Opinião: Portaria MF 20/23 — afronta à igualdade tributária

Em 12 de janeiro de 2023, foi editada a Medida Provisória nº 1.160, que trouxe mudanças significativas para o processo administrativo tributário federal. Em meio a tantas outras alterações, foi incluído, na Lei n° 13.988/2020, o artigo 27-B, que será de interesse central para a discussão do presente trabalho.

É que esse dispositivo foi responsável por qualificar, como contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, o contencioso cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 1.000 salários mínimos. Com isso, essas causas passaram a ser julgadas em última instância administrativa por órgão colegiado das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJs), as chamadas turmas recursais. E foi nesse ambiente que surgiu a Portaria MF 20/2023, que veio a regular a MP 1.160/23.

Antes de sua edição, vigorava a Portaria ME 340/2020, que estabelecia que as DRJs eram competentes para apreciar, por decisão colegiada, as impugnações e manifestações de conformidade em primeira instância, além dos recursos de contencioso administrativo fiscal de pequeno valor (até 60 s.m.) em instância final. Vê-se, então, que, até a edição da Portaria MF 20/23, quaisquer contenciosos administrativos fiscais que superassem os 60 s.m. tinham a possibilidade de chegar ao Carf.

Contudo, editada a Portaria MF 20/23, a Portaria ME 340/20 foi revogada, passando o acesso ao Carf a ser restringido a lançamentos ou controvérsias superiores a 1.000 s.m. Isso foi feito da seguinte maneira: manteve-se a categoria “contencioso administrativo fiscal de pequeno valor” (não superior a 60 s.m.), adicionando-se uma nova: “contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade” (superior a 60 s.m. mas não superior 1.000 s.m.). Em ambos os casos, a causa será apreciada, em primeira instância, por decisão monocrática nas DRJs e, em instância final, por decisão colegiada nas mesmas DRJs.

Fica claro, então, que essa regulação leva a efeito uma discriminação, na medida em que obsta o acesso ao Carf daqueles contribuintes que pretendam discutir causas de valor inferior a 1.000 s.m. e apenas deles. Saber se esse tratamento desigual é ou não legítimo em face da ordem constitucional é um problema, e dos mais relevantes.

Feito esse intróito, é o momento de apreciar criticamente a Portaria MF 20/23. Duas são as principais perguntas que se colocam. Primeiro, a regulação representa afronta à igualdade tributária? Ademais, a nova regulação contraria disposições constitucionais pertinentes ao processo administrativo tributário? Para responder essas questões, será necessário seguir um fio analítico, consistente em critérios propostos por Bandeira de Mello [1] e Ávila [2] para a identificação do desrespeito à isonomia. São eles: (1) o fator de discriminação, (2) a sua correlação lógica com a desequiparação pretendida, (3) o seu elemento indicativo e (4) a consonância da discriminação com os interesses protegidos na Constituição.

Antes disso, registre-se que, no caso em tela, é de igualdade na lei que se cogita, e não perante a lei. Explica-se. Foi Kelsen quem primeiro levou a cabo a distinção. Enquanto a igualdade na lei dirige um comando de tratamento isonômico dos cidadãos ao legislador, a igualdade perante a lei fá-lo ao intérprete. Juridicamente para o mestre de Viena apenas esta segunda é que importa, já que, quanto àquela primeira, “o legislador pode contemplar, na norma, as uniformidades ou diferenças que quiser, na forma que lhe aprouver, que não haverá, cientificamente, como apreciar o teor da norma” [3]. Pese a força do argumento, entre nós, ele foi já superado na teoria do direito, em face de seus avanços. Basta pensar, por exemplo, no dever de coerência legislativa [4]. Por outro lado, o tratamento isonômico perante a lei é, na verdade, mera decorrência lógica do caráter geral da lei. Por isso mesmo, uma tautologia. O comando ao intérprete, assim, nada é senão um comando de aplicação correta da lei [5]. Enfim, vê-se que, no caso em tela, trata-se é de igualdade na lei, já que a discriminação foi levada a efeito pelo próprio conteúdo de um ato normativo (ainda que não, formalmente, lei).

