Dentre os inúmeros efeitos que o sistema acusatório irradia no processo penal, elegemos como foco do presente artigo a (im)possibilidade de o juiz pronunciar o réu quando o Ministério Público pugna pela impronúncia ou absolvição sumária do acusado. Mutatis mutandis, trata-se da mesma ratio essendi que circunda o debate acerca da (in)constitucionalidade do artigo 385 do CPP.
O artigo 385 do CPP permanece com a redação inalterada desde a edição do nosso CPP, em 1941, com a sua estrutura inquisitorial [1], que foi inspirado no CPP italiano de 1930, concebido em plena ditadura fascista de Mussolini [2]. Esse dado revela o contexto histórico autoritário [3] de criação do nosso CPP, que trouxe como consequência o fortalecimento do sistema criminal punitivo, elevado à categoria de protagonismo do juiz em detrimento das partes no processo penal [4]. Por conseguinte, a pretexto de alguns mitos e discursos, em especial, da busca da verdade real/material [5], inúmeros poderes foram concedidos ao magistrado, cabendo-lhe inclusive condenar o acusado, independentemente da manifestação de absolvição da parte acusatória.
Fato é que, com a proclamação da nossa Carta Magna, o Ministério Público assumiu a titularidade quase exclusiva da ação penal pública (artigo 129, I, da CF). Na conjectura de um processo penal parametrizado pelo sistema acusatório, impositivo apontar que o artigo 385 do CPP não foi recepcionado pela Constituição Cidadã [6]. Acrescenta-se que a Lei n° 13.964/19 trouxe significativas mudanças em prol da efetivação do modelo acusatório, a exemplo da proibição de que o juiz decrete de ofício prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar no curso da persecução penal [7].
A 5ª Turma do STJ firmou entendimento, nos autos do AgRg no AREsp nº 1.940.726/RO [8], de que, em regra, o juiz não pode condenar em caso de pedido absolutório formulado pelo Ministério Público, salvo se apresentar uma fundamentação robusta que justifique a condenação. Em posicionamento assemelhado, já asseverou a 1ª Turma do STF, nos autos da AP 976/PE [9], que, mesmo diante da constitucionalidade do artigo 385 do CPP, se “impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal”. O ponto inicial do debate se dirige à discordância teórica e prática do atual posicionamento jurisprudencial. E mais, o foco ao judicium accusationis essa orientação efetivamente não se aplica, porquanto a decisão de pronúncia não pode ser excessivamente fundamentada.
As decisões acima referidas, embora evidenciem uma salutar inflexão da matéria, ainda não refletem, no entanto, a jurisprudência dominante nos tribunais brasileiros. A 6ª Turma do STJ, por exemplo, tem reiterados precedentes sustentando a constitucionalidade do artigo 385 do CPP [10].
Destarte, faremos um cotejo crítico entre os fundamentos que embasam a tese da constitucionalidade do artigo 385 do CPP e as balizas que, de outra banda, servem de sustentáculo para adoção de entendimento oposto ao sufragado pela jurisprudência majoritária.
Para fundamentar a desvinculação do magistrado ao pleito absolutório formulado pelo Ministério Público, invoca-se que a sentença judicial tem guarida no princípio do livre convencimento motivado. Essa argumentação não nos convence! A uma, esclarecemos que se diz “livre” o convencimento judicial porque não vigora mais, como outrora, o sistema de prova legal ou tarifada, no qual havia prefixação do valor das provas [11]. A duas, porque consoante os princípios da inércia da jurisdição e imparcialidade, o juiz deve firmar um convencimento em resposta ao que foi requerido pelas partes, e não em substituição à acusação.
Ademais, o regramento da mutatio libelli enaltece o nosso entendimento de que o princípio do livre convencimento judicial não legitima uma condenação sem prévia manifestação expressa da acusação. O artigo 384 do CPP é enfático em determinar que, mesmo diante “de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação”, o juiz só pode condenar se houver aditamento da peça acusatória.
Pelo princípio acusatório, ao magistrado incumbe a tarefa de julgar com imparcialidade o caso penal [12], tendo por parâmetros as provas lícitas produzidas pelas partes, ao passo que a função acusatória é de titularidade do Ministério Público. Por conseguinte, essencial que acusação e órgão julgador exerçam as inconfundíveis funções que lhe foram determinadas.
Em rápido arremate, finda a instrução criminal e o titular da ação penal conclui, que a solução jurídica adequada ao caso concreto é a absolvição do réu, há uma vedação lógica e democrática do magistrado, sob pena de violação ao sistema acusatório, condenar o acusado.
Nesse desiderato, com base no brocardo ubi eadem ratio ibi eadem, sustentamos que, ao final do judicium accusationis, o magistrado não pode pronunciar o réu, caso as alegações finais ministeriais apontem para impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária do acusado. Nessa hipótese, a violação ao sistema acusatório é ainda mais gravosa. Primeiro, em virtude dos limites da fundamentação da decisão de pronúncia. Ainda, com a exclusão da figura do libelo desde o advento da Lei 11.689/2008, essa pronúncia será a peça delimitadora da acusação a ser sustentada na fase do judicium causae.
Importante esclarecer que a irrefutabilidade do pleito de impronúncia/absolvição sumária feito por um representante do Ministério Público é tema que merece outra análise. A discussão sobre as possibilidades de revisão do posicionamento ministerial se direciona à incumbência do próprio Parquet, e não do magistrado, que deve se manter equidistante das partes.
