Opinião: Tema 1.096 do STJ e o dano presumido ao erário

Nos termos do inciso VIII do artigo 10 da Lei nº 8.429/92, configura ato de improbidade a conduta de “frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente” (redação dada pela Lei nº 13.019/2014).

À luz desse dispositivo, o stj (Superior Tribunal de Justiça) foi instado a se pronunciar sobre a possibilidade ou não de se presumir o dano ao erário para fins de punição nesses casos de fraude à licitação e/ou processo seletivo [1]. O mero ato de fraudar ou dispensar indevidamente o procedimento é suficiente para a caracterização de dano ao erário, ainda que, na prática, não se verifique prejuízo aos cofres públicos?

Em junho de 2021 (portanto, antes da edição da Lei nº 14.230/21) a questão foi afetada no Tema Repetitivo nº 1.096, que ficou assim ementado: “Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)”.

O objetivo desse artigo é refletir sobre essa controvérsia, especialmente para indicar a necessidade de consideração, no julgamento, das modificações introduzidas pela Lei nº 14.230/21 no sistema brasileiro de combate à improbidade.

Se já antes da Lei de Reforma entendíamos pela impossibilidade de se presumir qualquer espécie de dano ou lesão ao erário nos casos de improbidade, agora isso está previsto em lei. Ao tratar dos atos de improbidade que causam lesão ao erário, o legislador incluiu textualmente a exigência de que o dano seja efetivo e comprovado:

“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;”

De igual modo, ao dispor sobre a sanção de ressarcimento integral do dano patrimonial no caput do artigo 12 e no inciso I do artigo 21, o legislador condicionou a sua aplicação à efetividade (existência real e comprovada) do dano [2]. Como já pontuamos, isso significa que “…não há o que se falar na condenação do acusado a reparar dano hipotético ou presumido, mas somente o dano efetivamente causado, que deve estar demonstrado documentalmente nos autos” [3].

Embora conheçamos a jurisprudência da corte em sentido contrário, de que a dispensa indevida de licitação configura dano in re ipsa, permitindo a configuração do ato de improbidade que causa prejuízo ao erário (por todos, REsp nº 1.879.048/AL), fato é que com a Lei nº 14.230/21 o legislador expressamente pôs fim a esse entendimento ao exigir a comprovação real e efetiva do dano não só para a configuração dos atos tipificados no artigo 10, mas também para a aplicação da sanção de ressarcimento do dano.[4] O inciso I do artigo 21 resume bem a questão:

“Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:

I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento e às condutas previstas no art. 10 desta Lei;”

Veja-se que uma leitura sistemática da lei não autoriza conclusão para o Tema 1.096 que não o reconhecimento da impossibilidade de se presumir o dano ao erário para fins de punição na hipótese de ato que frustra licitação e/ou processo seletivo ou os dispensa indevidamente. A ver como se pronunciará a corte. O que está em jogo não é apenas a interpretação de um dispositivo legal, mas a própria autoridade do Legislativo e a racionalidade que a Lei nº 14.230/21 impôs ao sistema da improbidade administrativa.

Bernardo Strobel Guimarães é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP, professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR, professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

Caio Augusto Nazário de Souza é advogado, LL.M. em Direito Empresarial pela FGV-RJ e especialista em mediação e arbitragem pela mesma instituição.

Luis Henrique Braga Madalena é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj, mestre em Direito Público pela Unisinos, vice-diretor financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor