Popularmente conhecida, a frase “os fins justificam os meios”, oriunda da interpretação da obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, sugere que qualquer iniciativa pode ser considerada válida quando possui como fim a conquista de algo relevante, e é o que pretendemos discutir aqui: até que ponto a tutela ambiental justifica a aplicação de sanções administrativas desproporcionais?
Dentre as diferentes modalidades de responsabilidade ambiental previstas no artigo 225, §3º da Constituição, as quais são denominadas como tríplice responsabilidade do poluidor [1] (responsabilidade civil, administrativa e penal), convém destacar a responsabilidade administrativa.
O artigo 70 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) determina a responsabilidade ambiental administrativa ao descrever que será considerado infração administrativa ambiental a ação ou omissão que contrariar as regras jurídicas do meio ambiente, sejam elas leis, decretos ou exigências técnicas; federais, estaduais ou municipais [2]. O ilícito, portanto, será o descumprimento de uma regra jurídica e, caso ocorra, o artigo 72 da lei anteriormente citada, somado ao conteúdo do artigo 14 da Lei Federal nº 6.938/81, preveem as possíveis sanções administrativas com fim também de impedir o cometimento de novas infrações.
Nesse cenário, é importante enfatizar que as sanções administrativas são aplicadas pelos órgãos estatais, os quais detém o poder de polícia para intervirem na esfera particular em defesa dos interesses da coletividade. Todavia, sob pena de cometer desvio de poder [3], a intervenção da Administração Pública deve ser pautada nas regras jurídicas sobre meio ambiente e alinhada aos limites previstos na legislação vigente, observando, sobretudo, o Princípio da Legalidade [4].
Contudo, os limites legais não devem ser os únicos elementos considerados pela Administração Pública. À vista disso, Gustavo Binenbojm denomina como “visão de túnel” [5] o ato em que o agente da Administração Pública parte apenas dos seus próprios conhecimentos e especificidades do setor em que atua para cumprir com as funções pelas quais foi criado e, por isso, normalmente, não analisa de forma apropriada os demais aspectos envolvidos no caso concreto.
Corrobora nesse sentido a consideração do professor Talden Farias de que a entidade administrativa, comprometida com suas funções e restrita às regras jurídicas ambientais, pode regular de forma mais rigorosa e, consequentemente, promover impactos sociais significativos [6].
Desse modo, para além do limite legal, a intervenção da Administração Pública também deve ir ao encontro da regra da proporcionalidade [7]. Explicamos que, nesse viés, para atingir o fim que se pretende, qual seja, a proteção ambiental, é preciso adotar medidas adequadas e capazes de restringir os direitos fundamentais individuais envolvidos — direito de propriedade, direito à vida digna, direito à intimidade, dentre outros — da forma mais justa e proporcional possível, sem excessos. Certamente, um dos meios para garantir tal justiça é a aplicação da regra da proporcionalidade.
A regra da proporcionalidade, como denominada por Virgílio Afonso da Silva, pretende criar regras de argumentação, critérios de valoração ou fundamentações para justificar a intervenção estatal na esfera dos direitos fundamentais individuais. Dessa forma, o autor elenca três etapas para a conclusão do exame: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
De forma sucinta, é válido destacar que o critério da adequação visa analisar se a medida adotada pelo estado é adequada para concretizar o objetivo perseguido; na sequência, examinar a necessidade da medida, ao verificar se inexiste outra forma menos restritiva para atingir o fim pretendido; e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito é um sopesamento entre os direitos envolvidos para evitar exageros, isto é, “evitar que medidas estatais, embora sejam adequadas e necessárias, restrinjam direitos fundamentais individuais além daquilo que a realização do objetivo perseguido seja capaz de justificar” [8].
Como entende Inocêncio Mártires Coelho, a proporcionalidade possui como objetivo garantir a legitimidade do ato que restringe algum direito, pois visa coibir excessos, promover justiça, bom senso, dentre outros aspectos elencados pelo autor [9].
