Opinião: Fishing expedition e sua interpretação testritiva

Nos últimos seis meses, a sociedade catarinense acompanhou ao menos sete operações policiais deflagradas pela Polícia Civil (Gaeco) em face de prefeituras municipais por todo o estado de Santa Catarina.

“Mensageiro, primeiro round, juntando as peças, esculápio, garau, lata velha e midas dos ganchos” são algumas das operações que têm como foco investigar ilícitos no âmbito das instituições públicas catarinenses.

Através de medidas invasivas — busca e apreensão, prisões temporárias e preventivas, medidas cautelares de afastamento do cargo público , investiga-se supostos crimes de fraude à licitação, corrupção ativa e passiva, organização criminosa, lavagem de dinheiro, fraude, dentre outros delitos de natureza econômica.

É evidente que o combate à corrupção é de suma importância para o bom funcionamento das instituições. A coisa pública não deve servir de escudo ou constituir privilégios àqueles que se utilizam de suas posições para a prática de crimes.

É dever do Estado investigar e prevenir ilícitos. Acontece que qualquer indício de investigação deve ser baseado em um mínimo de solidez para fins de consolidar a opinio delicti. Assim, com a propositura da ação, esses indícios têm o condão de limitar o objeto da acusação da mesma maneira que viabilizar a decisão judicial quanto ao seu recebimento, quando for o caso.

Deflagrações de operações amplas e genéricas e com possibilidade de simples procura especulativa de prova, sem alvo definido, com desvio de finalidade ou sem elementos de provas capazes de responsabilizar os sujeitos são perigosas e sobremaneira ilegais.

É o que se entende por fishing expedition, ou pesca probatória. Isso acontece quando os agentes investigativos não possuem elementos indiciários contra alguém, mas apenas “convicção” [1] de que encontrarão irregularidades ou indícios de delitos.

Tecnicamente, o conceito de fishing expedition se refere a “uma investigação que não segue o objetivo declarado, mas espera descobrir uma prova incriminadora ou digna de apreciação […] sem definição ou propósito, na esperança de expor informação útil” [2].

Busca e apreensão sem alvo definido, vasculhamento de conteúdo além do autorizado do celular apreendido, continuidade da busca e apreensão depois de obtido o material objeto da diligência, investigações criminais dissimuladas de fiscalizações de órgãos públicos. Esses são alguns exemplos da prática dentro do processo penal que, além de ilegais, inviabilizam a investigação e violam direitos fundamentais.

Um instrumento muito comum em investigações desta natureza é a denúncia anônima. Nesses casos ela funciona como uma “arma de guerra” (lawfare) para motivar a deflagração de operações irregulares e perseguir inimigos políticos, sobretudo se considerada a acirrada disputa por espaços em prefeituras, secretarias e câmaras de vereadores.

É importante lembrar que “a denúncia anônima não tem valor jurídico, sendo impossível instaurar o inquérito com base em um ato sem qualquer eficácia jurídica” [3]. É claro que ela possui algum valor investigativo, mas somente após a colheita de elementos mínimos ou comprovação da denúncia anônima é que se torna possível a instauração de inquérito policial.

Ou seja, são investigações meramente especulativas e indiscriminadas, que podem inclusive ser consideradas como atos de improbidade administrativa que causam prejuízo aos cofres públicos (malversação do dinheiro público), pois são feitas sem respeitar as regras do ordenamento jurídico.

Por isso mesmo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a importância em combater a pesca probatória em investigações policiais: “a proibição do fishing expedition busca exatamente coibir essa conduta dos agentes públicos de buscar provas relativas a fatos não investigados com base em medidas de disfarçada ilegalidade” [4].

O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, consolida seu entendimento de duas maneiras: no HC 663.055-MT, julgado em 22/03/2022 (Informativo 731), a 6ª Turma do STJ decidiu que “admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade”.

E, muito embora se reconheça a prática do fishing expedition, considerando-a ilegal inclusive, o STJ mantém hígido seu entendimento quanto ao encontro fortuito de provas, afirmando, no julgamento do recurso em Habeas Corpus nº 150.354-PR, em 18/3/2022, ser “válidas as provas encontradas casualmente por agentes da persecução penal relativas a infrações penais até então desconhecidas, no curso do cumprimento de medidas de investigação autorizadas para apuração de outros delitos”.

A diferença está na configuração do desvio de finalidade na execução dessas diligências. A configuração do desvio de finalidade, segundo o STJ, deve ser estreme de dúvidas, latente, incontroverso, o agente deverá estar totalmente desprovido de qualquer indício acusatório. E sabemos que não é assim porque a prática nos ensina diferente.

E, com isso, o STJ firma entendimento restritivo no reconhecimento da pesca probatória. Quer dizer, a instauração de investigação, ainda que em crime totalmente distinto do que se descobre posteriormente, legitima o poder de encontrar provas “casualmente” que direcionem à nova investigação, pondo em xeque a garantia contra a autoincriminação.

Há muito chão ainda para se percorrer a fim de encontrar um equilíbrio no poder estatal de persecução penal quanto à observação das garantias e direitos individuais, sobretudo quando as consequências de eventuais medidas invasivas em face de figuras públicas podem gerar consequências que transcendem as pessoas investigadas, atingindo as instituições e o próprio Estado democrático de Direito.

As investigações policiais e suas medidas invasivas precisam indicar antecipadamente e com precisão a finalidade que querem alcançar, bem como delimitar expressamente o alcance das diligências, com base em elementos mínimos de autoria e materialidade.

O combate à corrupção não pode ser expressão sutil do punitivismo. Caso contrário, a instrumentalização do poder investigativo será exercida em detrimento de preceitos constitucionais, especialmente a presunção de inocência, o devido processo legal e a vedação de provas ilícitas.

Rafaela Baldissera é advogada e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Eduardo Herculano é advogado, procurador da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abacrim).

Consultor Júridico

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