Patricia Noschang: Refúgio ambiental e migrações climáticas

Na semana em que se comemora o Dia Mundial do Refugiado (20 de junho) e o Dia do Imigrante (25 de junho), cabe refletir sobre as migrações contemporâneas e as razões que levam as pessoas a migrar forçadamente para além do que prevê a Convenção de Genebra de 1951.

  A migração por razões de desastres, catástrofes ambientais ou como causa das mudanças climáticas tem se tornado um fator importante nos deslocamentos desta época. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACcnur) estima a média anual de 21,5 milhões de pessoas deslocadas à força por eventos climáticos como inundações, tempestades, incêndios florestais e temperaturas extremas desde 2008[1].

De acordo com a Organização Internacional para Migrações (OIM) apenas em 2020, mais de 30 milhões de pessoas se deslocaram internamente devido a desastres, a grande maioria em países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o Bando Mundial estima que, até 2050, haverá mais de 216 milhões de migrantes climáticos internos em seis regiões, com quase 40% na África Subsaariana.[2]

A ausência de marco regulatório é o argumento que vem sendo utilizado para justificar o não acolhimento de migrantes climáticos e/ou refugiados ambientais. O argumento tem como base jurídica a definição de refugiado prevista na Convenção de Genebra de 1951 que considera refugiado aquelas pessoas que estão sofrendo um fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião politica, e, nesse sentido o meio ambiente ou as mudanças climáticas não poderiam ser considerados perseguidores. Contudo há quem advogue que, no caso dos refugiados ambientais, a perseguição teria cunho politico pois as alterações no clima que levaram ao deslocamento foram realizadas por ação humana.

Cabe ressaltar que a primeira definição em um documento oficial de refugiado ambiental foi trazido por El Erian em 1985 no relatório da United Nations Environment Program (Unep ou Pnuma no Brasil)  “aquelas pessoas que foram forçadas a deixar seu habitat natural, temporária ou permanentemente, devido a uma perturbação ambiental acentuada (natural e/ou desencadeada pela ação humana) que colocou em risco sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida” .[3] 

Ressalta-se que naquele momento, em matéria de meio ambiente, havia já a Declaração de Estocolmo, porém o marco da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática vem apenas em 1992.

Em 2007 o conceito veio proposto pela Organização Internacional das Migrações (OIM) de Migrante Ambiental “que por razoes imperiosas de mudanças repentinas ou progressivas no meio ambiente que afetam negativamente a vida ou as condições de vida se veem obrigadas a abandonar seus lugares habituais ou decidem fazer de forma temporária ou permanente e que se movem seja internamente ou em âmbito internacional.[4] Já em 2011 a Iniciativa Nansen apontou as diferenças dos termos a serem utilizados: desastres, deslocamento, mudanças climáticas e deslocamento transfronteiriço no contexto de desastres e dos efeitos de mudança climática[5].

Ainda em âmbito global, por duas vezes (2008 e 2010) o professor Michel Prieur da Universidade de Limoges propôs um texto — projeto de convenção (Draft Convention on the International Status of Environmentally-Displaced Persons) para regular os status pessoas deslocadas devido a degradação do meio ambiente. Infelizmente o texto ficou apenas na proposta sem aprovação dos Estados demonstrando a ausência de vontade politica dos Estados destes em firmar um compromisso internacional vinculante para receber novos solicitantes de refúgio ou permitir a entrada de outros migrantes em seus territórios.[6]

Se, atualmente, não ha norma de caráter vinculante convencionada pelos Estado qual seria a saída para garantir o ingresso e o reconhecimento das pessoas que passam a não ter mais opções de sobrevier em suas origens devido a desastres ambientais, catástrofes ou efeito das mudanças climática?

Em 2018, na Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o Pacto de Migração Segura e ordenada. O documento tem como objetivo reconhecer as dimensões da migração internacional de forma abrangente e propor soluções coordenadas e seguras diante aos desafios associados à migração. O documento prevê o dever de cooperação entre os Estados para identificar, desenvolver e fortalecer soluções em 3 objetivos (objetivos 2, 5[7] e 23) quando se tratar da migração em decorrência de desastres naturais de início lento, os de efeitos adversos às mudanças climáticas e degradação ambiental, como desertificação, degradação da terra, seca e aumento do nível do mar. Embora o documento seja considerado soft law, dos 193 estados-membros das Nações Unidas, 164 votaram afirmativamente e assinaram. Se realmente não fosse considerado um compromisso porque o governo Bolsonaro teria se retirado do Pacto logo no inicio do seu governo e o Presidente Lula retornado a ele no início do seu mandado?[8]

Em âmbito regional das Américas a Declaração de Cartagena de 1984[9] permitiu ampliar o conceito de refugiado considerando “[…] também as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”.