Nesse sentido, é coerente e fundamental a adoção da regra da proporcionalidade na esfera da responsabilidade administrativa ambiental afastando, dessa forma, o exagero na aplicação da sanção, vez que, não raro nos deparamos com o uso imoderado do poder de polícia da Administração Pública para restringir direitos individuais em detrimento dos interesses coletivos sem se atentar para o objeto perseguido: a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Oportuno ainda notar que a adoção da regra da proporcionalidade não fere o princípio da legalidade, pelo contrário, como explica Marcelo Abelha Rodrigues, uma sanção aplicada de forma desproporcional deve ser considerada ilegal [10]. Outrossim, a responsabilidade ambiental administrativa, como destacado, está prevista na Lei de Crimes Ambientais e, como estabelece o artigo 79, será aplicado, de forma subsidiária, as disposições do Código Penal (CP) e do Código de Processo Penal. Nessas circunstâncias, sem mencionar decretos específicos que preveem atenuantes para adequar a regra jurídica ambiental ao contexto social, a legislação vigente determina, de forma geral, que o administrador deve considerar diversas características subjetivas do infrator e do ato por ele praticado para garantir coerência com a regra da proporcionalidade, como descreve o artigo 59 do CP.
A aplicação da proporcionalidade não visa garantir a impunidade do autuado ou tornar o ilícito ambiental “lucrativo” com a aplicação de sanção administrativa irrelevante ou com valor pecuniário irrisório, mas pretende impedir que a penalidade se torne rigorosamente excessiva para determinado setor social da sociedade. Como mencionamos, a aplicação da regra da proporcionalidade pretende punir o agente por ter realizado uma conduta contrária às regras jurídicas do meio ambiente, sem, contudo, atingir os direitos individuais do autuado, previstos na Constituição Federal, de forma desnecessária e ao ponto de comprometer o meio de subsistência por ele utilizado. Nesse sentido, o que se pretende é promover a proteção ambiental de forma adequada, justa e efetiva.
Convém lembrar que a discricionariedade dos atos administrativos não é sinônimo de plena liberdade na conduta da Administração Pública, haja vista que, caso ocorra a prática de atos injustos, o Poder Judiciário terá o poder-dever para corrigir tal situação, conforme decidiu o ministro relator Humberto Martins no Recurso Especial nº 1.402.594 de 2013. No caso em questão, o STJ não conheceu do recurso especial interposto pelo Ibama que visava anular a redução da multa aplicada nas instâncias inferiores, isto é, uma redução de R$ 100 mil para R$ 30 mil pela pesca de 100 kg de camarão.
O Ibama havia argumentado que a redução do valor da multa pelo poder judiciário caracterizaria invasão do mérito administrativo, todavia, alinhado ao conteúdo exposto no presente artigo, o STJ esclareceu que a redução reflete, na verdade, a observação da proporcionalidade da pena e que é um dever do Poder Judiciário estar atento aos excessos eventualmente cometidos pela Administração.
Para além do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, vale destacar uma sentença proferida recentemente pelo TRF-1 que, ao contrário daquela, trata de valores de multa considerados “fechados”, isto é, com valores previamente fixados pela legislação vigente. Nesse caso, o Ibama autuou um produtor rural por desmatar 13 hectares de floresta nativa em área de reserva legal sem autorização prévia do órgão ambiental.
O comportamento foi enquadrado no artigo 51 do Decreto nº 6.514/08, o qual determina multa de R$ 5.000 por hectare ou fração e, nessas circunstâncias, o instituto aplicou multa no valor total de R$ 65 mil. A juíza responsável entendeu que, por ser o autuado pequeno produtor rural e assistido pela Defensoria Pública, não seria justo aplicar o regulamento por simples cálculo matemático, uma vez que traria distorções e incongruências.
Ao longo da sentença, a juíza fundamentou que o ato contrário às regras ambientais era matéria incontrovertida nos autos, portanto, não era caso de anulação do auto. Contudo, em conformidade com o artigo 4º do decreto mencionado, o administrador ao lavrar o auto de infração deveria ter considerado a situação econômica do infrator, haja vista que o valor da multa era superior à capacidade financeira do pequeno produtor, tornando a penalidade mais severa.
Desse modo, a juíza pontuou que “imputar a um pequeno produtor rural ônus flagrantemente superior à sua capacidade econômica representa verdadeiro desvio da finalidade da norma, uma vez que a multa, ao invés de reprimir e desestimular um comportamento ilícito, tem natureza confiscatória quando considerado o valor aplicado em face das condições econômicas da infratora e do valor de mercado do imóvel rural” [11].