Situação análoga ocorre ao fim da fase pré-processual: diante dos elementos de informação colhidos na investigação — em regra, materializada por meio de inquérito policial —, o órgão de persecução penal pode decidir pela realização de novas diligências, pelo oferecimento de denúncia ou acordo de não persecução penal ou ainda pelo arquivamento do feito.
Antes do advento do “pacote anticrime”, era tarefa do juiz homologar o pedido de arquivamento do inquérito policial feito pelo Ministério Público. Todavia, justamente com o objetivo de adequar o processo penal ao modelo acusatório, a nova redação do artigo 28 do CPP [13] — com vigência ainda suspensa em razão de decisão cautelar do ministro Luiz Fux, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 — determina que o pedido de arquivamento seja homologado por instância de revisão ministerial.
É bem verdade que a ação penal pública é regida pelos princípios da obrigatoriedade (atualmente bastante mitigada) e indisponibilidade. Todavia, rechaçamos, em um sistema acusatório, que o juiz exerça a função anômala de fiscalizador do princípio da obrigatoriedade ou indisponibilidade. Conforme sustenta Roxin [14], a acumulação de poderes processuais pelo magistrado resvala em um processo penal autoritário.
Acrescenta-se ainda que os princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal pública não se sobrepõem aos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal.
Sabemos que o standard probatório exigido para a pronúncia é mais robusto do que aquele exigido para o oferecimento da denúncia (tema que enfrentamos em busca de maior racionalidade na pronúncia). Desta feita, perfeitamente compreensível que o Parquet conclua, findo o judicium accusationis, que os elementos informativos colhidos na fase investigatória não foram corroborados por provas de autoria e materialidade suficientes para o prosseguimento do feito.
Se o titular da ação penal, em sede de alegações finais, pugna pela absolvição sumária/impronúncia do acusado, forçoso concluir que não existe mais pedido condenatório e, para além do sistema acusatório, eventual pronúncia do acusado violaria também os princípios da inércia da jurisdição e da correlação, bem como a própria tentativa de racionalidade do procedimento do júri.
O princípio da inércia da jurisdição veda que o juiz decida algo que não foi pedido, e, por conseguinte, sob pena de termos uma sentença incongruente, também impede que o magistrado decida diversamente do que lhe foi pleiteado, até mesmo porque inconcebível que haja decisão em torno de questões que não foram objetos de debates entre as partes.
Importante também frisar que a defesa tem a prerrogativa de se manifestar por último no processo penal justamente para que possa, em nome do princípio da ampla defesa — elevado à defesa plena no procedimento do júri —, rebater todas as questões fático-jurídicas apresentadas pela acusação. A partir do momento em que o promotor de justiça pugna pela absolvição sumária/impronúncia, a defesa acredita não existir pretensão acusatória a ser resistida e, portanto, pode, pela impossibilidade de prever argumentos que o magistrado possa usar para fundamentar eventual pronúncia, deixar de confrontar pontos relevantes para assegurar o não prosseguimento da persecução e os enfrentamentos argumentativos na segunda fase do procedimento.
Como podemos considerar legítima, mormente em um Estado democrático de Direito, uma pronúncia assentada em argumentos que não passaram pelo crivo do contraditório?! Decerto, uma pronúncia nesses termos viola o tão almejado processo penal democrático e padece ainda do vício da nulidade. Com efeito, ao se referir ao procedimento comum, leciona Prado: “é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República)” [15].
Em outro giro, ponderamos ainda, com fulcro no princípio da razoabilidade, que se o juiz não pode o “menos” (exemplo: decretação de uma prisão preventiva sem prévio requerimento da acusação), por óbvio, também não pode o “mais” (pronunciar sem pedido expresso do Parquet). Outrossim, estaríamos diante de uma pronúncia “de ofício”, ou seja, uma pessoa seria submetida a julgamento popular mesmo na ausência de acusação do Parquet.
O poder punitivo estatal é condicionado à existência de um pleito acusatório de titularidade quase exclusiva, nas ações penais públicas, do Ministério Público, e o magistrado não é suplente do Parquet na função acusatória. Por oportuno, colacionamos lição de Colomer: “Há necessidade de uma acusação, formulada e mantida por pessoa distinta daquela que vai julgar, para que se possa abrir e celebrar o processo e, consequentemente, se possa condenar” [16].
A temática ganha proeminência no procedimento do júri, porquanto, se ao final do judicium accusationis, o juiz pronuncia o acusado sem pedido do Ministério Público, será justamente essa decisão judicial, e sua fundamentação, que fixará os termos acusatórios na fase do judicium causae. Finalizamos o presente texto como um sábio ditado popular: “Quem tiver um juiz por acusador, precisa de Deus como defensor”.
[6] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 916/917.
[9] STF, AP 976/PE, relator ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 18/2/2020, DJe de 13/4/2020.
[10] STJ, HC 623.598/PR, rel. min. Laurita Vaz, 6ª Turma, julgado em 05/10/2021, DJe 01/02/2022.; STJ, REsp 2.022.413/PA, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, rel. para acórdão ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 14/2/2023, DJe 7/3/2023.
Gina Ribeiro Gonçalves Muniz é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.
Denis Sampaio é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa (Portugal), membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.