Pois bem, em primeiro lugar, deve-se indagar do fator de discriminação de que a Portaria MF 20/23 lançou mão, vale dizer, da medida de comparação escolhida. Ela é, in casu, a complexidade da causa, o que já se deixou entrever, e que será ainda demonstrado. Desde logo, tenha-se em mente que dificilmente a constatação de violação à isonomia poderia ser alcançada logo neste momento incipiente da análise. Isso porque mesmo uma discriminação que se utilize de critérios que, numa primeira aproximação, soam absurdos pode ser legítima, contanto que atendidas as três próximas exigências. É o caso, por exemplo, das cotas para ações afirmativas de ingresso no ensino superior, que reserva vagas a estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Essa prática – não custa lembrar já teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal [6].

A grande questão aqui, na verdade, será aferir se, ao escolher o critério para discriminar, o “legislador” observou uma diferenciação factual existente entre os contribuintes. Só assim o critério se legitima. Vale dizer: se a diferenciação tiver sido feita “com base em motivos meramente subjetivos e não fundamentada em finalidade objetivamente verificável e constitucionalmente aferível, é irrazoável” [7]. Ora, isso não se passa no caso em tela. O fator de discriminação leva, sim, em conta diferenças factuais entre os sujeitos: discrimina os que pretendem discutir causas de “pequeno valor” ou de “baixa complexidade” dos que não, estando esses regimes determinados na própria Portaria MF 20/23.

Aqui cabe uma observação: na verdade, ainda que a referida Portaria fale tanto em “pequeno valor” como em “baixa complexidade“, é certo que o critério escolhido para conferir tratamento desigual aos contribuintes é nem tanto o valor, mas antes a complexidade da causa. Entre nós, com o advento da Portaria MF 20/23, pouco ou nenhum sentido restou à diferenciação. A categoria previamente existente do “contencioso de pequeno valor” (não superior a 60 s.m.) perdeu sua razão de ser para fins dessa discriminação. Fato é que o contribuinte que pretender discutir, na segunda instância administrativa, causa com valor inferior a 1.000 s.m. será julgado pelas turmas recursais das DRJs, já que sua causa será considerada de “baixa complexidade“, pouco importando se ela é, por exemplo, de 59 ou de 61 s.m. Basta ver o artigo 3º da Portaria. Enfim, quer-se com isso dizer: o fator de discriminação em tela é a complexidade da causa.

Em segundo lugar, deve-se indagar da correlação lógica do fator de discriminação com a desequiparação que se leva a efeito. No irretocável dizer de Bandeira de Mello, deve-se “investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada”.[8]. Também aqui não se pode constatar afronta à isonomia.

O fator de discriminação como já visto é a complexidade da causa. Por sua vez, a finalidade da discriminação como ainda será visto é prestigiar os princípios da celeridade e da duração razoável do processo. Ora, aquela guarda correlação lógica com esta. Vale dizer: o fator de discrímen é adequado à finalidade a que visa, contribui no sentido de seu alcance. A ideia é mais ou menos a seguinte: se uma causa não é complexa, então não há razões para levá-lo ao Carf. Reserva-se ao Tribunal Administrativo “apenas o necessário” (as causas complexas), o que prestigia, sim, a celeridade e a razoável duração do processo.

Alguns juristas identificaram o seguinte vício na Portaria MF 20/23: ao invés de levar em conta a matéria sobre que versa a causa, optou-se por seu valor financeiro (se superior ou não a 1.000 s.m.). Vislumbraram esse problema ou no fator de discriminação ou, então, na necessária correlação lógica entre este e a finalidade visada, que não teria sido observada. Por essa exata razão, alegaram afronta à isonomia. Concordamos com que a referida Portaria afronta a isonomia, e corroboramos o vício identificado. Apenas não podemos aceitar que ele se encontre no critério de discriminação adotado ou na sua ausência de correlação lógica com a finalidade visada.

