Opinião: Proporcionalidade como variável na fixação dos alimentos

Segundo o Código Civil, no que diz respeito ao direito de família, o dever de prestar alimentos tem origem no vínculo de parentesco, casamento ou união estável, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana e dever de solidariedade familiar, compreendendo tais alimentos as despesas pertinentes à manutenção de uma vida digna, como alimentação, vestuário, moradia, assistência médica, educação, atividades de lazer, etc., conforme dispõe o artigo 1.694, §1º da lei em questão.

Em matéria de obrigação alimentar, habitual ouvir ou ler que os alimentos devem corresponder à 30% dos rendimentos ou do salário do alimentante (pessoa obrigada a pagar os alimentos), como uma espécie de “lenda urbana”, a despeito da tentativa legislativa de estabelecer o percentual como um “piso” (Projeto de Lei nº 420/20, de autoria do deputado José Nelto) e reiteradas decisões judiciais nesse sentido.

Na realidade, para muitos juízes, especialmente nas ações ajuizadas por filhos em face de um de seus genitores, esse referido percentual representa um patamar aceitável e acompanha a expectativa de muitos jurisdicionados diante do imaginário popular (a existência de um percentual para a obrigação alimentar), tornando comum sua aplicação prática no cotidiano do direito de família.

No entanto, o tema é muito mais complexo, sendo comum aos casos a discussão pertinente ao quantum devido para a manutenção digna do alimentando (quem tem direito a receber alimentos) versus a possibilidade financeira do alimentante, o que se denominou na doutrina especializada como binômio alimentar da “necessidade x possibilidade”.

Ocorre que, no exercício da advocacia, acompanhamos, com preocupação, as inúmeras decisões proferidas em ações de alimentos que adotam apenas os dois pressupostos fundamentais (necessidade x possibilidade) como fonte para fixação da pensão, desconsiderando totalmente a importância de se aplicar também a proporcionalidade aos casos como elemento variável, nos moldes do que dispõe o artigo 1.703 do Código Civil:

“Artigo 1.703. Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos.”

No afã de solucionar o conflito de maneira mais simplificada, diversos julgados desprezam esse dispositivo legal, atribuindo a cada um dos genitores, de forma igualitária, o custeio de metade das despesas de manutenção do alimentando, sem qualquer investigação da capacidade financeira de ambos os genitores, medida que se mostra imprescindível para a distribuição proporcional das despesas do alimentando, nos moldes do quanto estabelecido pelo legislador no referido artigo 1.703 do Código Civil.

Com o devido respeito, a lógica e regra de que cada genitor deve arcar com 50% das despesas de manutenção do alimentando, independentemente da análise da capacidade financeira de ambos os genitores, pode apresentar significativas distorções na prática. Imaginemos que o poder aquisitivo de um dos genitores, por exemplo, seja vinte vezes superior ao do outro genitor, auferindo um deles, hipoteticamente, salário bruto de R$2.500,00 por mês, e o outro, de R$50.000,00 pelo mesmo período. Diante disso, o genitor com melhor condição financeira opta por matricular o (a) filho (a) na melhor e mais cara escola da cidade, contratar diversos cursos extracurriculares (inglês, natação, xadrez, etc.) e o mais abrangente plano de saúde disponível no mercado, comprar roupas e calçados de marcas famosas, realizando, ainda, frequentes viagens ao exterior com a criança.

No caso hipotético, a elevada capacidade financeira de um dos genitores certamente permitirá maior contribuição deste, que aufere renda superior, nas despesas e necessidades do alimentando, sem prejuízo da efetiva participação do outro genitor, com menor renda, sendo imperioso atribuir-se a cada qual, proporcionalmente, a responsabilidade de custeio de parte das despesas do filho(a) comum, sob pena de levar-se o genitor menos favorecido à ruína financeira, especialmente nos casos nos quais essa diferença de rendas é mais ampla, e as despesas do alimentando tendem a ser elevadas por força das escolhas promovidas unilateralmente por aquele genitor com maior capacidade financeira/contributiva.

Realçando a importância da análise do elemento da proporcionalidade, o Superior Tribunal de Justiça considerou no REsp nº 1.624.050/MG [1], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, ser possível a fixação de alimentos de forma diferente em relação aos filhos, destacando a observância da capacidade contributiva de cada um dos genitores, individualmente, indicando claramente a relevância da proporcionalidade como parâmetro a ser observado na prática.

