Opinião: Excessiva aplicação da preventiva no combate as drogas

O ordenamento jurídico brasileiro prevê a possibilidade de decretação de prisões cautelares como forma de garantir o cumprimento da lei e, consequentemente, o devido processo legal. Para tanto, utiliza-se de prisões em flagrante, temporárias e preventivas, todas espécies da prisão cautelar.  

Segundo Renato Brasileiro, “prisão cautelar (carcer ad custodiam) é aquela decretada antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória com o objetivo de assegurar a eficácia das investigações ou do processo criminal” [1]. Essa medida nada mais é do que uma providência urgente adotada pela autoridade competente para cumprir a finalidade instrumental do processo e, assim, realizar uma justa prestação jurisdicional [2].

No momento da decretação da prisão cautelar, não há qualquer análise da culpabilidade do agente  aferida apenas durante a prolação da sentença, quando todas as provas acusatórias e defensivas já foram produzidas. O que se avalia nesse momento processual, portanto, é a possível periculosidade causada à instrução penal pela liberdade do agente.

Tal instrumento, contudo, não é o meio utilizado para satisfazer a sociedade sobre determinado crime cometido. É indispensável que haja justa causa para decretá-la e, por óbvio, para mantê-la, não se podendo utilizar como fundamento para o decreto a mera opinião pública. 

Fato é que as medidas cautelares buscam proteger o processo como um todo, de modo a evitar quaisquer riscos de impunidade. Todavia, mesmo nesse cenário, a prisão preventiva jamais poderá ser utilizada pelo Estado para punir antecipadamente o sujeito que, em tese, teria cometido determinado delito, sob pena de macular o princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.

É por esse motivo que a prisão preventiva é ultima ratio. Essa modalidade de prisão traz como consequência a privação de liberdade do sujeito antes do trânsito em julgado. Desse modo, para não violar o princípio da não culpabilidade, somente será decretada para proteger a persecução penal e se for a única alternativa cabível [3].

O Código de Processo Penal é expresso ao prever as possibilidades para se decretar a prisão preventiva de determinada pessoa. Nos termos do artigo 312 do referido dispositivo, “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

O §1º do mesmo artigo, por sua vez, determina que “a prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares”.

Por certo, mesmo nos casos em que os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal se satisfazem, é indispensável que a autoridade judicial exerça o seu dever de fundamentar as decisões judiciais, o qual está previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, e demonstre a necessidade, proporcionalidade e contemporaneidade da medida aplicada, senão estará manifesto o constrangimento ilegal sofrido pelo sujeito.

Afirma-se isso porque, na advocacia criminal, é perceptível como o Poder Judiciário — em especial as instâncias ordinárias  banaliza a prisão preventiva e a aplica de forma imoderada, em manifesta desproporcionalidade, quando poderia substitui-la por outra medida menos gravosa. Isso se vê especialmente nos casos que envolvem tráfico de entorpecentes. Logo, indaga-se se seria essa uma alternativa encontrada pelo Judiciário e pelo Ministério Público para combater as drogas. Em caso afirmativo, antecipa-se, desde já, que essa solução é equivocada e não resultará em efeitos práticos positivos ao sistema prisional brasileiro e tampouco à sociedade.

Comumente, o Superior Tribunal de Justiça precisa corrigir ilegalidades cometidas pelas instâncias ordinárias, especialmente quanto à decretação de prisões preventivas em desfavor de pessoas primárias que teriam sido presas em flagrante com quantidade ínfima de drogas. Levar tais discussões aos Tribunais Superiores significa retardar — e muito — o julgamento de diversas causas relevantes, pois o excesso de demandas nessa matéria sobrelota os gabinetes quando poderiam ter sido facilmente resolvidas na origem. 

Sobre esse ponto, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC n.º 520.166/PA, reconheceu o constrangimento ilegal cometido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará quando não revogou a prisão preventiva do paciente, o qual foi preso com seis gramas de crack e 26 gramas de maconha, não era reincidente e já estava acautelado há mais de cinco meses.

Em um trecho do voto, o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca aduz que “a finalidade específica do cárcere cautelar deve ser a de possibilitar o desenvolvimento válido e regular do processo penal. Vale dizer, somente há de ser decretado quando houver nos autos elementos concretos que indiquem a real possibilidade de obstrução na colheita de provas, ou a real possibilidade de reiteração da prática delitiva, ou quando o agente demonstre uma intenção efetiva de não se submeter à aplicação da lei penal” [4].

A mesma Turma, no julgamento do HC nº 528.149/SP, também reconheceu a ilegalidade praticada pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) que manteve a segregação cautelar  e domiciliar  da paciente que foi presa na posse de 23,25 gramas de cocaína mesmo após se apresentar espontaneamente à autoridade policial, confessar o crime e apontar que desejava parar de traficar [5].

