Paulo Gama: RCL 43.007-DF e a volta do cipó da aroeira

Afinal, a anulação do acordo de leniência celebrado no âmbito da “lava jato”, declarada nos autos da RCL 43.007-DF (decisão do ministro Dias Toffoli do último dia 6 de setembro), redundará mesmo na completa ausência de responsabilização das empresas envolvidas em ilícitos da Petrobras?

Ao manter importantes questões desfocadas, parte da grande mídia nacional e alguns supostos “especialistas” voltam a desinformar a população sobre um tema lateral, embora de relevância jurídica, que surgiu a partir dessa decisão de Toffoli.

“Analistas” convocados sinalizam que a empreiteira, cujo acordo de leniência foi declarado nulo, não será (ja)mais responsabilizada. Partem eles de premissa falsa, parecendo crer que houve algum tipo de extinção de punibilidade ou de cessação de responsabilidade (desses, como dizem, “malfeitores confessos”).

No ar, um quê de luto por viuvez, uma lágrima carpideira.

O “argumento” manhoso é lépido e rasteiro: como pode o réu confesso de um “assalto” ficar com o produto do crime por conta de “razões processuais”? 

Uma lamúria que embute, sorrateira, a velha opressão tirânica: se o torturado “diz a real” está tudo bem, segue o jogo…  Como se a “confissão” absolvesse não só os pecados, mas também os abusos e nulidades processuais.

E o pior é que o argumento nasce de uma premissa falsa.  Na verdade em nenhum momento se disse que o “réu confesso” deverá ficar ou se locupletar com o produto do crime.

A decisão sob foco declarou a “imprestabilidade dos elementos de prova obtidos a partir do Acordo de Leniência 5020175-34.2017.4.04.7000, celebrado pela Odebrecht, e dos sistemas Drousys e My Web Day B”, o que – parece óbvio – não significa direito absoluto à empresa em reaver os valores e multas que despendeu em ressarcimento ao erário, notadamente em face de prova válida, inclusive eventual admissão residual à colaboração, acerca de conduta espúria e enriquecimento ilícito ou resultante de corrupção.

O Direito Penal, sabe-se bem, em qualquer ordenamento jurídico moderno, é considerado o último instrumento interventivo para reparação de ato ilícito e seu responsável (“ultima ratio”), o que significa dizer que as demais esferas (por exemplo, cível e administrativa), até porque independentes, se mantêm prioritariamente abertas.

Essa lição primordial da Ciência Jurídica parecia convenientemente esquecida, especialmente por agentes públicos cuja degeneração de objetivos levava a criminalizar (e dizimar) adversários político-ideológicos, havidos como “inimigos”.

Mesmo a decisão de Toffoli, na parte em que adverte sobre a possibilidade de contaminação das provas derivadas do referido acordo de leniência “em qualquer âmbito ou grau de jurisdição”, termina por atestar exatamente o paralelismo das diversas esferas de responsabilidade.   

Em suma: o Ministério Público e demais legitimados podem seguir atuando em todas as searas de responsabilização legítimas, embora – é claro – devam fazê-lo com base num plexo de provas válidas.

O pleno ressarcimento ao erário, quanto aos prejuízos porventura provocados por essa empreiteira e por outras pessoas jurídicas e físicas, na medida de suas respectivas responsabilidades, haverão de ser buscados pelas vias próprias, inclusive cíveis.

Porém, o mais relevante contido na decisão do ministro Toffoli tem sido tratado de modo tímido ou enviesado, como se os abusos e excessos processuais detectados já não fossem mais novidade e pudessem ser normalizados.

No lado oposto, a operação “lava jato”, acusada de metodologia e propósito clandestinos que assombram o Direito, mesmo agora em que vagueia morta-viva, ainda inspira as redações de parte da chamada mídia corporativa.

Dir-se-á que o bocejo que acompanhou o despertar toffoliano foi sonoro demais. Trepidante, incomodou alguns setores da imprensa, especialmente os de alma seletivamente punitivista. 

