De onde surgiu a agenda Environmental, Social and Governance (ESG), tão difundida no ambiente empresarial e, de forma mais recente, no ambiente governamental? Datada de 2004, surge de uma publicação do Pacto Global da ONU em parceria com o Banco Mundial, chamada “Who cares wins: connecting financial markets to a changing world”, e traz recomendações para o setor financeiro, área em franca expansão à época, propondo uma agenda no sentido de que as organizações considerem a necessidade (e sejam premiadas por) inserir uma pauta positiva de práticas ambientais, sociais e de governança nas suas atividades.
Na prática, a agenda ESG implica em uma ação de caráter regulatório, que estimula os investidores a direcionarem suas aplicações às organizações que tenham pactuado a adesão a determinados padrões que geram valor para a sociedade, externalidades positivas, e que têm como efeito um movimento das empresas no sentido de aderir a esses cânones e, consequentemente, à produção desses resultados na prática.
Passados quase 20 anos da pedra fundamental, recentemente no Brasil a agenda ESG, que tinha como principal foco as empresas privadas, vem ganhando força no setor público. Em um primeiro momento, trata-se de como as organizações públicas, em um agir regulatório, podem incentivar a adesão do setor privado a regras que de alguma forma restringem a atividade econômica, de forma a promover benefícios coletivos.
Até aí, o que tem sido entendido como ESG no setor público se harmoniza com o princípio constitucional refletido no artigo 5º, inciso XXIII, e artigo 170, inciso III, que tratam da função social da propriedade privada. Nesse sentido, a promoção da solidariedade, da justiça social, do valor social do trabalho, da dignidade da pessoa e dos valores ambientais devem ser também objetivos das empresas, de forma a balancear os interesses individuais e sociais, e o Estado tem um papel indutor nesse sentido.
No entanto, o discurso da aplicação da ESG nos governos vem sendo expandido não apenas como uma atuação regulatória, um incentivo do setor público para o setor privado, no sentido de criar exigências a serem cumpridas pelos fornecedores ou mesmo de promover selos para as empresas que cumprem sua função social, mas também como a materialização de um compromisso programático que o próprio setor público pretende assumir para si, no desempenho de suas ações.
Sob o olhar do Poder Executivo federal, a temática ESG vem sendo cada vez mais vinculada à ideia da promoção da integridade, cuja definição proposta pelo Inciso I do artigo 3º do Decreto nº 11.529, de maio de 2023 (Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação), expandiu o conceito explicitado no artigo 19 do Decreto nº 9.203, de novembro de 2017 (Decreto de governança). Se vê no ano de 2023 uma repaginação de uma agenda posta, com pinceladas de questões ligadas à própria carteira temática da ESG, que de alguma forma corporifica essas novas discussões. A agenda ESG surge como um grande modulador do tema da integridade.
O decreto de governança concedia aos programas de integridade a competência de instituir mecanismos de prevenção, detecção, punição e remediação de fraudes e atos de corrupção. Já no novo decreto, há um redesenho, no qual se propõe que, além destes temas, cabe aos programas de integridade instituírem procedimentos e mecanismos de prevenção, detecção e remediação de desvios éticos e de conduta, de violação ou desrespeito a direitos, valores e princípios que impactem a confiança, a credibilidade e a reputação institucional. Nesse sentido, programas de integridade se expandem para aglutinar as letrinhas ESG, vinculando-as a questões relacionadas ao combate à discriminação e à necessidade de inclusão e respeito a valores democráticos.
Por sua vez, o Tribunal de Contas da União (TCU) vem adotando medidas no sentido de incentivar a pauta ESG no setor público (Acórdão TCU nº 1.205-Plenário, de julho de 2023), a partir da reflexão interna de que apenas a dimensão governança não seria suficiente diante do que os técnicos do TCU chamam de “amadurecimento da sociedade brasileira”, necessitando-se incluir outras pautas, sintonizado com as discussões em voga, como é natural.
A ideia do TCU está refletida na proposta de remodelagem do seu instrumento de mapeamento da maturidade das unidades jurisdicionadas denominado IGG, que faz o levantamento do Perfil Integrado de Governança Organizacional e Gestão Pública, propondo uma nova fundamentação, na premissa de que “ao adotar práticas ESG, organizações públicas tendem a se tornar mais eficientes, uma vez que a sustentabilidade pode gerar redução de custos, além de conferir legitimidade à gestão das organizações respondentes”.
O TCU foi um dos fomentadores da temática da governança pública, influenciando diretamente a concepção do decreto que criou a política de governança pública federal de 2017, cuja definição de governança se remete à governança corporativa, derivada do setor privado, presente no Referencial de Governança que o TCU já havia publicado em 2014. A mudança proposta pelo novo acórdão que está tratando do IGG é a inserção de novos elementos na conceituação dessa governança, em mais um exemplo da influência da agenda ESG no setor público brasileiro.
Diante desses dois movimentos de aproximação da agenda ESG apresentados, a reflexão proposta neste artigo discute se é possível que a apropriação da temática ESG pelo setor público possa ir na direção de um Estado que se aproxime da sociedade ou se se tornará apenas mais uma obrigação burocrática para as organizações públicas, comparando-as com as organizações do setor privado, e isso depende muito dos rumos que essas iniciativas vinculadas aos órgãos de controle tomarão e de como a agenda ESG irá influenciá-las.
Para subsidiar de forma teórica essa discussão, vamos recorrer à relação entre linguagem e realidade. É por meio da linguagem que construímos o que entendemos por realidade. A compreensão que temos das situações que vivemos é delimitada pela linguagem que dominamos. Nesse sentido, linguagem e discurso, realidade e contexto, são conceitos que se inter-relacionam, não podendo ser tratados como “neutros” ou “científicos”. Trata-se, portanto, de considerar o discurso não apenas pelo que é dito, mas em que contexto é dito – onde, quando, como e por quem foi dito.
Como pauta indutora, mas que tem sua gênese estritamente voltada ao setor privado, a agenda ESG é de alguma forma limitante, ao exigir das organizações a adesão a regras que de alguma forma restringem a atividade econômica. Utilizada no setor público com esse viés, o ESG seria, portanto, uma forma de tratar as organizações públicas de forma similar às privadas, gerando mais burocracia, desconsiderando suas peculiaridades e o porquê da sua existência, que tem a ver com a entrega de políticas públicas necessárias à sociedade.
Por outro lado, se a pauta ESG for utilizada de forma integrada à formulação e implementação das políticas públicas propostas pelo Estado, deixaremos de apenas reproduzir o modelo criado para o setor privado e passaremos a considerar questões desafiadoras para as políticas públicas, quais sejam: como identificar qual modelo de governança é mais adequado para determinada política, de que forma questões ambientais devem ser tratadas na hora de desenhar determinada política, e ainda, como poderemos incluir cada vez mais cidadãos nas decisões sobre as políticas públicas que são propostas para resolver os problemas da sociedade.
Está posto o dilema: qual dos dois discursos sobre ESG irá prosperar no setor público? Façam suas apostas.
Fernanda Guedes Araujo é mestre em Gestão Estratégica de Organizações pelo Centro Universitário IESB.
Patrícia Álvares Cruz é Juíza Coordenadora do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedora da Polícia Judiciária da Capital de São Paulo.