As tendências de profissionalização da gestão jurídica, a criação de novas áreas e atividades e a necessidade de investimento para o uso crescente de novas tecnologias têm revolucionado o modo como estamos exercendo as profissões jurídicas no Brasil e no mundo. São muitos fatores e uma demanda crescente por eficiência e pela melhoria na experiência do cliente, o que tem gerado muitas discussões sobre o modelo histórico de organização, especialmente nos escritórios de advocacia.
A digitalização de processos, a automação, as técnicas de inteligência artificial e outras soluções tecnológicas têm sido cada vez mais utilizadas pelos advogados para otimizar o trabalho e aumentar a eficiência e acurácia dos serviços.
Para as gerações recentes, o fato de não exercermos mais a profissão sem o uso desses sistemas eletrônicos já é a regra. Contudo, num passado não distante, muito do dia a dia da profissão era preenchido por atividades mecânicas, que concorriam e ainda concorrem o tempo todo com as tarefas propriamente jurídicas. Assim, essa transformação digital já demonstrou seu papel de nos apoiar nas tarefas burocráticas e otimizar o tempo, para gerar ambientes colaborativos para a realização das atividades pelos times internos, entre muitos outros benefícios. Contudo, a introdução dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que facilitam o dia a dia, trazem novos dilemas éticos e regulatórios, que demandam reflexão conjunta da academia e dos setores envolvidos.
Esse uso de tecnologia nas profissões jurídicas vem se intensificando, de forma proporcional ao número crescente de legaltechs no mundo todo, o que também tem impulsionado o avanço das consultorias para serviços relacionados a questões jurídicas, assim como o crescimento das chamadas ALSPs (alternative legal service providers). Se a projeção é que o mercado de soluções de inteligência artificial aplicada à área do Direito cresça 33,5% até 2030 [1], o uso de máquinas na prática jurídica e a entrada de novos players nesse mercado irá se transformar ainda mais nos próximos anos, especialmente pelo grande volume de documentos e informações envolvidas, e a necessidade de um ambiente para a gestão de riscos e de apoio a tomada de decisão. Um exemplo desse fenômeno é o ChatGPT e outros modelos de linguagem em larga escala que, em pouco tempo, já têm impactado diversos profissionais e escritórios de advocacia, apesar de seu estágio inicial e limitações atuais.
Nesse cenário, a regulação atual não contempla todas as dimensões, atribuições e competências dos profissionais jurídicos diante desses novos desafios de gestão e uso de novas tecnologias. Isso fez com que alguns países já tenham ampliado, inclusive, a discussão sobre a regulação dos serviços jurídicos e liderado movimentos inovadores nesse sentido.
A Inglaterra foi pioneira nesse campo, e aprovou em 2007 o Legal Service Act que permitiu, por exemplo, a criação de uma estrutura de negócios alternativa (alternative business structure), possibilitando não advogados a ingressar como sócios, sócios gestores ou incorporar serviços jurídicos em estruturas que não são propriamente escritórios de advocacia [1]. Isso também possibilitou até que escritórios de advocacia realizasse seu IPO na bolsa de valores. Apesar de todo esse movimento, atualmente são apenas 6 escritórios listados em bolsa, e a entrada de sócios investidores e outros players no mercado se estabilizou ao longo do tempo, mas o mercado jurídico inglês continua crescendo e implementando seu projeto de se tornar líder mundial na nossa área.
Nos EUA, os estados de Utah e Arizona também criaram um regramento próprio para alterar esse aspecto da regulação dos serviços jurídicos, permitindo investimentos em organizações jurídicas e o ingresso de sócios não advogados (não podendo, obviamente, realizar os serviços propriamente jurídicos, apenas de gestão e de tecnologia aplicada). Outros estados americanos, como Califórnia, Flórida, Michigan, Washington e Carolina do Norte também criaram uma estratégia própria, nesse caso se valendo do conceito de sandbox, autorizando alguns escritórios para avaliar os seus impactos e entender os melhores caminhos para essas transformações, com foco principal em tornar os serviços jurídicos mais acessíveis para a população de baixa renda [2]. Sobre essas iniciativas, a Stanford Law School [3] soltou uma publicação no final do ano passado demonstrando que essa reforma regulatória está gerando inovações substanciais no mercado jurídico daquele país.