A 6ª Turma do STJ, no julgamento do HC nº 415.743/PR, também se posicionou pela revogação da prisão preventiva do paciente que foi preso com 29 gramas de maconha e 0,05 gramas de crack, uma vez que manifestamente desproporcional e não havia outro motivo concreto para justificá-la [6].

De igual modo, ao julgar o RHC nº 121.912/SP, essa Turma entendeu pela necessidade de reformar o acórdão proferido pelo TJ-SP, pois o mero fato de o paciente ter sido agraciado antes com o benefício de suspensão condicional do processo não basta para justificar a decretação de sua prisão preventiva, ainda mais se a quantidade de droga apreendida for baixa — dois gramas de crack e 16 gramas de maconha [7].

A prisão cautelar com o fim de sobrestar o crime de tráfico de entorpecentes é mera ilusão processual. Na situação do sistema carcerário brasileiro, que transita entre celas lotadas, com pouca ventilação, higiene prejudicada, alimentação precária e, por vezes, infestações de ratos ou baratas, colocar em cárcere pessoas que ainda não foram julgadas é apresentá-las a uma realidade delinquente imerecida.

Além disso, em que pese o vasto leque, a superlotação é, talvez, a maior das problemáticas do sistema penitenciário brasileiro. Considerado o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, atualmente o sistema funciona com, aproximadamente, 50% acima da sua capacidade de lotação.

Grande parte da carência de vagas se dá pela quantidade de presos detidos provisoriamente, aguardando seus julgamentos enquanto perdem suas vidas para um sistema falido, de flagrante violação de direitos e ofensas às garantias fundamentais. Percentualmente, em torno de 35% da população carcerária ainda não teve condenação transitada em julgado e, portanto, aos olhos da lei, são inocentes.

Há não muito, no julgamento da ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal declarou o sistema carcerário brasileiro em Estado de Coisas Inconstitucional. Segundo reconhecido pelo ministro Edson Fachin, os estabelecimentos penais, nos moldes atualmente executados, funcionam como instituições segregacionistas de grupos vulneráveis, objetivando não a reintegração social, mas, sim, a reincidência.

No mesmo sentido, Foucault, em Vigiar e Punir [8], definiu que o encarceramento atinge o seu objetivo na medida em que suscita uma forma particular de ilegalidade, produzindo uma espécie de delinquência organizada.

Poder-se-ia pensar que as prisões cautelares são as únicas capazes de resguardar a ordem pública, a devida instrução processual e combater a temida  e fantasiosa  impunidade. Contudo, a realidade do direito penal é outra.

O Código de Processo Penal prevê, em seu artigo 319, não apenas uma, mas nove medidas cautelares diversas da prisão aptas a garantir a ordem pública, econômica, a devida instrução criminal e aplicação da lei penal. Nesse sentido, são previstos o comparecimento periódico em juízo, a proibição de acesso ou frequências a determinados lugares, a proibição de contato com determinadas pessoas, a proibição de ausentar-se da Comarca, recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga, suspensão do exercício de função pública ou atividade econômica, internação provisória (em casos de inimputáveis ou semi-imputáveis) com risco de reiteração, fiança e o monitoramento eletrônico.

Com tantas medidas cautelares diversas da prisão, por qual motivo ainda se mantém preso provisoriamente o sujeito que foi pego com quantidade ínfima de droga ou mesmo aquele detido com uma quantidade significativa, porém que aguarda o desfecho da ação penal em cárcere sem que haja justa causa para fundamentar sua prisão preventiva? Não se tem resposta.

De fato, o sistema carcerário precisa respirar e a prisão preventiva não poderá mais servir de instrumento de guerra às drogas ou como panaceia para um sistema processual penal falido.

Aline Padilha Martins e Silva é advogada criminalista em Nishizawa Advocacia, pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e membro das comissões de Ciências Criminais, de Diretos Humanos e de Liberdade Religiosa da OAB-DF.

Edison Grossi de Andrade Júnior é professor decano e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica na Universidade Paulista (Unip), advogado sênior, diretor adjunto da Escola Superior de Advocacia (ESA/DF), membro da Comissão Nacional do Exame de Ordem da OAB, da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/DF e do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Boliche (STJDF/CBBOL), especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (Ucam/RJ) e mestrando em Direito pela Universidade La Salle (UniLasalle/RS).

Thainá Rodrigues Leite é advogada criminalista em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados, pós-graduanda em Penal e Processo Penal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional e membra das comissões de Direitos Humanos e de Ciências Criminais da OAB-DF.

Consultor Júridico

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