Opinião: Função exercida pelas regras segundo Schauer

Segundo Frederick Schauer, toda regra é uma generalização. Seja ela uma regra descritiva, que se limita a atestar ou a descrever certos fatos, ou uma regra prescritiva, destinada a guiar, controlar ou alterar o comportamento daqueles a que ela se destina, fato é que somente faz sentido se falar em regras caso seu conteúdo derive de uma generalização.

Quando esta não está presente não podemos falar em regras, mas apenas em ordens ou comandos específicos. Basta notar, diz Schauer, que chamamos de regra a proibição contida em uma placa para que as pessoas em geral não pisem na grama, mas não chamamos de regra uma instrução dada por alguém numa situação específica para que não pisemos na grama [1].

As regras prescritivas, que são o foco das preocupações de Schauer, se subdividem em duas espécies: instruções e mandamentos. As primeiras são regras que, por si só, não geram um dever de obrigação perante o seu destinatário. São regras justificadas por considerações instrumentais, no sentido de que indicam um curso de ação a ser seguido na persecução de seus objetivos.

Por isso, caso o indivíduo entenda que seguir a instrução não levará ao resultado pretendido, ele está livre para ignorá-la e agir da forma que achar melhor. Somente devemos agir de acordo com instruções quando acreditarmos que “[…] segui-las nos poupa tempo ou energia, ou que elas diminuem a probabilidade de erros e ansiedade na tomada de decisões” [2].

Mandamentos, por outro lado, não são de observância meramente opcional, e isso porque eles exercem uma pressão normativa sobre o indivíduo mesmo quando ele, tudo o mais considerado, acredita que obedecê-los não levará ao melhor resultado. Isso não quer dizer, é claro, que a força das regras mandatórias seja absoluta, até mesmo porque, como lembra Schauer, em muitos casos existe uma diferença entre aquilo que temos uma razão para fazer e aquilo que devemos, de fato, fazer.

A questão é: quando diante de instruções o indivíduo tem a faculdade de segui-las ou não, de acordo com o seu próprio entendimento, e se ele opta por não seguir a instrução a pressão normativa até então por ela exercida desaparece. Já quando diante de mandamentos o indivíduo possui uma razão para agir conforme o prescrito pela regra mesmo quando acredita que a descumprir levará ao melhor resultado [3].

Exemplificando: “use a fonte times new roman em seus textos” é uma instrução. Caso o agente queira usar outra fonte, por qualquer motivo que for, ele pode ignorar a instrução, que a partir de então não exercerá qualquer pressão sobre ele. Já “Não dirija com velocidade acima de 80 km/h” é uma regra mandatória. Ela fornece uma razão para ação por si só, que é independente do seu valor em algum caso particular, do fato de que ela levará ao resultado almejado ou não.

Mas, como visto, mandamentos não são absolutos. Podem existir razões em sentido contrário que justifiquem a sua violação, como, por exemplo, dirigir a 100 km/h para levar uma criança com crise alérgica ao hospital. Neste caso a violação à regra está justificada em uma outra razão para ação, tida pelo indivíduo como superior à razão que ele possui para agir conforme a regra. A força exercida pela regra, contudo, continua presente, tanto que ele deve ser multado por dirigir acima da velocidade permitida.

Seguindo. As regras, sejam elas descritivas ou prescritivas, possuem uma dupla estrutura: uma antecedente, chamada de predicado fático, que veicula as hipóteses fáticas genéricas que, se observadas, implicam na aplicação da regra; uma consequente, que consiste no resultado prescrito pela regra em caso de satisfação do predicado fático [4]. Para compreender melhor este ponto, basta lembrar das normas penais. O antecedente da regra é a descrição do crime, ao passo que o consequente é a pena a ser aplicada em razão do cometimento do crime.

O predicado fático é sempre produto de uma generalização (e daí porque regras são generalizações). A generalização, contudo, jamais é completa porque sempre fruto de uma escolha, seja do próprio objeto da generalização, seja de sua direção ou intensidade.

Justificação é o nome dado por Schauer aos motivos que fundamentam a escolha de uma generalização em detrimento de outra; é ela que determina, dentre as inúmeras formas de se generalizar um determinado fato ou evento, qual será aquela que comporá o predicado fático da regra. Isto é, tendo em mente os objetivos a serem alcançados com a regra (justificação) se torna possível identificar a generalização mais adequada para satisfazer esses objetivos.