Essa mídia-viúva vem de ignorar solenemente que há menos de dois meses mais um escândalo havia sido apresentado pelo competente jornalismo investigativo brasileiro: a “lava jato” buscara, em tratativas sigilosas e criminosas em solo estadunidense, a divisão do dinheiro cobrado da Petrobras em processos ajuizados nos EUA.  Propiciava-se ali uma “re-tunga” na empresa brasileira, com reserva insuspeita de parcela polpuda da pilhagem… 

Blogueiros e colunistas que se refestelaram em simbiose parasitária no ápice do chamado “lavajatismo” recusam-se a ver a nudez do rei, o desemplumo do marreco e a moribundez do hospedeiro.  Seguem de olhos fechados, alimentando-se do sangue putrefato de uma pauta zumbi.

Já a sociedade brasileira parece que vem se dando conta do logro que a vitimou. “Infeliz a nação que precisa de heróis”, teria dito Bertolt Brecht.

A expressão “corrupção judicial” é o epíteto paradoxal que o cidadão comum deu à plêiade de abusos e excessos perpetrados em meio àquilo que se passou a chamar, pejorativamente, de “lavajatismo”.

O fato é que a expressão “corrupção da ‘lava jato'” atualmente supera o que seria um exagero retórico. Desde o referido episódio com os EUA, recai sobre alguns membros da operação a suspeita pela prática do mesmíssimo crime de corrupção que diziam combater.

E eis que retorna à berlinda o tal “fundo” arquitetado em meio à operação “lava jato” para receber aportes bilionários. 

Conforme sinalizado pelo ministro Gilmar Mendes, a suspeita é que esse fundo seria a galinha de ovos de ouro: alimentado primordialmente por aportes vultosos da nossa Petrobras, a fortuna seria gerida pelo entourage curitibano nos projetos que avalizassem. 

Mais ou menos assim: ao argumento de que partidos políticos sangravam a Petrobras para financiar seus projetos de poder, passar-se-ia a redirecionar essa mesmíssima sangria ao clube de heróis para… financiar seus projetos de poder!

Voltando à sangria internacional da Petrobras, o que os jornalistas Jamil Chade e Leandro Demori do UOL, em matéria assinada por em 20 de julho deste ano, denunciaram é que membros da própria “lava jato”, no frigir daqueles ovos dourados, propiciaram argumentos e elementos de prova utilizados para processar a Petrobras nos EUA, que teria redundado em acordos indenizatórios bilionários suportados pelos cofres da empresa (ou seja, pelo povo brasileiro).

O que se levanta, portanto, é a possibilidade concreta de que membros da operação possam ter se envolvido com corrupção passiva “na veia”, figura típico-penal, artigo 317 do Código Penal brasileiro: “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (pena de 2 a 12 anos).

Vale lembrar que para a configuração da corrupção passiva não é necessário o resultado visado (bem o sabem os “heróis”). O crime é considerado de “consumação antecipada”. Basta a preparação, a solicitação e pronto: o crime está consumado.

Se um funcionário público, agindo nessa condição, usa de meios irregulares e faz tratativas espúrias com a finalidade de obter um valor bilionário para si ou para outrem (por exemplo, um fundo), que configure uma vantagem direta ou indireta (por exemplo, via gestão de um fundo), ele pode ser alcançado por essa figura típica penal.

A decisão de Toffoli na RCL 43.007-DF determina que alguns “investigadores” lavajatistas sejam eles próprios investigados pelos supostos malfeitos ali delineados.

Para o desespero da parcela enlutada da mídia, a prevalecer essa decisão, a “corrupção da ‘lava jato'” não será apenas uma expressão em sentido figurado.

“A volta do cipó da aroeira no lombo de quem mandou dar”, seria o teor da ementa do ministro Vandré. Doa a quem doer.

Consultor Júridico

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