Nesse sentido, oportuno transcrever lição da professora Maria Helena Diniz sobre o tema:

“Mas, para a manutenção dos filhos, os cônjuges divorciados (por interpretação extensiva por força da EC nº 66/2010) ou separados judicialmente ou divorciados contribuirão na proporção de seus haveres, pouco importando a culpabilidade pela separação ou o fato de ser genitor guardião ou genitor visitante. Ambos têm o dever jurídico de alimentar a prole, proporcionalmente a seus recursos econômicos; logo, o quantum da verba alimentícia terá por parâmetro a necessidade dos alimentandos e a possibilidade econômica de ambos os genitores (CC, art. 1.703)”. (DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. v.5. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627802. Disponível aqui. Acesso em: 2/8/2023).

Em recente julgado [2], a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou ser irrelevante a averiguação da capacidade financeira de ambos os genitores, considerando, no caso concreto, apenas a capacidade financeira do genitor recorrente na fixação dos alimentos, o que não nos parece acertado, ocasionando o desequilíbrio na fixação da obrigação alimentar.

Especialmente em tempos no qual a lei, a doutrina e a jurisprudência ressaltam a igualdade entre os genitores à luz do Princípio da Isonomia (artigo 226, §5º, CF), torna-se necessário refletir sobre a aplicação do elemento da proporcionalidade nas ações de alimentos, aplicando-se o alcunhado trinômio (necessidade-possibilidade-proporcionalidade), considerando-se, portanto, as peculiaridades de cada caso, auferindo-se as possibilidades financeiras de cada um dos genitores do alimentando, e assim, levando-se à efeito o ensinamento clássico aristotélico de que a verdadeira igualdade somente se alcança tratando-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

Vale lembrar, o dever de manutenção dos filhos é responsabilidade solidária de ambos os pais, não podendo tal dever recair exclusivamente ou desproporcionalmente sobre um dos genitores.

Diferentemente de muitas decisões, a matemática a ser aplicada nas ações de alimentos não é simples, exigindo do magistrado significativa sensibilidade e parcimônia na fixação de alimentos que atendam as necessidades do alimentando, mas que também observem a proporção da real capacidade contributiva de cada genitor e situações que possam diminuir sua capacidade alimentar (existência de outros filhos, eventual menor com necessidades especiais, etc.), evitando assim desigualdades e injustiças.

Por todo exposto, resta claro que não há uma “fórmula mágica” que possibilite a quantificação dos alimentos, mas cabe ao magistrado atentar-se aos pressupostos e elementos apontados na doutrina contemporânea. Nesse sentido, digno de elogio a atenção de alguns julgadores quanto ao que foi alcunhado na jurisprudência como “sinais exteriores de riqueza”, conceito bem descrito no Enunciado 573 do CJF, cuja justificativa transcrevemos para melhor compreensão:

“De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o reconhecimento do direito a alimentos está intrinsicamente relacionado com a prova do binômio necessidade e capacidade, conforme expresso no §1º do artigo 1.694 do Código Civil. Assim, está claro que, para a efetividade da aplicação do dispositivo em questão, é exigida a prova não só da necessidade do alimentado, mas também da capacidade financeira do alimentante. Contudo, diante das inúmeras estratégias existentes nos dias de hoje visando à blindagem patrimonial, torna-se cada vez mais difícil conferir efetividade ao artigo 1.694, §1º, pois muitas vezes é impossível a comprovação objetiva da capacidade financeira do alimentante. Por essa razão, à mingua de prova específica dos rendimentos reais do alimentante, deve o magistrado, quando da fixação dos alimentos, valer-se dos sinais aparentes de riqueza. Isso porque os sinais exteriorizados do modo de vida do alimentante denotam seu real poder aquisitivo, que é incompatível com a renda declarada. Com efeito, visando conferir efetividade à regra do binômio necessidade e capacidade, sugere-se que os alimentos sejam fixados com base em sinais exteriores de riqueza, por presunção induzida da experiência do juízo, mediante a observação do que ordinariamente acontece, nos termos do que autoriza o artigo 335 do Código de Processo Civil, que é também compatível com a regra do livre convencimento, positivada no artigo 131 do mesmo diploma processual.”

Por óbvio, o presente artigo não pretende exaurir o tema, mas sim instaurar o debate e destacar a relevância do elemento da proporcionalidade como variável a ser observada na fixação da obrigação alimentar, o que se entende essencial ao aprimoramento da prestação jurisdicional.

Em nossa opinião, a observância do dispositivo legal apontado e a aplicação concreta desse elemento importantíssimo na fixação ou revisão dos alimentos, por consequência, respeita o princípio da isonomia e fomenta a dignidade da pessoa humana, equalizando os interesses das partes que compõe a relação jurídica sob enfoque.

 

 

José Luiz Parra Pereira é advogado sócio do Parra Pereira Advocacia, especialista em Direito Empresarial, Processo Civil e mestrando em Direito.

Consultor Júridico

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