Em desfecho, é possível perceber que não raras vezes o administrador, aplica sanções administrativas ambientais a partir de uma análise restrita aos cálculos previstos nas regras jurídicas ambientais, sem examinar o contexto. A análise pontual adotada pelo órgão administrativo acarreta a aplicação das normas de maneira desproporcional.
Desse modo, o Poder Judiciário é comumente provocado a fim de trazer justiça as sanções ambientais excessivas ou mesmo distorcidas imputadas pelos agentes da Administração Pública, pois contrariando o pensamento maquiavélico, não é possível — e muito menos justo — limitar os direitos fundamentais individuais para além daquilo que o fim pretendido seja capaz de proteger.
[1] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
[2] SILVA, Carina Goulart; BRAUNER, Maria Claudia Crespo. A tríplice responsabilidade ambiental e a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Revista Juris, Rio Grande, RS, v. 26, p. 71-87, 2016.
[3] LAUS, Audret dos Santos. A sanção administrativa ambiental e o princípio da proporcionalidade. Novos estudos jurídicos. Itajaí, SC, v. 9, n. 2, p. 417 – 434, maio/ago 2004.
[4] FREZZA, Eduardo Alexandre; VILLAR, Pilar Carolina. Natureza jurídica da responsabilidade por infração administrativa ambiental. Revista de Ciências Sociais e Jurídicas. Rio de Janeiro, v. 2, nº 1, p. 19 – 41, jan/jun 2020.
[5] URBAN, Renan Lucas Dutra. Decisões técnicas, escolhas morais e democracia: agências reguladoras e deliberação sobre direitos fundamentais. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Univali. Itajaí, SC, v. 13, nº 2, p. 615 – 632, 2° quadrimestre de 2018.
[7] Sem a presunção de exaurir o tema, é importante salientar que, embora exista uma controvérsia doutrinária acerca da adoção do termo “regra” ou “princípio” da proporcionalidade, para a presente pesquisa adotaremos a nomenclatura “regra da proporcionalidade”, haja vista que a distinção entre regras e princípios, descrita por Robert Alexy, determina regra como deveres definitivos e que são aplicados através da subsunção, por outro lado, compreende princípio como uma norma de expressar deveres prima facie, porque o conteúdo definitivo somente será aplicado após sopesamento com princípios colidentes porque são mandamentos de otimização, como esclarece Luís Virgílio Afonso da Silva. Nesse sentido, a proporcionalidade tem estrutura de uma regra, “porque impõe um dever definitivo: se for o caso de aplicá-la, essa aplicação não está sujeita a condicionantes fáticas e jurídicas do caso concreto, sua aplicação é, portanto, feita no todo”. SILVA, Virgílio Afonso. DIREITOS FUNDAMENTAIS: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2° ed., 2017.
[8]SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2° ed., 2017.
[9] COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008; apud NASCIMENTO, Felipe Costa Laurindo; FRANÇA Jr., Francisco de Assis. Proporcionalidade: um estudo sobre regras, princípios e postulados. Revista jurídica luso-brasileira, ano 5, n° 6, Lisboa, p. 698 – 728, 2019.
[10]RODRIGUES, M. A. Instituições de Direito Ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2002. apud LAUS, Audret dos Santos. A sanção administrativa ambiental e o princípio da proporcionalidade. Novos estudos jurídicos. Itajaí, SC, v. 9, n. 2, p. 417 – 434, maio/ago 2004.
[11] TRF-1 – Processo 1005097-53.2019.4.01.3000, Juíza: FRANSCIELLE MARTINS GOMES MEDEIROS, Data de Julgamento: 10/05/2022, 1ª Vara Federal Cível e Criminal da SJAC.
Thamara Freitas da Cunha é graduanda da Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), estagiária de direito no escritório Reis Carneiro Sociedade de Advogados e membro do Laboratório de Direitos Humanos (LabDH).
Paula Angélica Reis Carneiro é bióloga, advogada, especialista em Direito Ambiental e Gestão da Sustentabilidade, sócia fundadora no escritório Reis Carneiro Sociedade de Advogados e membro associada à União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa).
Milla Christi Pereira da Silva é advogada, sócia do escritório Reis Carneiro Sociedade de Advogados, mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e especialista em Direito Societário e Contratos Empresarial pela UFU e em Direito Urbanístico e Ambiental pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).