O Supremo Tribunal Federal deve definir nesta semana a constitucionalidade do mecanismo do juiz das garantias e determinar um prazo para implantação obrigatória pelo Judiciário de todo o país.
A importância do juiz de garantias é estabelecer melhores condições para o exercício da magistratura de forma imparcial, diminuindo a possibilidade de subjetivismos.
A alteração prevista no Código de Processo Penal consiste na separação dos julgadores, determinando juízes distintos para atuarem nas diferentes fases processuais — um na fase de investigação e outro na fase judicial ou da ação penal, de modo a fortalecer o sistema acusatório brasileiro por meio de um maior controle de legalidade e de proteção de direitos individuais, primando pela imparcialidade.
Na prática, o juiz que atua na fase de investigação não irá conduzir a instrução nem sentenciar.
Isso porque o inquérito policial tem objetivo distinto da ação penal. A fase investigativa visa a coleta de elementos que apontem para a materialidade de fato criminoso e demonstrem indícios de autoria, para posteriormente o Ministério Público analisar se há elementos suficientes para denunciar ou requerer o arquivamento. Não se busca nesse primeiro momento exclusivamente apontar culpados, mas buscar conjunto mínimo de indícios e materialidade.
Nessa fase pré-processual, ao magistrado cabe o papel de controlar a legalidade dos atos, analisando os requerimentos de medidas cautelares durante as investigações tais como os requerimentos de quebra de sigilo bancário, fiscal, de dados, a autorização de busca domiciliar ou a decretação de prisão, de modo a evitar qualquer excesso ou violação de direitos fundamentais.
A título de exemplo, o juiz que autorizou a interceptação telefônica por 30 dias, em inquérito policial, e a escuta permaneceu por 31 dias, e no último dia foi verificado algum indício de crime, dificilmente anulará essa escuta ilegal após o trigésimo dia, pois a tendência do ser humano é validar seus próprios atos, como a história já demonstrou.
Com a existência do juiz de garantias, no entanto, não haveria chance de manter uma escuta ilegal como elemento de prova em uma ação penal, uma vez que o segundo magistrado não participou de nenhum procedimento anterior, inexistindo qualquer vínculo psicológico com esses atos.
Argumentar que a existência de dois juízes, sendo um para o inquérito e outro para a ação penal, causaria impunidade, é desconhecer a função do processo penal, com seu fundamento constitucional. Não há qualquer correlação entre a implantação do juiz de garantias e impunidade. Dizer o contrário é ignorar todo o arcabouço legal/constitucional e a Teoria da Dissonância Cognitiva, de Leon Festinger, desenvolvida no início do século 20.
Numa contribuição da Psicologia para o Direito no estudo comportamental, segundo a Teoria da Dissonância Cognitiva diante de certo desconforto entre seus comportamentos e crenças e o que se observa, inconscientemente, as pessoas tendem a eliminar esse desconforto, inclusive mudando suas cognições para justificar suas atitudes.
Transportado para o Processo Penal, observa-se que o magistrado que atuar na fase inquisitorial, autorizando buscas e apreensões, quebras de sigilo, por exemplo, terá uma tendência de validar todos esses atos posteriormente, na instrução judicial, mesmo que algum deles tenha se excedido, sendo uma probabilidade cognitiva apenas.
A Teoria da Dissonância Cognitiva demonstrou em sua fase empírica que, quando há dois juízes, um para a fase pré-processual e outro para a fase processual, o segundo magistrado tem a tendência de analisar os atos pré-processuais com maior independência, invalidando-os se necessário para cumprir a legalidade, ponto de maior dificuldade ao magistrado que atuou na primeira fase — em que a propensão é de validar os próprios atos.
Não há razão ao argumento sustentado na ADI nº 6.300, em julgamento pelo plenário do STF, de que existiria ofensa ao juiz natural, pois não haverá trocas e escolhas de magistrados após a ocorrência do fato, e sim, um magistrado para cautelares pré-processuais e outro para a fase judicial, o qual sentenciará.
A alegação de que haveria risco de impunidade desconsidera o princípio da presunção de inocência, que em breves linhas assevera que todo cidadão é considerado inocente, a menos que se prove o contrário, por meio de um devido processo penal, com sentença condenatória transitada em julgado. Pensar o contrário é discriminar qualquer pessoa que esteja na condição de investigado ou réu.
Com relação ao aumento do trabalho dos magistrados em comarcas pequenas, argumenta-se que teriam que contratar o dobro de juízes, mas deve-se lembrar que o número de inquéritos que enseja ação penal também é substancialmente menor, sem contar a estrutura existente nos casos de férias e licenças dos juízes.
Dos números obtidos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do ano base 2021, só nas Justiças Estaduais tramitaram 969.727 inquéritos policiais e procedimentos investigatórios, enquanto em sede recursal (sem contar habeas corpus) tramitaram 179.790 recursos. Ou seja, existe uma razão de proporcionalidade em que a cada dez inquéritos apenas dois tornam-se ações penais e posteriores recursos, isso porque há o arquivamento de inquéritos e não recebimento de denúncias, hipóteses em que extinguem o procedimento, inexistindo necessidade de juiz de instrução julgar.
Na capital do estado de São Paulo, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, estão concentrados 1,1 milhão de processos e procedimentos, o equivalente a 20,2% do acervo processual criminal do país; e nessa cidade, desde 1984, por força do Provimento 167/1984 do Conselho Superior da Magistratura do TJ-SP, já há o pleno funcionamento do juiz de garantias por meio do Departamento de Inquérito Policial e Polícia Judiciária (Dipo), que na prática faz o papel do juiz de garantias.
Um exemplo de mudança legislativa de até mais impacto, implementado sem qualquer óbice, é o das audiências de custódia, que exigem a apresentação de qualquer pessoa presa no prazo de 24 horas para que o magistrado avalie a legalidade da prisão. A audiência de custódia hoje é vista como ato essencial, que aprimorou o processo penal.
O juiz de garantias, com seu distanciamento da fase investigativa, assegura maior autonomia e imparcialidade nas decisões, característica imprescindível não só ao réu mas à democracia.
Mariana Stuart é sócia no Warde Advogados e mestre em Processo Penal pela PUC-SP.