Opinião: O Quilombo de Alcântara vs. Brasil

Hoje e amanhã (26 e 27/4), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) terá oportunidade histórica de se manifestar sobre violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro contra as 152 Comunidades Quilombolas do Município de Alcântara (MA), devido à instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).

O caso das Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil possui transcendência histórica. Será importante para o a jurisprudência interamericana repensar o debate a partir de uma perspectiva antirracista. Será importante para o Estado brasileiro ajustar e aprofundar as políticas públicas para essas populações vulnerabilizadas por omissões e ações do Estado contra à violência e discriminação do passado e do presente contra as populações afrodiaspóricas que construíram o nosso país.

O CLA foi pensado e instalado durante o período da ditadura militar e, desde então, vem desencadeando violações de direitos humanos dessas comunidades nos últimos 40 anos, mais precisamente, aos seguintes: (i) à consulta prévia, livre e informada; (ii) ao acesso à propriedade coletiva e ao meio ambiente; e (iii) a igualdade racial. Todos esses direitos estão assegurados na Convenção Americana de Direitos Humanos/1969, na Convenção n. 169/1989 da OIT e nas interpretações fixadas pela Corte IDH em seu bloco de convencionalidade.

O direito à consulta livre, prévia e informada

Em primeiro lugar, quanto ao direito à consulta livre, prévia e informada, ela é reconhecida para os povos indígenas e comunidades tradicionais pela Convenção n. 169/1989 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) a qual o Brasil assinou e ratificou. São requisitos do artigo 6º: (i) direito de consulta aos povos interessados, sempre que uma medida legislativa ou administrativa afetar seus direitos; (ii) direito à participação efetiva na tomada de decisão; e (iii) respeito à gestão local realizada pelos povos indígenas e comunidades tradicionais na condução de suas formas de vida.

De acordo com os especialistas e com a jurisprudência interamericana, a consulta deve ser prévia, livre e informa. Isso significa que deve ser realizada com um prazo razoável para deliberação das comunidades. Deve ser bem informada, ou seja, precedida que análises de impacto ambiental compreensíveis e traduzidas em seu caráter técnico para população afetada. Além disso, a consulta deve ser livre, ou seja, culturalmente situada de acordo com os protocolos de consulta e deliberação de cada comunidade[1].

Nesse sentido, a jurisprudência da Corte IDH reafirma o respeito ao direito à consulta livre, prévia e informada. Nos casos envolvendo o Estado do Suriname, a decisão foi em aplicar tal direito reconhecido sistematicamente às populações originárias e indígenas para as populações tradicionais marrons originalmente escravizadas e trazidas a força da África para o Suriname.[2]

No caso Saramaka vs Suriname (2007), por exemplo, a decisão inclusive cita a Relatoria especial da ONU, James Anaya, no sentido da obrigatoriedade da consulta nos termos acima e da exigência de que haja “benefícios mútuos”, sem os quais a intromissão nesses territórios é inválida e constitui uma grave violação aos direitos humanos.

Agência Brasil

A coisa julgada interpretada desse caso compõe o bloco de convencionalidade interamericano, obrigando não apenas ao Suriname, mas também ao Estado brasileiro a desfazer normas incompatíveis com seu conteúdo (controle de convencionalidade destrutivo), bem como de construir políticas públicas para efetivar tais direitos (controle de convencionalidade construtivo).

O Estado brasileiro violou os padrões interamericanos para uma consulta livre, prévia e informada convencionalmente adequada, quando promoveu uma verdadeira espoliação e marginalização dos quilombolas, ao transferi-los da proximidade de seus locais sagrados, da sede de sua associação deslocando-os forçosamente para agrovilas, cujas não tinham as mesmas condições de vida e de existência de seus territórios ancestrais, violando os artigos 1, 2, 3, 8, 21, 23 e 25 da CADH.

A propriedade coletiva quilombola

Em segundo lugar, quanto à propriedade coletiva e titulação de terras quilombolas, ela é reconhecida há pelo menos 22 anos, desde a decisão do emblemático Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua (2001) e foi reiterado na condenação do Brasil no caso Xucurú (2018).

O caso das Comunidades Quilombolas de Alcântara coloca em evidência o hiato entre o direito em abstrato e o reconhecimento pleno e de fato pelas comunidades. A distribuição desigual da terra no país e a não demarcação e titulação dos territórios quilombolas, como demonstram as pesquisas realizadas em 2017 e 2019[3]. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), menos de 7% das áreas quilombolas tinham sido tituladas até 2018.

Há um conjunto de normas jurídicas e práticas administrativas que concentram as terras na população branca em detrimento das populações negras desde o Brasil colônia e que permanecem até os dias atuais. O artigo 68 do ADCT, que reconhece a propriedade coletiva quilombola, foi insuficiente para reverter o racismo estrutural do cenário descrito acima.

