Paulo Kohl: Marco temporal de terras indígenas e o STF

Ainda pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal o Tema 1.031, repercussão geral no RE 1.017.365-SC. Sua retomada está prevista para junho de 2023, segundo a ministra Rosa Weber [1]. A questão, sem dúvida, é controversa. Será um encontro com o passado brasileiro, cujo Estado cometeu (ou permitiu que se cometesse) injustiças aos povos indígenas. Mas também promoveu, financiou, incentivou e coordenou a ocupação do território brasileiro por não-índios, garantindo a soberania nacional e transformando-nos em país continental.

Sob a perspectiva de definir o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional, o Tema 1.031 promete ser um divisor de águas em relação às demarcações de terras indígenas. Todavia, o Supremo Tribunal Federal não poderá distanciar da sua própria jurisprudência, sob pena de causar grave insegurança jurídica.

Vale destacar que a tese que se convencionou denominar “marco temporal” foi adotada pelo próprio STF quando do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388), cujo trânsito em julgado ocorreu em 6/9/2018. A partir desse julgamento, seriam consideradas terras de tradicional ocupação indígena aquelas que estivessem habitadas por índios, em caráter permanente, quando da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Assentou-se naquela ocasião:

“I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência de expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. (…)”

Esse julgamento não foi isolado, já que a própria Suprema Corte, em 2003, havia editado a Súmula 650, a partir do julgamento do RE 219.983-SP com a seguinte redação: “Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.

Colhe-se trecho do mencionado julgamento ainda em 1998, sob relatoria do ministro Marco Aurélio: Conclui-se, assim, que a regra definidora do domínio dos incisos I e XI do artigo 20 da Constituição de 1988, considerada a regência seqüencial da matéria sob o prisma constitucional, não alberga situação como a dos autos, em que, em tempos memoráveis, as terras foram ocupadas por indígenas. Conclusão diversa implicaria, por exemplo, asseverar que a totalidade do Rio de Janeiro consubstancia terras da União, o que seria verdadeiro despropósito.

Mas foi a partir do precedente Raposa Serra do Sol que se consolidou na Corte a aplicação da tese. Embora a Pet 3.388 não possua efeito vinculante no sentido legal do termo, possui força moral e argumentativa de precedente a ser aplicado em casos análogos. Ou seja: uma decisão pretérita do Pleno do STF sobre uma questão que gerou multiplicidade de julgamentos fundamentadas nas razões de decidir utilizadas no caso. O caso Raposa Serra do Sol se tornou um precedente.

Poder-se-ia citar inúmeros julgados de Tribunais Federais que se fundamentaram no Raposa Serra do Sol. Porém, limita-se ao STF:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA ‘LIMÃO VERDE’. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. 2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014. 3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. 4. Agravo regimental a que se dá provimento.” (ARE 803462 AgR, eelator(a): TEORI ZAVASCKI, 2ª Turma, julgado em 9/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015).

“DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios (RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet. 3.388, DJe 24.9.2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança.” (RMS 29087, relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, 2ª Turma, julgado em 16/9/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-200 DIVULG 13-10-2014 PUBLIC 14-10-2014 RTJ VOL-00234-01 PP-00097).

Para julgar contrariamente a esse entendimento, há que se identificar motivos para a superação do precedente ou sua distinção. Nos termos atuais do voto do ministro relator Edson Fachin, não se deveria aplicar o marco temporal. Para o ministro o reconhecimento da posse das terras que os indígenas ocupam remonta o Alvará Régio de 1680, passando pela Lei de Terras de 1850, Constituição de 1934 e 1946. E a Constituição de 1967 também incluiu como domínio da União as terras ocupadas por indígenas.

O relator propõe então a revisão da teoria do marco temporal, adotando-se outra denominada indigenato. Haveria um domínio primário das terras pelos indígenas, independentemente da data da Constituição Federal e de uma determinada declaração pelo Estado.