Onde, então, está o problema? A resposta será encontrada no terceiro plano de análise, em que ora se adentra. E ele é: o elemento indicativo do fator de discriminação. Conforme lição de Ávila [9], esse plano da análise, de maneira simples, impõe saber: é estatisticamente possível afirmar que quanto mais alto for o valor da causa, tanto maior será a sua complexidade? Se sim, não havia outro meio (outro elemento indicativo) ainda mais significativo para aferir a complexidade da causa, que não o seu valor? Para nós, uma outra pergunta ainda se seguiria a esta última, em caso de resposta negativa: o que leva a crer que a exata cifra de 1.000 s.m., e não outra, seja a mais indicada? Finalmente. Aqui, sim, vislumbra-se uma afronta patente à isonomia. Mais que isso: o que pode ser considerado juridicamente complexo ou não? Se a atividade de aplicar uma norma pressupõe a qualificação de normas e de fatos, há como determinar, de antemão, o que é ou não complexo?

Pode ser, sim, que o valor da causa seja critério apto para aferir a complexidade da causa. Não se perca de vista que o valor de alçada recursal, inclusive em matéria tributária, “não é novidade no ordenamento jurídico nacional, sendo admitido como válido”, como aduziu Diego Diniz Ribeiro [10]. Ademais, pelo menos da forma com que foi regulado pela Portaria MF 20/23, o valor de alçada tem a vantagem de proporcionar segurança, “quando estipula a forma de cálculo do crédito controverso, para a verificação do valor de alçada determinante do rito ao qual estará submetido o PAF” (art. 3º, p. u.), como bem observou Thaís de Laurentiis [11]. Ganha-se em cognoscibilidade e calculabilidade [12].

Mas, a bem ver, havia melhores elementos indicativos da complexidade da causa. De pronto, uma melhor alternativa que salta à mente seria ter-se utilizado não o valor da causa, mas a matéria sobre que ela versa, como registrou Tiago Conde Teixeira[13]. Vale dizer: o “legislador” foi infeliz ao explorar a sua liberdade de conformação material. Mesmo que assim não se entenda, um cuidado maior teria sido necessário para que se fixasse o valor de alçada em um determinado montante. Se fosse mesmo para se escolher o valor da causa como elemento indicativo da complexidade da causa, então, pelo menos, que se houvesse utilizado de algum estudo empírico robusto!

Fixar ex nihilo um determinado valor de barreira de acesso ao Carf é, antes de mais nada, um ato de manifesta arbitrariedade. A praticabilidade do Poder Executivo não pode justificá-lo, e tampouco qualquer garantia constitucional. Não é dado ao “legislador”, em nome da celeridade e da razoável duração do processo, sacrificar a garantia de duplo grau assegurada constitucionalmente para o processo administrativo tributário.

Com isso, mesmo que, entre nós, a constitucionalidade da Portaria MF 20/23 já tenha caído por terra no terceiro plano de análise, adentra-se, ad argumentandum tantum, no quarto: deve-se indagar da consonância da discriminação com os interesses protegidos na Constituição. Não se está a negar que seja louvável o propósito da regulação em tela de atender aos princípios da celeridade e da razoável duração do processo. Mas, como já se deixou entrever, o “legislador” foi infeliz ao explorar o seu leque de possibilidades, maculando a nova regulação de inconstitucionalidade. E isso por pelo menos três razões.

Primeiro que de pouco adianta “aliviar o peso das costas do Carf” se, por outro lado, for para se aumentar as disputas judiciais. É o que como bem observou Conde [14] espera-se que a regulação vá proporcionar. Quem perde é o contribuinte, que, ao invés de discutir seu crédito no âmbito administrativo, quererá fazê-lo no judicial, onde a duração média dos processos é assombrosamente maior e onde jamais conseguir-se-ia descer a um grau de detalhes, de riqueza das discussões, enfim, de justiça individual somente possível no Carf. A macrolitigância Fiscal permanece!