Como pesquisadores e líderes de pesquisa no Centro de Pesquisa em Inovação (Cepi) da FGV Direito SP, temos observado esses movimentos ao longo do mundo, como parte de nossos estudos e pesquisas, para compreender os possíveis impactos no Brasil nos próximos anos, apesar de ainda não termos nenhuma discussão concreta sobre essas questões até o momento.
Além das discussões relacionadas à gestão e aos investimentos, no plano do uso da tecnologia aplicada, as preocupações ou questionamentos são normalmente relacionados aos limites éticos da profissional e a responsabilidade dos profissionais. Ou seja, como fica a responsabilização em caso de erro cometido por um sistema tecnológico contratado por um advogado? Como fica a responsabilização de um profissional jurídico que contrata uma ferramenta de tecnologia e ela apresenta um erro que gera um dano ao seu cliente? De quem seria a responsabilidade, do advogado ou da empresa de tecnologia? A tecnologia pode apenas apoiar a tomada de decisão e as tarefas de rotina, ou pode de fato ser usada para atividades jurídicas? Em que medida uma tecnologia de automação ou IA pode ser usada para substituir tarefas realizadas por profissionais jurídicos? Pode ser usada para escrever petições, recursos, realizar audiências? Quais os limites éticos do uso de tecnologia na realização das atividades dos profissionais jurídicos?
Essas transformações no modo como esses serviços operam com tecnologia estão levando à criação de plataformas que, inclusive, oferecem assistência jurídica sem o intermédio de um advogado, como o aplicativo americano Do Not Pay [4], que se apresenta como sendo um robô advogado e usa a inteligência artificial para auxiliar as pessoas a resolverem conflitos com grandes corporações, como multas de estacionamento, cobranças de tarifas bancárias e empresas que usam sistema de chamadas automatizadas. A empresa afirma, ainda, que seu objetivo é nivelar o jogo, além de fazer a informação jurídica e a autonomia para esse processo ser acessível para todos. Ao mesmo tempo em que o serviço pode ampliar o acesso à justiça, tal automação envolve outros possíveis riscos, como o de judicialização desenfreada — superlotando os já abarrotados tribunais — ou de prejuízo na qualidade do serviço jurídico, dada a ausência de acompanhamento por um profissional humano.
Esse último risco traz um outro questionamento, referente à própria prestação de serviço jurídico. Quem pode prestá-lo? Pode ou não haver prestação de serviço jurídico por não advogados, em que casos? Isso seria possível em casos como os juizados especiais, em que não é preciso advogado (abaixo de 20 salários mínimos)? E um robô, poderia prestar serviços nesse caso? Como ficaria a responsabilidade por erro profissional no caso de um atendimento prestado unicamente por um robô advogado? É possível — e desejável — diferenciar áreas do direito em que o uso de um robô advogado pode ser mais ou menos tolerável? Para que atividades?
Ou seja, quais são os atos privativos do advogado, do magistrado, do promotor, que limitam a realização dos serviços jurídicos para quem tem a prerrogativa profissional para realizá-los? Será que a definição atual de quais são os atos privativos de cada carreira jurídica está adequada a essa nova realidade?
Assim, são inegáveis as transformações nas profissões jurídicas, especialmente na última década, em termos de eficiência, eficácia, aumento da produtividade, custos e gerenciamento de informações. No entanto, há que se considerar também as questões éticas e os erros das máquinas e a reprodução de vieses dos algoritmos em análises e predições automatizadas, já constatadas em diversas ocasiões, de modo que a responsabilização pelo uso dessas novas ferramentas tem começado a gerar muitos debates pelo mundo e também aqui no Brasil.
Não temos as respostas e nem o objetivo de fazer qualquer juízo de valor sobre essas questões nesse momento, mas apenas levantar as discussões e iniciativas que estão acontecendo ao longo do mundo e como estão impactando na regulação dos serviços jurídicos, como forma de compreensão e investigação da realidade, como campo de análise desse movimento.