Assim, entende-se que no contexto da Declaração de Cartagena é possível conceder o refúgio as pessoas que sejam forçadas a deixar o seu país devido a outras circunstancias que tenham perturbado gravemente a ordem pública. Evidencia-se a possibilidade de promover o acolhimento às pessoas vítimas de catástrofes, desastres ambientais e ainda que tiveram a água potável salinidade devido ao aumento do nível do mar, ou áreas que chegaram a desertificação devido a ausência de chuvas — efeito decorrente das mudanças climáticas. Todos esses fatores causaram uma “greve perturbação a ordem pública” no local onde habitavam e forcaram as pessoas a migrar.

Somando a Cartagena que em 2024 fará 40 anos, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, também vai desenhando a possibilidade de proteção e dever de  acolhimento, de migrantes ambientais e/ou refugiados ambientais. Essa possibilidade já está prevista na Resolução 3/21 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre Emergência Climática e é um dos tópicos previsto no Pedido de Opinião Consultiva (Chile e Colômbia)[10] à Corte Interamericano de Direitos Humanos. Em ambos os documentos há menção da responsabilidade dos Estados pelos efeitos das mudanças climáticas referente à mobilidade humana — migração e deslocamento forçado de pessoa.[11]

Já em âmbito nacional o inciso III do artigo 1 da Lei 9.474/97 que recepcionou o conceito da Cartagena e ampliou a definição de refugiados, pelo qual foi possível receber e conceder refúgio aos venezuelanos devido a grave e generalizada violação de direitos humanos também pode ser utilizado para acolher migrantes que passam por insegurança alimentar ou escassez hídrica devido aos efeitos causados pelas mudanças climáticas, desastres ambientais e/ou catástrofes. Afinal a razão é a mesma.

Por fim basta lembrar que o Brasil criou o instituto de acolhida humanitária para recepcionar os haitianos do terremoto em 2010, quando ainda era vigente o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/80) e, em 2022 pela Portaria Interministerial 29[12], dispôs sobre a concessão de visto temporário e autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, para nacionais do Haiti e apátridas que foram afetados naquele ano por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental naquele país.

Logo não há que ser falar em ausência de proteção normativa. Por tudo que foi desenhado entende-se que nesses casos a soft law is enough para garantir o direito ao acolhimento, ao menos no Brasil, de migrantes e refugiados cuja a causa são desastres ambientais, mudanças climáticas e catástrofes.

 


[1]ACNUR. https://www.acnur.org/portugues/2020/12/10/a-mudanca-climatica-e-a-crise-de-nosso-tempo-e-impacta-tambem-os-refugiados/. Acesso em: 21 jul. 2023.

[2] OIM.BRAZIL. https://brazil.iom.int/pt-br/news/oim-lanca-estrategia-institucional-sobre-migracao-meio-ambiente-e-mudancas-climaticas-para-proxima-decada. Acesso em: 21 jul. 2023.

[5]ACNUR.  https://www.acnur.org/portugues/campanhas-e-advocacy/premio-nansen/fridtjof-nansen/. Acesso em: 21 jul. 2023.

[8] https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/retorno-do-brasil-ao-pacto-global-para-migracao-segura-ordenada-e-regular. Acesso em: 21 jul. 2023.

[9]https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 21 jul. 2023.

[10] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível emhttps://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/soc_1_2023_pt.pdf. Acesso em: 21 jul. 2023.

[11]CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/soc_1_2023_pt.pdf. Acesso em: 21 jul.2023

[12]BRASIL. Ministério da Justiça. PORTARIA INTERMINISTERIAL MJSP/MRE Nº 29, DE 25 DE ABRIL DE 2022 Dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti.

Patricia Grazziotin Noschang é doutora e mestre em Direito e Ralações Internacionais PPGD/UFSC, período na Universidade de Firenze e no Instituto da União Europeia em Florença. Professora na Universidade de Passo Fundo e coordenadora da Cátedra Sergio Vieira de Mello na UPF e do Projeto de Extensão — Balcão do Migrante e Refugiado. Professora na Universidade de Passo Fundo.

Consultor Júridico

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