Opinião: Da liberdade de expressão no contexto das fakes news

A liberdade de expressão é um direito fundamental previsto na Constituição de 1988 (artigo 5º, incisos VI, VIII e IX, CF). Esse direito foi tutelado no contexto da primeira geração/dimensão dos Direitos Humanos (liberdades clássicas), na luta contra o absolutismo, resultante das revoluções liberais (inglesa, americana e francesa) nos séculos 18 e 19.

No que diz respeito ao conteúdo jurídico da liberdade de expressão, Tavares esclarece:

“É um direito genérico que finda por abarcar um sem número de formas e direitos conexos, e que não pode ser restringido a um singelo externar sensações ou intuições, com a ausência de elementar atividade intelectual, na medida em que a compreende” [1].

Dessa forma, a liberdade de expressão compreende a liberdade de manifestação de pensamento, de comunicação, de informação, de acesso à informação, de opinião, de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão. A mesma se aplica no meio acadêmico, político, religioso, jornalístico, artístico, dentre outras áreas de atuação humana.

No que diz respeito as fake news (notícias falsas deliberadas), as mesmas são disseminadas nos meios de comunicação (redes sociais, jornais, aplicativos de mensagens, revistas, canais de televisão, entre outros), para levarem as pessoas a terem uma visão deturpada sobre determinado assunto, o que pode resultar em um impacto negativo no cotidiano dos indivíduos. Muitas vezes são acompanhadas de ataques a reputação de indivíduos ou instituições. 

A disseminação das fake news são capazes de induzirem a erro, as mais simples tomadas de decisões. Não bastasse isso, o diagnóstico equivocado da realidade, as mentiras, e as verdades mescladas com falsidades, tornam as análises da vida em sociedade sempre duvidosas e inseguras, gerando um clima de incerteza diante da necessidade de se posicionar ou agir entre as pessoas. Deste modo, as fake news levam um tempo para serem aceitas como informações falsas, pois mesmo depois de desmascaradas, elas podem distorcer as percepções das pessoas. Além do mais, existe a possibilidade destas persistirem por muito tempo ou retornar em determinada ocasião. 

Assim, surge a questão sobre a possibilidade da limitação da liberdade de expressão no contexto da prolação de fake news. Nesta linha de pensamento, Rafael Barretto leciona que:

“Os parâmetros da limitação de um direito podem estar expressos no texto constitucional ou podem ser extraídos do sistema constitucional, sendo importante compreender que mesmo quando não haja previsão expressa da possibilidade de limitação do direito, será sim possível fazê-lo se necessário para harmonizá-lo com outros bens jurídicos.” [2]

Desta maneira, a liberdade de expressão terá limitação quando seu conteúdo colocar em risco uma educação democrática, livre de ódio e amparada no valor intrínseco de todo indivíduo. Para o ministro Gilmar Mendes, haverá o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, quando esta for reduzida à singela condição de objeto, sendo apenas um meio para satisfazer algum interesse imediato.

“O ser humano não pode ser exposto — máxime contra a sua vontade — como simples coisa motivadora da curiosidade de terceiros, como algo limitado à única função de satisfazer instintos primários de outrem, nem pode ser reificado como mero instrumento de divertimento, com vistas a preencher o tempo de ócio de certo público. Em casos assim, não haverá exercício legítimo da liberdade de expressão, mas afronta à dignidade da pessoa humana.” [3]

Indubitavelmente, o exercício da liberdade de expressão encontra limites na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF), ou seja, de pessoas afetadas ou determinados grupos, quando for utilizada para veicular mensagens de teor discriminatório e destinadas a incitar o ódio e a violência. Logo, admite-se restrições na liberdade de expressão, quando ela entra em conflito com direitos fundamentais de outrem, sendo estes individuais ou coletivos.

Nos últimos anos, as chamadas fake news ganharam notoriedade na mídia, meios de comunicação e na internet, principalmente, nas últimas eleições presidenciais. Elas cresceram rapidamente na sociedade, sendo um motivo de discussão e reflexão no meio jurídico, principalmente no Supremo Tribunal Federal. Assim, seguem alguns posicionamentos do STF sobre o assunto:

“LIBERDADE DE EXPRESSÃO E PLURALISMO DE IDEIAS. VALORES ESTRUTURANTES DO SISTEMA DEMOCRÁTICO. INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS NORMATIVOS QUE ESTABELECEM PREVIA INGERÊNCIA ESTATAL NO DIREITO DE CRITICAR DURANTE O PROCESSO ELEITORAL… 1. A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático… 3. São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático… 5. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional.” [4]