Sob essa prima, independentemente da data em que a comunidade indígena estivesse na terra, em havendo reivindicação, seriam considerados nulos eventuais títulos de propriedade, sem direito a indenização à terra nua, e a posse seria transferida aos indígenas e a propriedade à União. Como direito originário da comunidade indígena, eventual posse do imóvel por não-índios seria considerada ilegal, cabendo indenização somente das benfeitorias realizadas de boa-fé.

Ocorre que esse entendimento, além de contrário à ampla jurisprudência da Corte não está previsto no texto constitucional. A tese da posse imemorial foi vencida na Assembleia Constituinte em 1988.

Na obra editada pelo Senado A Gênese do Texto da Constituição de 1988 (OLIVEIRA LIMA, PASSOS e NICOLA, 2013) é possível identificar a proposta inicial do caput do artigo 231 e seu texto final, aprovado pela Assembleia. Na redação original previa-se o termo posse imemorial:

Substitutivo 1 (26/08/1987)

Comissão de Sistematização

Art. 302. São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados, sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições, competindo à União a proteção desses bens.

[…]

[art. 303] § 1º São terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados os índios aquelas destinadas à sua habitação efetiva, às suas atividades produtivas e as necessárias à sua preservação cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Por sua vez, já em 5/7/1988 o projeto sofreu alterações, ainda antes da votação em Plenário, cuja versão final promulgada contém a seguinte redação:

“Texto promulgado (5/10/1988)

Diário Oficial da União

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

[…]

[art. 231] § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Do texto infere-se um caráter de presente, uma situação de atualidade. A tanto se diz, que nos Atos das Disposições Transitórias (artigo 67) previu-se o prazo de cinco anos para que a União demarcasse referidas terras. Muitas não foram demarcadas a tempo. O decreto que regulamentou a demarcação das terras indígenas (Decreto 1.775) é de 1996 e cá estamos, passados 35 anos da Constituição, ainda com a questão a se resolver.

Todavia, custa-se acreditar que o legislador constituinte quisesse que todos aqueles que possuíssem terras tituladas pelo Estado — com posse mansa, pacífica, livre de turbações ou presença de indígenas naquele momento (1988) — fossem penalizados com a perda da propriedade e sem direito a indenização, porque, em algum momento do passado, existia algum aldeamento indígena. Fosse essa a interpretação, sim, qualquer local no Brasil poderia estar sujeito a reivindicação indígena, já que os indígenas foram os senhores originários das terras brasileiras antes mesmo da existência do Estado.

Mas não foi essa a intenção do Constituinte, e o Supremo Tribunal Federal já deixou claro sua posição em relação a isso. Não há decisão possível fora do marco temporal.

A proteção das terras indígenas é importante para inúmeros povos originários, sem a qual ficariam à mercê, sem local de moradia. Porém, cabe ao Estado atuar com coerência no processo de demarcação. Não se pode submeter pessoas inocentes, de boa-fé, às adversidades de um processo administrativo complexo com graves danos à paz social, a estabilidade das relações, à segurança jurídica, obrigando-os a desocupação de propriedades reconhecidas pelo Estado e pelo Direito há séculos.

Se com o advento da Constituição houve reconhecidamente a proteção dos direitos dos indígenas, a Lei Fundamental também protegeu o direito de propriedade, a segurança jurídica, a boa-fé, a confiança, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a livre-iniciativa e o trabalho, a razoabilidade e a proporcionalidade, fundadas no devido processo legal.

Não são poucos, mas muitos casos, em que a pretensão indígena esbarra em propriedades cujos títulos originários remontam ainda o Século XVIII e XIX. Tais títulos foram regularmente transmitidos a terceiros de boa-fé, que adquiriram e ocuparam diversas regiões do país, incentivados pelo próprio Estado. O poder público motivado pelo interesse nacional de ocupação territorial, preservação da soberania nacional nas fronteiras, desenvolvimento regional, social e econômico do país garantiu o espetacular avanço do povo brasileiro em direção ao interior.

Como admitir, por exemplo, que alguém ao adquirir suas terras antes mesmo da promulgação da Constituição, sem a presença física de indígenas, pode ter seu título administrativamente declarado nulo pelo próprio Ministério dos Povos Indígenas, sob o argumento de que se tratava de terra indígena de posse imemorial? Essa foi a vontade do legislador constituinte?