É fundamental que haja, portanto, uma discussão aprofundada sobre essas possibilidades e o acompanhamento dessas iniciativas ao longo do mundo, para subisidiar e nos preparar para avaliar os seus impactos e como isso pode se refletir na regulação dos serviços jurídicos no Brasil nos próximos anos.
Um ponto crucial é a discussão sobre o que é serviço jurídico e/ou ato privativo, o que também tem acontecido em diversas outras profissões, como na medicina (ato médico). Olhar, portanto, todas essas mudanças que estão acontecendo na profissão por meio de uma regulação adequada é um grande desafio.
No caso da responsabilização sobre uso de inteligência artificial, por exemplo, ainda não há uma regulação específica sobre essa questão. A União Europeia está na fase final de discussão do texto do AIAct e no Brasil o Marco Legal da Inteligência Artificial está em tramitação no Senado Federal, sendo a responsabilidade civil um dos temas principais.
Entre os pontos mais importantes nos textos já submetidos à aprovação na Europa e no Brasil estão a responsabilidade civil e o respeito à regulação setorial, como forma de harmonização entre essa nova legislação com as regras de cada setor ou área. Isso demonstra que devemos observar e considerar essas questões e o seu reflexo nos serviços jurídicos desde agora.
Um exemplo de impacto da tecnologia na profissão jurídica foi a recente alteração das regras de marketing jurídico, permitindo o uso de redes sociais dentro dos parâmetros aprovados pela OAB. Foi uma construção discutida com a comunidade, e que parece ter encontrado um caminho de equilíbrio entre a inovação e a ética profissional.
Assim, as discussões sobre as formas de organização e gestão, assim como para o uso de ferramentas tecnológicas de última geração, devem ser acompanhadas de uma reflexão crítica sobre suas implicações e limitações, para que eventuais erros não acarretem equívocos na prestação de um serviço nem firam os direitos fundamentais. É necessário, portanto, que os profissionais da área jurídica estejam preparados para utilizar essas novas tecnologias de forma ética e responsável.
Com todas essas mudanças acontecendo a uma velocidade cada vez mais rápida, a regulação na profissão jurídica brasileira precisará se adaptar a essa nova realidade em um futuro não muito distante, em busca de uma gestão eficiente e o uso das novas tecnologias com as garantias de respeito aos fundamentos éticos da profissão, de segurança e qualidade dos serviços prestados.
Especialmente em relação ao uso da tecnologia, embora a regulação dessas questões esteja em processo de desenvolvimento, em função da complexidade, torna-se ainda mais urgente criarmos fóruns de debate qualificado no Brasil para avançar nessa construção.
Não somente na academia, mas nos ambientes profissionais e com equipes multiprofissionais para contribuir com suas experiências, pesquisas e reflexões sobre esse futuro, em prol da construção de potenciais alterações na regulação que atendam às necessidades da sociedade atual, com foco na ética, na transparência e na responsabilidade.
Esse texto é o segundo de uma série de seis artigos com reflexões sobre os impactos da inovação e da tecnologia aplicada, para contextualizar o estado da arte e os seus impactos no mercado jurídico global, indicando as potenciais tendências que podem nos ajudar a projetar cenários futuros, a navegar nesse mundo em transformação. O primeiro foi sobre “Tecnologia aplicada aos serviços jurídicos: como estamos e para onde vamos”, que fala sobre o crescimento dos investimentos em tecnologia jurídica e como isso afeta o ambiente jurídico.
[3] https://law.stanford.edu/publications/legal-innovation-after-reform-evidence-from-regulatory-change/
Marina Feferbaum é coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (Cepi) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP, onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação.
Alexandre Zavaglia Coelho é líder de pesquisas no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (Cepi-FGV Direito SP) e doutorando em governança e ética e inteligência artificial pelo Tidd- PUC-SP.
Guilherme Balbi é pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (Cepi) e mestrando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).