Segundo: as DRJs, diferentemente do que sucede com o Carf, são órgãos não paritários, vinculando-se às deliberações da RFB, por força do que dispõe o artigo 17, V, da Portaria MF 20/23 c/c art. 116 da Lei nº 8.112/90. Acontece que a paridade é um meio de concretização do devido processo legal. Portanto, retirá-la de uma classe de contribuintes, ao menos sem prever algum outro meio de compensação, importa em afronta, por via oblíqua, do princípio do devido processo legal. Constitui um retrocesso que não se pode tolerar [15].

Terceiro: o legislador não se limitou a contrariar disposições constitucionais pertinentes ao processo administrativo tributário. Fê-lo contrariando a opção constituinte por um modelo de justiça particular procedimentalizado, como proposto por Ávila [16]. A ideia é mais ou menos a seguinte: a opção da Constituição de 1988 é, antes de mais nada, por um modelo de justiça particular. Assim, qualquer generalização como a empreendida pela Portaria MF 20/23, ao afastar toda e qualquer causa de valor inferior a 1.000 s.m. do CARF, por presumi-las complexas somente se justificará em face de impossibilidade ou extrema onerosidade, o que dificilmente se defenderá para o caso em tela. Como já dito, podia muito bem ter-se optado pela matéria da causa, ao invés de seu valor

E, subsidiariamente, mesmo no caso de uma generalização ser necessária, a justiça particular não pode ser abandonada, senão que ela deve continuar servindo de contraponto, devendo os padrões legais possuir cláusulas de retorno ao modelo particularista. Para o caso em tela, isso significa dizer: se o contribuinte que pretenda discutir, em segunda instância administrativa, causa de valor inferior a 1.000 s.m. conseguir, de alguma forma, comprovar que sua causa é, sim, o que se consideraria de “alta complexidade”, então ele terá o direito subjetivo de tê-la julgada no Carf. Mas não. A regulação em tela afastou do Tribunal Administrativo, em absoluto, toda e qualquer causa de valor inferior a 1.000 s.m. Sem mais. Não se pode fazer Justiça ou alimentar a sanha arrecadatória estatal atropelando-se direitos e garantias fundamentais.

Por todas essas razões, espera-se ter demonstrado que, sim, a Portaria MF 20/23, reguladora da MP 1.160/23, contraria disposições constitucionais pertinentes ao processo administrativo tributário. Na verdade, assim fazendo, afronta a isonomia de apenas mais uma maneira. Há tantas outras razões para repudiá-la.

 


[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2021.

[2] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da igualdade tributária, São Paulo, Malheiros, 2008.

[3] DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo, 4ª ed., Belo Horizonte, Fórum, 2021, p. 141.

[4] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da igualdade… op. cit., pp. 127 e ss.

[5] DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário… op. cit., p. 141.

[6] Tema 203 de Repercussão Geral: “É constitucional o uso de ações afirmativas, tal como a utilização do sistema de reserva de vagas (“cotas”) por critério étnico-racial, na seleção para ingresso no ensino superior público”.

[7] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da igualdade… op. cit., p. 44.

[8] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo… op. cit., p. 38.

[9] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da igualdade… op. cit., pp. 47 e ss.

[12] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da segurança jurídica, 6º ed., São Paulo, Malheiros, 2021.

[15] ADI 1.976, rel. min. Joaquim Barbosa, P, j. 28-3-2007, DJE 18 de 18-5-2007. Ver tema 341 de RG. Ver Súmula Vinculante nº 21.

[16] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da igualdade… op. cit., pp. 77 e ss.

Bernardo Cabral Filgueiras é membro da Liga Acadêmica de Direito Financeiro e Tributário da UFMG.

José Antonino Marinho Neto é mestrando e bacharel em Direito pela UFMG, especialista em Direito Constitucional pelo IDP, pesquisador do Observatório da Macrolitigância Fiscal e Aditus Iure (IDP), membro e assessor Especial da Presidência da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-MG e advogado.

Consultor Júridico

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