Os 35 anos da Constituição que se constituiu como mulher (página 1 de 4)

Em geral, as mulheres não participaram dos processos constituintes, não escreveram ou ratificaram suas constituições, especialmente aquelas feitas nos séculos 18 e 19. Na maior parte delas, os homens escreveram as constituições como se as mulheres não existissem, como em períodos pós-guerras e em processos de pacificação (Montañez, 2014).

Com a análise das constituições criadas no século 20 ou anterior, observa-se pouca preocupação com a igualdade e com o direito das mulheres (Baines; Rubio-Marin, 2004).Esse pressuposto básico foi compartilhado por vários campos do Direito. No Direito Penal, historicamente, houve tentativas de justificar a prática do feminicídio com base na “honra” do homem [1]. Já no Código Civil de 1916, os discursos de gênero eram perpetuados, considerando a mulher como incapaz (artigo 6º) e atribuindo ao homem o papel de “chefe da sociedade conjugal”, responsável pelos “bens particulares da mulher” (Brasil, 1916). Essa visão também refletiu no Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62).

Tomando por base a articulação por direitos pelos movimentos feministas, observa-se que, no âmbito constitucional, o compromisso com a igualdade formal e explicitamente com a igualdade de sexo e gênero somente se tornou um tema geral no constitucionalismo do pós-Segunda Guerra Mundial, apesar das limitações impostas pelo modelo de família hegemônica (Costa, 2016).

Nas últimas décadas, nas principais democracias liberais, surgiram indagações sobre como incluir e pensar uma perspectiva de gênero no direito, para que por meio dele seja possível a construção e desconstrução de gêneros no sistema jurídico e nas constituições (Irving, 2008; Millard, 2013). Novas posições em busca de avanços pelos direitos surgiram a partir da década de 1980, com as canadenses reivindicando direitos de igualdade sexual para que estivessem presentes na Carta de Direitos e Liberdades de 1982; no âmbito Sul-Global, as colombianas advogaram com sucesso pela igualdade de gênero, resultando na Constituição de 1991, assim como na África do Sul, na qual as mulheres tiveram espaço na Constituição de 1996.

O processo de inclusão dos direitos de igualdade de gênero no Brasil voltou a eclodir após o fim da ditadura civil-militar, com a redemocratização. Assim, “o feminismo no Brasil entra em uma fase de grande efervescência na luta pelos direitos das mulheres” (Pinto, 2010, p. 17). Nessa perspectiva, surgem questões de lutas pelos direitos das mulheres que abraçam uma série de temas, como violência de gênero, sexualidade, direitos reprodutivos, direito à autonomia do corpo, direito ao trabalho, igualdade e orientações sexuais (Pinto, 2010).

Com efeito, inicia-se o Processo Constituinte em 1988, com apenas “26 deputadas e nenhuma senadora” (Câmara dos Deputados, 2018), o que culmina na promulgação da Constituição Federal (CF), também conhecida como Constituição Cidadã (Pinto, 2003). A CF de 1988 “é uma das que mais garante direitos para a mulher no mundo” (Pinto, 2010, p. 17). Desse modo, a Carta Magna brasileira incorporou grande parte das reivindicações feitas pelos movimentos das mulheres durante os trabalhos constituintes (Pinto, 2003), cujo êxito fica claro no artigo 5º, I, que assegura expressamente a igualdade entre homens e mulheres (Brasil, 1988). Assim, a Constituição representa uma “ruptura com a desigualdade de gênero e com a sociedade patriarcal brasileira” (Barboza; Demetrio, 2019, p. 2). Pensar esse impacto é pensar que avanços ainda necessitam ser feitos.

