujo destaque maior pode ser dado para a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2021), marco desse movimento.

Este breve artigo discute a recente iniciativa do governo federal brasileiro por meio da edição do Decreto nº 11.529, de 16 de maio de 2023, a partir da problemática do “controle sem povo” no Brasil. Cabe indicar que o decreto, limitado ao Poder Executivo federal, “Institui o Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal e a Política de Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal“.

De um lado, esse novo ato busca aprimorar a escolha já trilhada pelo governo federal de adoção do modelo da “integridade pública” para sistematizar componentes estruturais e instrumentais de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e correlatas. De outro, visa reforçar a transparência e o acesso à informação, à medida em que traz princípios, objetivos e diretrizes comuns, inseridos em um sistema estruturante junto com a integridade, como já existe para a função auditoria interna, ouvidoria e corregedoria no executivo federal.

Não se pretendendo uma interpretação necessariamente teleológica do decreto, a partir de uma leitura mais atenta, é possível indicar que o aprimoramento buscado na sistematização do exercício do controle de práticas de corrupção e correlatas está primeiramente refletido na nova divisão de papéis e responsabilidades entre as estruturas central e setoriais de orientação, coordenação, monitoramento e avaliação. Como segundo ponto, junta-se ainda a reafirmação da escolha da abordagem de gestão de riscos como perspectiva teórica e metodológica a partir da qual deve-se aportar a análise e a mensuração das práticas relacionadas ao exercício do poder que representam o alvo deste controle, bem como a definição das bases para priorização e adoção de medidas para sua efetivação.

Mas a grande novidade em relação à problemática do “controle sem povo”, pelo menos em relação ao exercício do poder no âmbito do Executivo federal, dado que o decreto não alcança outros Poderes e esferas, está no fato de que ele aponta para a fusão em um único arranjo de dois temas relevantes para a participação social e, logo, para a cooperação entre as dimensões popular e burocrática do controle.

Aperfeiçoando a transparência ativa e passiva e sua relação com os demais componentes instrumentais e estruturais da integridade pública, esse novo ato tem o potencial de que essa mesma transparência venha a temperar o pragmatismo do ideário da integridade, trazendo o cidadão para a equação, em um desenho inovador e que pode trazer ganhos na interação das diferentes vertentes da accountability, tão necessária para a consolidação de uma democracia que se pretenda representativa.

Porém, o Decreto nº 11.529, mesmo que relevante, representa não mais que um passo no longo caminho de estratégias, esforços, erros e acertos a serem empreendidos. Vale destacar que o protagonismo do Poder Executivo federal pode resultar em certa limitação e isolamento frente aos demais poderes políticos e esferas, e que ainda persiste uma certa ideia normativa entre estes temas que se reflete entre análises e propostas que pressupõem, de forma simplista, que mais transparência acarreta mais participação, que resulta em mais controle, que, por fim, melhora a democracia. A trajetória de construção de um novo “controle com povo” depende de boa dose de aprendizado e do compromisso permanente entre atores e forças da sociedade e do setor público, de um diálogo que seja amplo, permeável e, finalmente, democrático.

Como anotações para discussões futuras, pode-se apontar alguns eixos a serem acompanhados por pesquisadores, estudiosos do tema, técnicos que trabalham com a questão, e, principalmente, a sociedade civil.

a) A conexão da formulação teórico-política do decreto com a discussão as estruturas de participação política existentes hoje na sociedade, a saber: conselhos ou estruturas digitais de participação ;

b) Avaliação acerca de como as dimensões propostas no decreto vão sendo desenvolvidas e que boas práticas desse desenvolvimento podem ser ampliadas e difundidas na administração pública ; e

c) A percepção dos agentes públicos envolvidos na implementação do decreto, destacando as principais dificuldades desse processo e os ganhos que dele vieram.

Diante dessas considerações e reflexões, nosso desejo é que em um futuro não muito distante o título de nosso singelo artigo reflita as mudanças feitas pela legislação em comento e, estabelecendo as bases para um controle popular para a integridade pública.

Ana Claudia Farranha é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), com estágio pós-doutoral na Oklahoma University e no Gemaa/Iesp/Uerj, e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ) e cumpre estágio pós-doutoral em Saúde Coletiva (Iesc/UFRJ).

Temístocles Murilo de Oliveira Júnior é doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ) e cumpre estágio pós-doutoral em Ciências Militares (PPGCM/IMM/Eceme).

Consultor Júridico

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