No último dia 21 de março foi celebrado o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Na ocasião, o governo federal assinou um pacote de políticas, expresso por meio de decretos, com ações voltadas ao combate ao racismo. Dentre eles, destaca-se o Decreto nº 11.443 de 2023, que objetiva destinar uma porcentagem de vagas para pessoas negras em funções da Administração Pública federal como forma de inserir essa população em cargos de elevada comissão e hierarquia e assim repensar políticas públicas sob nova ótica.
O decreto surge em meio a um contexto ainda marcadamente conservador e de avanço da extrema direita no país, o qual tem como fundamento da sua racionalidade, a negação da diversidade, inclusive étnica. Desse modo, sua importância se faz presente tanto em relação ao resgate de valores apoiados na isonomia e dignidade da pessoa humana, quanto no que toca a inclusão desses grupos, historicamente excluídos, em setores da Administração Pública que não são isentos de seletividade de cunho racista.
O racismo no Brasil é uma realidade que remonta a aspectos longínquos da formação do país e que na atualidade ainda impacta a associação da raça a aspectos pejorativos, ampliando as roupagens da discriminação. A escravidão, o fardo do homem branco [1], e as políticas neocoloniais só escancaram formas de dominação e controle sobre esses povos. Desse modo, atualmente, observa-se as reverberações de tais processos históricos no contexto de (BOURDIEU, 1997) violências simbólicas (mas não só) ao se verificar a existência do racismo ambiental, cultural, recreativo e institucional. Este último sendo o objeto principal do Decreto que ora analisa-se.
Assim, o racismo institucional amparado pelo racismo estrutural (ALMEIDA, 2018), fomenta a política de biopoder (FOUCAULT, 1984), em que características fenotípicas, influenciam os sistemas de controle social e político, instaurando um estado de Necropolítica (MBEMBE, 2018). As instituições detêm domínio sobre a vida dos cidadãos ao mesmo tempo em que buscam convencer a sociedade de que alguns grupos representam perigo, e que, portanto, o Estado necessita promover ações de distanciamento da população perante a sociedade, as suas políticas públicas, e até mesmo a sua forma de existência.
Dessa forma, o Estado de exceção (AGAMBEN, 2004) passa a oferecer de forma desigual seus recursos, expondo os grupos marginalizados a situações de calamidade, estabelecendo-se uma política de morte para indivíduos que sejam tidos como indesejáveis. Nesse quadro, Mbembe (2018, p. 18-19) ressalta que “o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir […] o velho direito soberano de matar”.
Dessa forma, ações voltadas à inclusão como a do Decreto nº 11.443 de 2023, se configura como de grande necessidade, pois muito embora a população negra representa maioria no território brasileiro, esse cenário não se reflete na ocupação de cargos de direção e chefia no contexto da Administração Pública Federal. Isso fica nítido ao se observar predominância de indivíduos brancos e do sexo masculino a frente dos postos de confiança, conforme a pesquisa do Instituto de Economia Aplicada (Ipea) a qual demonstrou em 2020, que a ocupação desses cargos por homens brancos é equivalente a 65%, enquanto que a ocupação em relação a homens negros contabiliza apenas 13% do total, o que não representa a realidade da composição social brasileira [2]. Em relação às mulheres, a mesma pesquisa revela que 15% dos postos são ocupados por mulheres brancas, enquanto as mulheres negras representavam cerca de 1,3% dos cargos.
Ainda nesse quadro, conforme dados do IBGE expostos no Jornal Nexo (2017), 76% daqueles que vivem em condições de pobreza no Brasil, são negros. Essa população detém as maiores taxas de analfabetismo, além da maior proporção em relação à população carcerária, constando em mais de 61% (DEPEN, 2014).
Esses dados revelam que as questões raciais estão fortemente conectadas com questões de gênero, indicando uma dupla discriminação, quando se considera o binômio mulher e negra. Por essa razão, o Decreto nº 11.443 de 2023, em seu artigo 3º, §4º, prevê que o preenchimento do percentual de ocupação por pessoas negras a que se refere “[…] observará percentual mínimo de mulheres, definido em ato conjunto das autoridades máximas dos Ministérios da Igualdade Racial e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos” (BRASIL, 2023), embora ainda não tenha havido regulamentação em relação a esse percentual mínimo a que se refere o parágrafo 4.
