A reboque do movimento lavajatista que atingiu seu auge em 2018 no país — resultando na prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro [1] —, formulou-se uma série de alterações legislativas no campo penal e processual penal, consolidando-se aquilo que se convencionou chamar de “pacote anticrime”.
Dentre as inúmeras mudanças, aprovou-se o chamado juiz das garantias. A partir do mencionado instituto, o magistrado que participasse da fase investigativa, conhecendo, portanto, de medidas cautelares decorrentes das investigações, tais como 1) prisões cautelares (preventiva e temporárias); 2) medidas de busca e apreensões, 3) quebra de sigilo telefônico, dentre outras, ficaria proibido de atuar na fase judicial — iniciada com o recebimento da denúncia.
A função do juiz das garantias é clara e óbvia — evitar a contaminação daquele magistrado que irá julgar o caso —, pois na medida em que não houver a participação deste na fase investigativa e sua atuação se restrinja apenas à apreciação das provas sob o crivo do contraditório, do controle da legalidade e da prolação de sentença, a isenção deste juiz se torna algo alcançável. Por isso, o instituto do juiz das garantias é bom para o fortalecimento e aperfeiçoamento do processo penal democrático.
Na visão de um dos maiores defensores da medida, o professor Aury Lopes Jr., o juiz das garantias versa sobre o necessário “controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (reserva de Jurisdição)” [2]. Em outras palavras, a implementação do instituto não pressupõe impunidade, mas tão somente um julgamento justo, imparcial e apto a salvaguardar direitos individuais.
Além disso, o instituto também teria como função impedir o acúmulo de poderes nas duas fases — investigativa e judicial — nas mãos de um mesmo juiz, o que é característico dos sistemas inquisitórios, cujo pano de fundo é um julgamento viciado e sem garantias de isenção, já que o mesmo magistrado que julga é quem colhe a prova, ou seja, é oposto ao sistema de justiça democrático.
Todavia, antes mesmo que os dois artigos que versam sobre o juiz das garantias começassem a produzir seus efeitos, o Supremo Tribunal Federal — através de uma medida liminar concedida pelo ministro Luiz Fux — suspendeu a implementação do juiz das garantias em todo território nacional, argumentando que a sua criação “não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país” [3], ressoando como um golpe no fortalecimento da democracia e do devido processo legal.
Passados mais de três anos, a matéria volta à discussão num quadro absolutamente diverso daquele em que a norma foi gestada. O atual cenário é de sepultamento da operação “lava jato” por toda a sorte de ilegalidades que representou ao Estado de Direito, desmascarada 1) pelos ajustes feitos entre acusação e juiz para a condenação de seus desafetos; 2) pela fabricação e vazamento de notícias aptas a influir nas paixões e nas decisões políticas da sociedade; 3) pela criação de um fundo para gerir valores públicos arrecadados em detrimento de apurações etc [4]. Ou seja, condutas absolutamente estranhas ao Poder Judiciário.
A par dos motivos que ensejaram o fim da conturbada operação, o fato é que o juiz das garantias, caso estivesse em vigor no curso da “lava jato”, teria impedido legalmente o então juiz Sergio Moro de participar das audiências de instrução, proferir sentenças e, por consequência lógica, ter-se-ia garantido a necessária imparcialidade no julgamento da mencionada operação.
O instituto do juiz das garantias é tão importante para a lisura e correção do processo penal democrático que, no caso do contestado inquérito das fake news [5], que apura os atos antidemocráticos, conduzido pelo STF sob a Relatoria do ministro Alexandre de Moraes, os indivíduos investigados pelos atos praticados contra os três Poderes em 8 de janeiro deste ano, não poderão ser julgados pelo ministro relator por uma questão óbvia: aquele que atuou na fase investigativa estará impedido de atuar na fase processual.
Vale dizer, o juiz das garantias não é apenas um mecanismo de controle da legalidade, mas é igualmente fator de confirmação da imparcialidade judicial, posto que o magistrado processante tem total liberdade e condições de anular ou confirmar atos praticados na etapa anterior, de investigação.
É fato que o reconhecimento de ilegalidade(s) pode ser declarado atualmente por qualquer magistrado revestido de atribuições legais, mas entre confiar na autocorreção (no sentido de desaprovar um ato praticado no passado que pode ter ensejado uma injustiça) ou na lei, fiquemos com esta última. Afinal, a história estampada cotidianamente nos noticiários é de injustiça e não de virtudes, como exige o reconhecimento de um erro ou uma injustiça por quem a tenha praticado.
É dizer, o juiz das garantias é tão bom — mas tão bom — que beneficia a democracia e aqueles que contra ela atentaram.
Eduardo Samoel Fonseca é advogado criminal, doutorando, mestre em Processo Penal pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) e em Ciências Criminais pela PUC-MG, professor universitário de Direito Penal e Processo Penal e ex-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP (subseção Penha de França)
Maíra Alves Valério é advogada criminal, graduada em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e pós-graduanda em Ciências Criminais pela Universidade de São Paulo (FDRP/USP).
Marcos Rodolfo Araújo Sá é advogado criminal, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (FDRP/ USP) e pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).