A generalização, em muitos casos, também lida com probabilidades: certa vez ocorreu um fato “X” incômodo e, como é possível que ele ocorra novamente, melhor proibi-lo através da criação de uma regra “Y” [5].

De um caso particular é possível se retirar inúmeras generalizações. O que restringe o escopo de possibilidades é exatamente a justificação. No exemplo dado por Schauer: um cliente entra com um cachorro em um restaurante, que começa a latir para os demais clientes e a derrubar tudo o que vê pela frente. O dono do estabelecimento, ciente de que esse evento pode ocorrer novamente (probabilidade), decide criar uma regra para proibi-lo. Ele, portanto, precisa fazer uma generalização.

Supondo que o cachorro seja preto, uma opção disponível é proibir a entrada de todo e qualquer animal de estimação preto no restaurante. Isso, contudo, não impede que um cachorro branco entre no estabelecimento e faça a algazarra que ele pretende evitar com a regra. Pode-se, ainda, criar uma regra proibindo a entrada de cães, mas, nesse caso, estaria aberta a possibilidade entrar um gato ou um porco que sejam tão inconvenientes quanto um cachorro. Uma outra opção é banir todo e qualquer animal de estimação do restaurante. Essa generalização, por sua vez, é igualmente falha, na medida em que proíbe a entrada do cão-guia de um cego. Em resumo, as possibilidades são inúmeras, e cada uma delas se mostrará, em algum momento, incompleta [6].

É neste ponto que se revelam importantes as noções de subinclusão e sobreinclusão. Como as generalizações e, consequentemente, as regras, são seletivas e incompletas, em dado momento a aplicação de uma regra a algum caso particular entrará em conflito com o que a justificação dessa mesma regra exige. Basta lembrar do caso da regra que proíbe a entrada de cães no restaurante. Qual a justificação imediata dessa regra? Impedir que animais ferozes e/ou agitados incomodem os clientes. Ocorre que impedir a entrada do cão guia do cego conflita com a justificativa dessa regra, já que, por natureza, cães guias são animais dóceis e calmos.

As regras, portanto, são sempre subinclusivas ou sobreinclusivas com relação à sua justificação. Subinclusivas quando o predicado fático da regra abrange menos situações do que a sua justificação autoriza (a regra proíbe cães, mas não porcos ou gatos); sobreinclusivas quando o predicado fático abrange mais situações do que a sua justificação autoriza (o caso do cão guia) [7]. Nas palavras de Noel Struchiner, a generalidade característica do predicado fático da regra.

“[…] é responsável pelo fenômeno da subinclusão ou sobreinclusão das regras ou pela sua potencial subinclusão ou sobreinclusão. É o fato de as regras prescritivas incorporarem mais casos do que deveriam, ou deixarem de incorporar casos que deveriam incorporar para concretizar suas justificações subjacentes, que torna o direito, ou melhor, a prática jurídica, um terreno de opções ou escolhas” [8].

Com efeito, uma regra nada mais é do que uma simplificação das justificações que lhe deram origem, tornando-as mais acessíveis e compreensíveis. Por essa razão, ela não é capaz de abarcar (e nem tem essa pretensão) de forma perfeita as justificações que foi projetada para concretizar. Regras são regras precisamente em razão de sua generalidade, e mesmo se fosse possível uma regra ser formulada de forma a antever todas as suas hipóteses de aplicação, ela seria “[…] muito complexa para fornecer as orientações que esperamos das regras” [9].

Dada essa falibilidade inerente à lógica de funcionamento das regras, não seria melhor aplicar diretamente as justificações ao caso concreto, sem a intermediação das regras? Schauer diz que não, na medida em que as justificações são frequentemente imprecisas e vagas e, consequentemente, incapazes de fornecer com precisão o tipo de orientação necessária para a coordenação da vida em sociedade — isso sem contar a possibilidade de existirem várias justificações para uma regra, de forma que sua aplicação ao caso concreto levaria a um outro problema: qual das justificações será aplicada? Em outras palavras, a aplicação direta das justificações tende a originar incertezas e imprevisibilidades na sua aplicação, e daí a necessidade da fixação de regras que as simplifiquem [10].