Outro fato digno de nota é o atraso legislativo do Brasil em relação à temática. Na América Latina, países como o Uruguai já tem leis que obrigam a observância de reserva de vagas para pessoas negras nos cargos da Administração Pública há mais de dez anos. Nesse sentido, muito embora tenha havido avanços significativos no Brasil, sobretudo, com a instituição do sistema nacional de ações afirmativas por meio da Lei n° 12.711/2012, ainda há desafios no que diz respeito a implementação dessas ações de forma ampla, efetiva e transformadora, tanto no poder público como na iniciativa privada [3]. Essa inércia legislativa é expressa a partir do levantamento de Azevedo (2023), ao constatar que dos 8.576 projetos de lei apresentados no Congresso Nacional Brasileiro de 1988 a 2023, somente 20 tratavam sobre questões raciais e/ou políticas de ações afirmativas voltadas a essa população.
Apesar dessa inércia legislativa, algumas inciativas no âmbito do poder público e mais especificamente em relação ao judiciário, merecem destaque enquanto política de inclusão, tal como a atuação do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) ao aprovar a minuta da resolução n° 256/2022 que assegura a reserva de 50% dos cargos de secretarias, diretorias, coordenadorias, divisões, departamentos, seções, núcleos e assessorias para servidores que se autodeclararem negros ou pardos. Nesse mesmo direcionamento, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) já dispõe da Resolução n. 336/2020, sobre a promoção de cotas raciais nos programas de estágio dos órgãos do Poder Judiciário nacional.
Em sentido contrário, a necropolítica instituída pelo governo do presidente Jair Bolsonaro fomentou um desmonte das políticas públicas voltadas às questões raciais, por meio de ações como a extinção do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial e nomeação para o cargo de presidente da Fundação Palmares, órgão responsável por proteger e respaldar as culturas negra e afro-brasileira, Sérgio Camargo, pessoa declaradamente contrária à instituição de políticas raciais e com discursos conservadores e racistas. O referido cenário é corroborado pelo relatório técnico realizado pela Consultoria Legislativa da Câmara (2020), que indicou a paralisação de nove programas de combate ao racismo e a violência contra a população negra.
Ainda nessa perspectiva de retrocesso, cita-se o Projeto de Lei n° 2105/22 que substitui os programas de ação afirmativa por programas de oportunidade social, os quais passarão a adotar o fator de vulnerabilidade econômica para fundamentação das políticas públicas e não mais elementos de raça. Proposições legislativas como essa se baseiam no argumento de que o racismo se resume a um recorte de classe econômica e desconsiderar sua dimensão estrutural.
Por essas razões, a edição do Decreto nº 11.443 de 2023 se insere no contexto de retorno das políticas públicas voltadas à população negra no Brasil. Desse modo, caso essa política seja bem implementada, fiscalizada e avaliada, terá significativo impacto sóciojurídico na necessária mudança de ótica sob a qual se pensa política pública no Brasil, desde sempre atrelada a um Estado majoritariamente branco e masculino, pouco capaz de atender as demandas de grupos aos quais não integra, configurando uma “espécie de apartheid vertical na relação do Estado com a sociedade” (G1, 2023).
Contudo, para além das potencialidades destacadas, também é preciso tecer ponderações que podem se configurar como desafios à implementação das medidas previstas no decreto. A política de inclusão aqui analisada foi implementada via decreto [4], isto significa dizer que sua manutenção está fortemente subjugada ao poder executivo e, por conseguinte sujeita a alterações de acordo com a mudança de governo e das relações políticas daí advindas. Nesse sentido, muito mais efetivo do ponto de vista social e jurídico seria sua implementação por meio de lei federal ou até mesmo sua inclusão na CF/88 como forma de se configurar uma política de estado e não de governo.
Outro ponto que merece crítica é a ausência de previsão de instrumentos de controle e fiscalização que deem conta de monitorar o processo de implementação das obrigações previstas dentro do prazo estipulado. Neste ponto, o decreto é silente em relação a instrumentos específicos e indica vagamente em seu artigo 12 a possibilidade do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos editar normas complementares necessárias à execução do disposto no decreto. Dessa forma, entende-se como urgente a regulamentação e implementação de um sistema de monitoramento conjunto entre governo e movimentos sociais, sobretudo aqueles que defendem pautas conectadas ao objeto do decreto, como forma de garantir a execução e efetividade do decreto.