O Brasil, portanto, viola o direito de propriedade do artigo 25 da CADH dessas comunidades tradicionais, tanto em relação ao reconhecimento das terras que tradicionalmente ocupam, quando no elemento cultural, simbólico e imaterial destes povos. É preciso, porém, ir além do caráter patrimonial material e material para provocar a jurisprudência interamericana e brasileira a pensarem o direito de propriedade coletivo, comunal, comunitária ou tradicional quilombola a partir do artigo 24 da CADH, ou seja, a partir do princípio da igualdade e não discriminação em termos raciais.

Por uma jurisprudência interamericana antirracista

Em terceiro lugar, a Clínica Interamericana de Direitos Humanos do (Clínica IDH do NIDH/UFRJ) apresentou memorial e foi aceita como amicus curiae em sua proposta de que a Corte IDH encare o caso como a possibilidade de abrir novos caminhos para a construção uma jurisprudência interamericana ainda mais antirracista. Nesse sentido, enfatizou a necessidade atentar para o caso em termos epistêmicos e políticos.

Em termos epistêmicos, o movimento negro produziu uma teoria importantíssima para pensar os quilombos que não pode e não dever ser ignorada. Ignorá-la significaria incorrer no racismo epistêmico que se pretende combater. Por exemplo, Abdias do Nascimento considera o quilombo uma comunhão existencial e reivindica um quilombismo como ferramenta de luta por direitos[4]. Beatriz do Nascimento[5], por sua vez, descreve os quilombos como territórios de resistência as formas de opressão contra o povo negro. Clóvis Moura destaca que o quilombo possui uma dimensão social, econômica e política de contraposição a sociedade racista, machista, agroexportadora e autoritária. Considera, por exemplo, o Quilombo de Palmares uma das primeiras experiências republicanas do país, ancoradas numa economia de subsistência e de resistência ativa[6].

Partindo dessas reflexões ainda que breves, percebe-se que as Comunidades de Alcântara configuram um eco dessa resistência contra práticas autoritárias na sociedade, economia e política. Isso porque é uma das maiores comunidades quilombolas do país, localizada no Estado do Maranhão no qual se encontram o maior número de comunidades quilombolas. Este caso, portanto, é emblemático por sua representatividade e não apenas pela instalação da CLA.

A Corte IDH ao decidir o caso emanará padrões que obrigam a outras tantas comunidades quilombolas em relação as quais ele continua omisso e violando os direitos humanos, positivados na CADH. É fundamental, portanto, que na dimensão da indenização pelos danos e da reparação das violações isso seja levado em consideração para no empoderamento social, político e econômico das comunidades para que elas possam (re)construir de forma autônoma as bases que auxiliem na regeneração para retornar tanto quanto possível ao status quo anterior à violação dos direitos pela instalação da CLA.

Considerações Finais

A Clínica IDH do NIDH/UFRJ[7], considerando as reflexões anteriores, procurou colaborar como amicus curiae em seu memorial para a Corte IDH recomendando o avanço e consolidação parâmetros para uma jurisprudência interamericana ainda mais antirracista que atue no caso do Quilombo de Alcântara para que reconheça o padrão discriminatório das estruturas sociais brasileiras, fundado na intersecção entre raça, gênero, classe, colonialidade e território.

Recomendou que estabeleça as responsabilidades do estado em: (i) garantir a aplicação substantiva do princípio da não-discriminação, (ii) elaborar políticas públicas afirmativas no sentido de reconhecer à cultura, à tradição e à religiosidade dos povos descendentes dos africanos escravizados; (iii) reconhecer a propriedade coletiva como meio de subsistência material, cultural e religioso de povos e comunidades tradicionais; (iv) reconhecimento da autodeterminação dos povos; e (v) aplicação do direito de consulta prévia, livre e informada sempre que houver ameaça ou interferência aos territórios ou à direitos de povos e comunidades tradicionais.

Em termos de pontos resolutivos sobre as indenizações e reparações das comunidade quilombola de Alcântara, recomendou-se ainda que essa ocorra por meio de um Fundo por meio do qual a própria comunidade possa gerir os recursos coletivamente para  minorar as violações e empregar recursos e esforços para a manutenção que seu modo de vida tradicional e antirracista, tanto por meio do reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas, quanto por meio de investimentos em educação quilombola, seguro e saudável que os proteja de projetos e grandes empreendimentos, como a CLA, que possam provocar danos ambientais sem  consulta e sem benefícios para a subsistência da comunidade.

O Brasil há foi condenado a implementar um Fundo análogo para a reparação das violações do caso Xucuru. Contudo, no caso de Alcântara, o Fundo estaria vinculado diretamente a construção e empoderamento de uma comunidade quilombola com recursos para que a sua existência e práticas antirracistas adquirissem ainda mais força.

Siddharta Legale é professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos da FND-UFRJ e PPGDC-UFF. Coordenador do NIDH. Advogado. Pós-doutor e doutor em Direito Internacional pela UERJ. Mestre e bacharel pela UFF.

Elaine Gomes dos Santos é advogada, professora e mestranda em Direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Vanessa Guimarães dos Santos é advogada, professora, especializada em Direito Público e Privado pela Emerj (Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro).

Consultor Júridico

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