Então, em sendo o entrincheiramento das justificações em regras a melhor forma de se pôr fim às controvérsias que surgem na sociedade, a questão é: como lidar com as experiências recalcitrantes? Ou, em termos mais gerais, se Schauer entende que o Direito nada mais é do que a aplicação de regras, sendo estas o que o distingue do mero exercício do poder ou da prática desmedida do jogo político, qual o lugar das regras no sistema jurídico e como elas devem ser aplicadas pelo juiz [11]?

É neste ponto que entra em cena aquilo que Schauer chama de positivismo presumido, teoria segundo a qual as regras jurídicas possuem uma força institucional presumida, e não absoluta, isto é, ao mesmo tempo em que constrangem/limitam a atuação do intérprete na sua aplicação, permitem que ele possa superá-las caso isso seja exigido pelas circunstâncias que envolvem o caso concreto. O positivismo presumido reforça o papel central e coercitivo das regras no sistema jurídico sem retirar a possibilidade de o aplicador deixar de aplicá-las caso a exigência dessa não aplicação supere a força institucional da própria regra [12].

As regras jurídicas possuem uma presunção de validade que não pode ser afastada pelo julgador, salvo em situações excepcionais. Elas devem ser aplicadas pelos juízes independentemente do que eles pensam ser o mais justo ou mais correto; somente em situações em que a aplicação da regra leve a resultados extremamente injustos ou absurdos é que estaria aberta a possibilidade de sua não aplicação. Nas palavras de Schauer, existe uma presunção não absoluta em favor do resultado gerado pela aplicação literal da regra que somente pode ser derrotada quando o juiz identificar a existência de razões especialmente exigentes que demandam a superação desse resultado [13].

O termo “presumido”, nesse sentido, diz respeito à força possuída pelas regras, que exige a sua aplicação ao caso concreto “[…] a menos que razões particularmente exigentes possam ser fornecidas para não aplicá-las” [14]. Com efeito, “a aplicação do positivismo presumido leva à conclusão de que aos juízes é possível deixar de aplicar uma regra não quando […] eles acreditam que a regra produziu um resultado errôneo ou subótimo neste caso, não importa o quão bem fundamentada essa crença, mas quando, e somente quando, as razões para a não aplicação são percebidas pelo tomador de decisão como particularmente fortes” [15].

O resultado indicado pela regra é, por si só, uma razão para ação particularmente forte — daí a noção que as regras possuem uma força institucional presumida. Então, as razões particularmente exigentes que possibilitam, em um dado caso concreto, a superação da regra, devem ser superiores não só às razões que o magistrado possui para aplicar a regra, mas também ao valor da regra em si, enquanto produto de um processo legislativo democrático e protetora de determinados valores e/ou princípios tidos como importantes pelos legisladores. Nas palavras de Schauer, o positivismo presumido é um método de decisão que prescreve que os juízes devem assumir o resultado indicado pela regra como uma razão para ação que é independente das circunstâncias factuais do caso concreto, e isso mesmo quando “[…] esse resultado diverge do resultado que seria indicado pela aplicação direta das justificações que subjazem a regra, e mesmo quando esse resultado diverge do resultado que seria alcançado, dentro de uma determinada teoria substantiva da decisão, pela aplicação direta de todas as considerações relevantes reconhecidas por essa teoria substantiva da decisão.” [16]

Com efeito, o positivismo presumido, ao mesmo tempo que não atribui ao juiz uma tarefa de aplicação mecânica da lei, tem o mérito de buscar controlar eventuais abusos interpretativos. Há, ademais, a prescrição de uma postura psicológica que deve ser assumida pelo juiz: não deve ele buscar ativamente e incessantemente razões que autorizam a não aplicação da regra. Muito pelo contrário. A ideia é que o juiz dê apenas uma olhada de relance, realize uma checagem preliminar e precária sobre as considerações subjacentes à regra, não sendo admitido o seu engajamento ativo na procura por razões extrajurídicas/factuais que possam levar à superação da regra [17]. Não é o papel do juiz procurar incessantemente razões que possam justificar a não aplicação da regra, em uma tentativa de fazer prevalecer a sua vontade a qualquer custo. A sua postura inicial deve ser sempre a de subserviência ao Legislativo, cujas decisões estão amparadas pela soberania popular.

 


 

[9] “[…] too complex to provide the guidance we expect from rules.” SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 28.

Lucas Sipioni Furtado de Medeiros é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

Amanda Carpes é advogada controller e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Positivo (UP).

Thales do Valle Braz é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e advogado.

Consultor Júridico

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