Com o reconhecimento da situação de pandemia de Covid-19 pela OMS e a posterior notícia de que alguns laboratórios tinham obtido sucesso na rápida fabricação de vacinas para o combate ao coronavírus, muitos países iniciaram tratativas para a aquisição dos novos imunizantes. Um desses países foi o Brasil, e a esperança era que, em breve tempo, o país recebesse elevada quantidade de doses como forma de reduzir o número de mortes, que já atingia cifras alarmantes.
As negociações para a compra dos imunizantes, porém, esbarravam na resistência dos laboratórios em assumir os riscos decorrentes da aplicação das vacinas, em especial por serem, a rigor, riscos do desenvolvimento, isto é, riscos que só o desenvolvimento técnico e científico poderá, eventualmente, descobrir [1]. A solução encontrada por muitos países e, dentre estes, novamente o Brasil, foi a celebração de contratos com a assunção destes riscos por parte do poder público.
No caso brasileiro, essa assunção de riscos foi referendada pela publicação da Lei 14.125, de 10 de março de 2021. Esta lei dispunha sobre a “responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 e sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado”. Por força desse diploma, os entes federativos ficaram “autorizadas a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação“, desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tivesse concedido o respectivo registro ou a autorização temporária de uso emergencial (artigo 1º, caput; original não grifado). Além disso, também previa que estes mesmos entes federativos poderiam “constituir garantias ou contratar seguro privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura dos riscos de que trata o caput deste artigo” (artigo 1º, § 1º).
Essa assunção do risco, felizmente até hoje não confirmado, aproxima-se de uma situação de socialização dos danos, algo que se observa no Brasil, por exemplo, para os danos decorrentes do uso da Talidomida, exemplo clássico de riscos do desenvolvimento que, infelizmente, se converteram em danos [2]. Quanto ao tema, vale recordar que o Brasil, de fato, de forma distinta do ocorrido em outros países [3], promulgou a Lei 7.070/1982, a qual atribui ao Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) a obrigação de pagar uma pensão mensal a tais pessoas após a realização da competente perícia. Este exame pericial destina-se a estabelecer o “grau da dependência” da vítima, sendo avaliados e graduados quatro aspectos, o que determina que o valor da pensão varie entre um e quatro salários mínimos [4]. Esta mesma perícia servirá ainda de fundamento para o pagamento de uma nova parcela, a título de danos extrapatrimoniais, a qual variará entre R$ 50 mil e R$ 400 mil, conforme o grau da dependência da vítima [5]. Tal parcela, paga uma única vez pelo INSS, está prevista na Lei 12.190/2010, a qual também impõe que a vítima assine um “termo de opção” por meio do qual renuncia a qualquer ação judicial em face do fabricante do produto [6].
Com a entrada em vigor da Lei 14.125/2021, a situação, como dito, seria muito próxima a esta, razão pela qual a lei já autorizava o Poder Executivo federal a “instituir procedimento administrativo próprio para a avaliação de demandas relacionadas a eventos adversos pós vacinação” (artigo 3º). Contudo, como, felizmente, não se tem notícia de um elevado número de pessoas que tenham sofrido esses “efeitos adversos pós vacinação”, referido “procedimento administrativo” não chegou a ser instituído. Posteriormente, passado o período mais agudo da pandemia, o governo federal editou a Medida Provisória 1.126, de 15 de junho de 2022, a qual teve como única finalidade revogar a Lei 14.125/2021 [7].
A revogação da Lei 14.125/2021 permite, porém, uma oportuna reflexão acerca da responsabilidade civil decorrente de possíveis danos que ainda possam ser atribuídos às vacinas que foram utilizadas no curso da situação de pandemia [8]. Tais danos, como dito, deverão ser considerados como uma consumação dos “riscos do desenvolvimento”, pois serão verificados anos após a utilização do produto (vacinas) e confirmados pelas pesquisas posteriormente realizadas. Sendo assim, a eventual responsabilidade do poder público poderá ser afirmada com fundamento no artigo 37, § 6º, da Constituição da República [9], uma vez que tenha importado e aplicado as vacinas, mas sem prejuízo da responsabilidade civil do fabricante ou do importador privado, nos precisos termos do artigo 12 do CDC [10]. Isso porque, é sempre oportuno lembrar, o STJ, em recente precedente, considerou a hipótese de risco do desenvolvimento como um fortuito interno, não sendo admitida, portanto, a exclusão da responsabilidade civil objetiva do fornecedor [11].
Marcelo Junqueira Calixto é doutor e mestre em Direito Civil (Uerj), professor adjunto da PUC-Rio (mestrado e graduação) e advogado.