A Constituição incorporou grande parte das reivindicações feitas pelos movimentos das mulheres durante os trabalhos constituintes, cujo êxito fica claro nos seguintes dispositivos:

O artigo 3o, inciso IV estabelece a não discriminação em virtude de sexo, origem, cor, raça como objetivo da República, tendo a igualdade como princípio implícito que busca uma proteção interseccional, completa para que se possa verdadeiramente usufruir de uma igualdade estrutural. Não bastasse a proteção da igualdade expressa no caput do artigo 5o, seu inciso I, assegura expressamente a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, buscando não apenas a igualdade formal, mas também a promoção de uma igualdade material e estrutural.

A proteção à maternidade foi prevista em vários dispositivos da Constituição quando trata de direitos trabalhistas (artigo 6º), direitos previdenciários (artigo 201, II) e da assistência social (203, I). O artigo 7º, inciso XVII, também reconhece o direito à igualdade jurídica e à diferença natural entre os gêneros, garantindo licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias. Complementando, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias veda, em seu artigo 10, in- ciso II, alínea “b”, a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.

O salário-maternidade é o único benefício pago pelo Regime Geral da Previdência Social que não se submete ao teto constitucional (limite remuneratório dos servidores públicos), fato este reiterado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI nº 1.946-DF [2]. De responsabilidade da previdência social, a tentativa de transferir tal ônus ao empregador implicaria num retrocesso social que estimularia os emprega- dores a contratar trabalhadores do sexo masculino.

Ainda em relação à previdência social, nos artigos 40 e 201, a Constituição garante redução de cinco anos de tempo de contribuição e de idade para a obtenção de aposentadoria pelas mulheres trabalhadoras rurais, servidoras públicas, professoras ou celetistas.

Tal distinção não se dá pela dupla jornada de trabalho, pois, apesar de esta existir, ela não impacta na expectativa de sobrevida das mulheres. Ocorre que as relações de trabalho ainda as mantêm em condições de desigualdade. Isso acontece, pois, existem muito mais mulheres do que homens na economia informal, porque desse modo é possível conciliar trabalho e afazeres familiares. Nesses períodos, a mulher normalmente fica sem contribuir para a previdência social e muitas não ocupam trabalho remunerado durante grande parte de sua vida em função das responsabilidades familiares e da maternidade. Portanto, mulheres ainda enfrentam desafios para contribuir de maneira equivalente aos homens [3], principalmente em decorrência da dificuldade de inserção no mercado de trabalho, e da maior probabilidade de desemprego (Amaral et al., 2019).

Alguns dados do Ipea (2017) demonstram que mulheres se aposentam majoritariamente por idade, e que grande parte das aposentadorias é de um salário mínimo. Comparativamente, enquanto 36,1% dos homens se aposentaram por idade, para mulheres, a proporção é de 64,5% (Mostafa et al., 2017).

Ainda, no que diz respeito à maternidade, a Constituição assegurou às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

No artigo 7º, inciso XX, a Constituição propugna pela proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei. Referido dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 9.799/99, que incluiu na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) normas protetivas para o mercado de trabalho feminino.

Ainda, o artigo 7º, inciso XXX, proibiu a discriminação no mercado de trabalho, no que se refere às atribuições e aos salários, por motivo de sexo ou estado civil. Tal artigo foi regulamentado pela Lei nº 9.029/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.

No âmbito doméstico e familiar, a Constituição inovou ao estabelecer, em seu artigo 226, §5º, que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Veja-se que, até aquele momento estava vigente o Código Civil de 1916 que consagrava no Brasil a superioridade do homem em relação à mulher, garantindo ao homem o comando absoluto da família e a total autoridade sobre a esposa e os filhos. Além disso, reconheceram-se diversos tipos de família [4], inclusive aquela formada apenas pela mãe e seus filhos.

Estefânia Maria de Queiroz Barboza é mestre em Doutora em Direito pela PUC-PR, professora de Direito Constitucional dos cursos de graduação, mestrado e doutorado da UFPR e do mestrado da Uninter.

André Demetrio é mestre em Direito pela PUC-PR, doutorando em Direito pela UnB e professor substituto no IFSP.

Consultor Júridico

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