Por isso, fora da tese do marco temporal não há decisão plausível. A regra geral deverá ser o marco temporal, acompanhando-se a jurisprudência da corte. Poderá haver um grão de sal, prevendo algumas exceções.

Caberá ao STF a ponderação dos interesses envolvidos, de modo a buscar a solução mais justa, menos onerosa e mais sensata na análise do tema, haja vista que se está a praticar excepcional afronta a direitos fundamentais.

É preciso compatibilizar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ao caso concreto. E, formado o precedente qualificado, o qual orientará a administração pública no futuro, caberá muita sapiência dos administradores públicos para a formação da justeza ao caso concreto. Atualmente, de um total de 1.298 terras indígenas, 829 demarcações não estão finalizadas, ou sequer iniciadas.

Com efeito, em sociedades complexas, sói ocorrer a colisão entre os princípios. A ponderação dos interesses, visa, em última instância, dar efetividade ao objetivo maior do Direito que é obter a paz social. Valores como princípios são propensos a colidir. A colisão de princípios somente por ponderação pode ser resolvida (Robert Alexy).

O Direito visa assegurar a estabilidade social. E a Suprema Corte é a guardiã da Constituição, sua última intérprete. Na lição de Ruy Barbosa tem o direito de errar por último. Por sua vez, o Poder Judiciário tem o poder-dever de proteger a ordem jurídica, não podendo instaurar no país clima de total insegurança. Não de hoje, as cortes constitucionais no mundo ocidental têm desempenhado importante papel na interpretação do Direito e tomada de decisões, sobretudo no que diz respeito a Direitos Fundamentais.

Para tanto, desenvolveu-se inúmeras técnicas de julgamento, seja a designação de audiências públicas, admissão de amici curiae em determinados julgamentos, a modulação de efeitos, suspensão do julgamento, debates em plenário, inspeções judiciais, produção de provas, etc. Todos esses elementos, visam aprimorar o controle de constitucionalidade e admitir a participação de toda a sociedade civil e o poder público na interpretação constitucional.

A tese marco temporal merece ser mantida pela Suprema Corte. Até mesmo desde o trânsito em julgado do caso Raposa Serra do Sol (2018) para cá, não se identificou motivos para a superação do precedente já adotado.

Por sua vez, o Estado possui outros instrumentos para a regularização fundiária das comunidades indígenas, tais como a criação de reservas indígenas, colônias agrícolas e regularização da posse de terras que são de domínio indígena. Tudo isso previsto já está previsto no ordenamento jurídico desde 1973, no Estatuto do Índio.

O certo é que até o julgamento definitivo do Tema 1.031 pelo Supremo Tribunal Federal não há na República certeza jurídica quanto à adequada interpretação do artigo 231 da Constituição. Somente a partir dele é que se definirá o que se caracteriza “terras de tradicional ocupação indígena”, requisito essencial para identificação, demarcação e homologação pela Presidência da República das terras indígenas.

Porém, a despeito de conhecer essa realidade, a Funaie o governo federal pelo seu Ministério do Povos Indígenas prometem demarcar pelo menos 13 áreas, sob a inverídica justificativa de que “independem do julgamento do STF” [2]. Somadas, as áreas equivalem a 846.770 hectares. Cada hectare possui 10 mil m², o equivalente a aproximadamente um campo de futebol.

A se confirmar essa intenção antes da definição do Tema 1.031 gerará grave insegurança jurídica e mais conflitos sociais e fundiários no país. O governo federal estaria se esquivando de eventual efeito vinculante da decisão do STF? É legítimo, ético, legal e moral tal comportamento? Cumpre-se, por exemplo, os postulados da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, interesse público e eficiência? São questões a serem respondidas em breve.

Paulo Roberto Kohl é advogado, sócio-fundador de Kohl & Leinig Advogados Associados, graduado pela Unisinos, especialista em Direito Público e Direito Agrário e Ambiental aplicado ao agronegócio, membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau), coordenador da Escola Superior da Advocacia (ESA) — Subseção de Xanxerê (SC) e diretor da Escola de Agraristas.

Consultor Júridico

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