Assim, no presente julgado ficou claro que a liberdade de expressão engloba a manifestação de opiniões até mesmo duvidosas, exageras, errôneas e condenáveis. Porém, o STF também já apontou a necessidade de relativização dos direitos fundamentais, afirmando que um direito individual “não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas” (RT, 709/418). Neste contexto, o Supremo posiciona-se no sentido de que, regra geral, o exercício do direito da liberdade de expressão não pode ser violado e muito menos diminuído, porém, por outro lado, as fakes news (notícias falsas deliberadas) devem ser penalizadas e restringidas ao menor potencial ofensivo possível, para que se possa viver em uma sociedade democrática de direito. O julgamento da ADPF 572, consagrou que:

“ADPF. INCITAMENTO AO FECHAMENTO DO STF. AMEAÇA DE MORTE E PRISÃO DE SEUS MEMBROS… A MANIFESTAÇÕES QUE DENOTEM RISCO EFETIVO À INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE IMPRENSA. 

(…) 2. Nos limites desse processo, diante de incitamento ao fechamento do STF, de ameaça de morte ou de prisão de seus membros, de apregoada desobediência a decisões judiciais, arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada totalmente improcedente… 3. Resta assentado o sentido adequado do referido ato a fim de que o procedimento, no limite de uma peça informativa: a) seja acompanhado pelo Ministério Público; b) seja integralmente observada a Súmula Vinculante nº14; c) limite o objeto do inquérito a manifestações que, denotando risco efetivo à independência do Poder Judiciário (CRFB, artigo 2º), pela via da ameaça aos membros do Supremo Tribunal Federal e a seus familiares, atentam contra os Poderes instituídos, contra o Estado de Direito e contra a Democracia; e d) observe a proteção da liberdade de expressão e de imprensa nos termos da Constituição, excluindo do escopo do inquérito matérias jornalísticas e postagens, compartilhamentos ou outras manifestações (inclusive pessoais) na internet, feitas anonimamente ou não, desde que não integrem esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais.” [5]

A ADPF 572 se trata do “inquérito das fake news” (Inquérito n° 4.781). A investigação foi realizada em relação às ameaças e ataques sofridos pelos ministros da Suprema Corte, bem como pela própria instituição. Ademais, também investiga a propagação/disseminação de conteúdos falsos e antidemocráticos nos meios de comunicação, principalmente, na internet e redes sociais.

Assim sendo, ao que parece, o STF entende que a liberdade de expressão não pode ser tolhida ou restringida em decorrência de opiniões impopulares ou até errôneas. Porém, se assumir forma de informações falsas deliberadas (fake news), ou se tornar discurso de ódio, a mesma será limitada ou restringida. De fato, nestes casos se configuraria um desvirtuamento ou abuso de direito no exercício da liberdade de expressão.

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[1] TAVARES, 2021, p.209.

[2] BARRETTO, 2019, p. 56.

[3] MENDES, BRANCO, 2022, p.128.

[4] (ADI 4451, relator (a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-044 DIVULG 01-03-2019 PUBLIC 06-03-2019).

[5] ADPF 572, relator (a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-271 DIVULG 12-11-2020, PUBLIC 13-11-2020 REPUBLICAÇÃO: DJe-087 DIVULG

06-05-2021 PUBLIC 07-05-2021).

 

Referências

BARRETTO, Rafael. Direitos Humanos. 9 ed. São Paulo; JusPodivm, 2019.

STF. Disponível no site: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=Fake%20News&sort=_score&sortBy=desc 

STF. Disponível no site: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinônimo=true&plural= true&page=1&pageSize=10&queryString=fake%20news&sort=_score&sortBy=desc 

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet (null). Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral: comentários aos artigos 1° a 5° da Constituição da República Federativa do Brasil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2021.

OLIVEIRA, André Soares; GOMES, Patrícia Oliveira. Os limites da liberdade de expressão: fake news como ameaça a democracia. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, 2019. Disponível em: https:// sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1645 – Acesso em: 27.mar.2022.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. Salvador: Saraiva, 2020.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

Bruno Marini é professor de Direito na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), mestre em Desenvolvimento Local com foco em Direitos Humanos pela UCDB e especialista em Direito Constitucional pela Uniderp.

Joyce Ferreira de Melo Marini é advogada, mestra em Estudos Fronteiriços pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e consultora jurídica em Direito Migratório.

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