Nesta conjuntura, propõe-se como alternativa a criação de instrumentos de controle similares aos métodos utilizados na política de cotas nas universidades, com os devidos ajustes em relação às especificidades da Administração Pública, tal como a banca de heteroidentificação. De forma conjunta é preciso assegurar a formação continuada dos agentes públicos e gestores no que se refere a educação antirracista, já que somente por meio da educação que haverá mudanças concretas na estrutura racista que impacta e é reproduzida na Administração Pública.
Diante disso, fica explícito a importância (inclusive simbólica) do Decreto nº 11.443 de 2023, mas também resta necessário a adoção de medidas, como as anteriormente referidas, para que sua eficácia não encontre barreiras na realidade administrativa e seu conteúdo se torne letra morta. Nesse mesmo sentido, é preciso a manutenção de uma agenda permanente de debate que contribua na transfiguração dessa política de governo em política de Estado, minimizando a possibilidade de questões partidário-ideológicas se configurarem como mais um desafio no desenvolvimento de uma política de Estado antirracista no Brasil.
_______________
Referências
AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
ARAÚJO, J. Paulo Paim defende cotas raciais no serviço público até 2034. Rádio Senado, Brasília-DF, 04 nov. 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/11/04/paulo-paim-defende-cotas-raciais-no-servico-publico-ate-2034.
AZEVEDO, Y. J. O racismo estrutural no processo legislativo no Brasil. GNN, 2023. Disponível em: https://jornalggn.com.br/direitos/o-racismo-estrutural-no-processo-legislativo-no-brasil-por-yana-jinkings-de-azevedo/#googlevignette. Acesso em: 03 abr. 2023.
BRASIL. Decreto nº , 11.443 de 21 de março de 2023. Dispõe sobre o preenchimento por pessoas negras de percentual mínimo de cargos em comissão e funções de confiança no âmbito da administração pública federal. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11443.htm. Acesso em: 04 abr. 2023.
BOURDIEU, P. Meditations pascaliennes. Paris: Seuil, 1997.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/13/ibge-dos-135-milhoes-vivendo-em-extrema-pobreza-75percent-sao-pretos-ou-pardos.ghtml. Acesso em: 04 abr 2023.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Cor ou Raça dos Servidores Civis Ativos do Executivo Federal (1999-2020). Brasília: Ipea, 2021.
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Ministério da Justiça, 2014.
MBEMBE, A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.
Relatório técnico. CONSULTORIA LEGISLATIVA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Relatório técnico preliminar “Direitos da População Negra e Combate ao Racismo”. Brasília-DF, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/709406-relatorio-aponta-corte-em-verbas-federais-para-combate-ao-racismo/. Acesso em: 02 abr. 2023.
SETA, I. ‘Cota’ para negros em cargos de confiança no governo federal pode ‘mudar a cara’ das políticas públicas, dizem especialistas. G1, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/03/26/cota-para-negros-em-cargos-de-confianca-no-governo-federal-pode-mudar-a-cara-das-politicas-publicas-dizem-especialistas.ghtml. Acesso em: 01 abr. 2023.
CARMO, B. A pobreza brasileira tem cor e é preta. Nexo Jornal, 2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/A-pobreza-brasileira-tem-cor-e-%C3%A9-preta. Acesso em: 02 abr. 2023.
[1] Poema do britânico Rudyard Kipling que explora o imperialismo como aquele fenômeno necessário para civilizar grupos considerados selvagens a partir da concepção europeia.
[2] O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que 56% das pessoas se autodeclaram negras (pretas e pardas).
[3] Tal como o Projeto de Lei 2067/21, apresentado pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que prevê que a empresa contratada pela administração pública para a execução de serviços reserve pelo menos 30% dos postos de trabalho a empregados negros.
[4] O decreto é ato precário, facilmente elaborado e revogado por possuir natureza jurídica de ato normativo secundário, portanto, dependente de lei. Se comporta como um mandado expedido inteiramente através do Poder Executivo da União, Estado ou Município, sem necessidade da posição legislativa.
Anderson Henrique Vieira é doutorando em Direito pela UFPB, mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (Uern), bacharel em Dirieto (UFCG) e professor substituto UFCG.