Paulo Miranda: Lei 8.429 e a obrigação de ressarcimento ao erário

A Lei nº 14.230/2021 teve como uma de suas finalidades compatibilizar a Lei nº 8.429/92 (LIA) com outras normais atuais, em especial com o Código de Processo Civil de 2015, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), alterada pela Lei nº 13.655/2018, e incorporar no texto legal os avanços trazidos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na interpretação da LIA [1].

Contudo, algumas alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 são objeto de inúmeras controvérsias na doutrina e na jurisprudência, o que inclusive ensejou o ajuizamento da ADI nº 7236, em andamento. Além da referida ação, o Supremo Tribunal Federal (STF) já concluiu o julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 1.199 e das ações diretas de inconstitucionalidade 7042 e 7043.

Nesse contexto, o §2º do artigo 17-C da Lei nº 8.429/92 merece uma adequada interpretação, sob pena de grave incoerência com as demais normas que compõem a estrutura do microssistema de proteção da probidade administrativa.

O referido dispositivo prevê que:

“§2º. Na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)”.

Em uma interpretação literal do dispositivo, com uma clara restrição à solidariedade, poder-se-ia argumentar que a lei proibiria tanto a imposição conjunta de condenações aos réus nas penalidades mencionadas no artigo 12, quanto na obrigação de reparar os danos causados aos cofres públicos.

Com efeito, Fernando da Fonseca Gajardoni [2] e Valter Shuenquener de Araujo [3] entendem que o §2º do artigo 17-C da Lei 8.429/92 consagra uma limitação à condenação, sendo que na sentença caberá ao magistrado fazer a individualização da responsabilidade pela reparação do dano, sob pena de violação do princípio da intranscendência da pena.

Todavia, com as devidas homenagens aos autores acima citados, essa interpretação literal do dispositivo revela-se inadequada à verdadeira pretensão do microssistema de repressão aos atos ímprobos.

Nesse sentido, Mateus Camilo Ribeiro da Silveira [4] afirma que:

“Não parece razoável conferir à redação adotada no artigo 17-C, §2º, da Lei 8.429/92, interpretação que resulte no impedimento, prévio e absoluto, à constituição de obrigação solidária de ressarcimento ao erário, ainda que preenchidos os pressupostos jurídicos no caso concreto, notadamente a circunstância de os réus terem causado a ofensa, de forma conjunta e com atuação ilícita determinante.

A prevalecer a leitura oposta, os responsáveis por ato de improbidade causador de prejuízo ao erário (artigo 10, da Lei nº 8.429/92) não estariam sujeitos à solidariedade passiva no tocante à obrigação de reparar o erário, ainda que presentes os requisitos para tanto. Por outro lado, autores de ilícitos civis, menos graves, que ensejem igualmente dano ao patrimônio público, poderiam ser condenados ao ressarcimento de forma solidária”.

De fato, uma das notáveis mudanças introduzidas pela Lei 14.230/2021 é conferir à improbidade administrativa um caráter sancionatório, estabelecendo assim a sua inserção como parte do conjunto de medidas do Direito Administrativo Sancionador.

Nesse sentido, a natureza sancionatória da ação de improbidade administrativa é extraída da leitura do artigo 17-D, ao consignar que a referida ação “é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal”. Esse raciocínio é reforçado pelo §4º do artigo 1º da Lei 8.429/92, ao dispor que “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.

Contudo, embora as recentes alterações na Lei 8.429/92 tenham tido como objetivo introduzir garantias processuais aos acusados, a natureza da ação de improbidade administrativa não está centrada exclusivamente em um aspecto sancionador, sendo permitido pedido de ressarcimento ao erário que tem natureza reparatória e está relacionada a responsabilização civil.

Nesse sentido, Fabiano Tesolin [5]:

“Ademais, além de estabelecer que a ação de improbidade administrativa é repressiva e de caráter sancionatório, a reforma determinou a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador no âmbito da Lei nº 8.429/1992, com o claro objetivo de introduzir importantes garantias processuais aos acusados previstas na Constituição Federal. Porém, tais premissas não afastam a possibilidade de o autor da ação de improbidade administrativa formular, além da imposição de sanções, pedidos de natureza reparatória, como o próprio ressarcimento ao patrimônio público em razão do dano causado pelo ato ímprobo”.

A individualização do ressarcimento do dano não pode ser confundida com a necessidade da individualização das condutas dos réus em uma ação de improbidade administrativa. Esse raciocínio decorre justamente porque o ressarcimento ao erário não possui natureza jurídica sancionatória, diversamente das demais medidas previstas no artigo 12 da LIA.

Nesse sentido, o ministro do STJ, Mauro Campbell Marques [6], enfatiza de forma peremptória que o “caput” do artigo 12 do projeto de lei que modificou a Lei de Improbidade Administrativa deixou evidente que “a restituição integral dos danos patrimoniais decorrentes de atos ímprobos não se configura propriamente como uma sanção, mas sim como uma consequência direta e essencial da reparação do ato ímprobo”.

Dessa forma, as sanções associadas à improbidade administrativa devem ser distinguidas do direito ao ressarcimento, uma vez que este último não constitui uma penalidade, mas sim uma medida destinada a restabelecer o estado anterior à prática do ato ilícito [7].

Nessa linha de raciocínio, a própria Lei 8.429/92 prevê que a inexistência de dano patrimonial não descaracteriza a materialização da improbidade administrativa (artigo 21, I), justamente em razão do ressarcimento ao erário não estar relacionado a reprimenda da prática do ato ímprobo. Conforme orientação firmada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [8] o ressarcimento ao erário não ostenta caráter punitivo, mas representa unicamente uma medida destinada à reparação dos danos causados aos cofres públicos, de restauração do “status quo”.

Esse raciocínio, decorre do fato que o ressarcimento ao erário tem nítida natureza civil e a LIA não trata diretamente de atos ilícitos civis que possam ser usados como requisito para condenações por perdas e danos [9].

Sob essa ótica, a responsabilização do agente público ou de terceiros que causem prejuízos ao erário é embasada no artigo 927 combinado com artigo 942, ambos do Código Civil. Esses dispositivos materializam tanto o princípio da imputação civil dos danos quanto o princípio da responsabilidade de todos aqueles que violam direito alheio.

Desse modo, deve-se observar que a responsabilidade civil não se limita aos casos em que há a configuração de improbidade administrativa. Na verdade, em face da independência das instâncias, a apuração da responsabilidade civil pode ocorrer tanto nas esferas de controle interno da própria administração pública lesada, seja através de mecanismos legais relacionados a processo administrativo disciplinar, a lei de licitações (Lei nº 14.133/2021, artigo 155) e a lei de anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), como também através de mecanismos externos, tal como no caso do controle exercido pelos Tribunais de Contas.

Da mesma forma, Leonardo Dumke Busatto, Giovani Curioletti [10] e Mateus Camilo Ribeiro da Silveira [11], entendem que interpretar que o ressarcimento ao erário não está sujeito à solidariedade, importa em manifesta violação ao princípio da isonomia e introduziria distinção jurídica não desejada pelo constituinte originário (artigo 37, §4º, da CF).

Conforme explica o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Benjamin Zymler [12], no julgamento das contas do gestor público pelos órgãos de controle externo há duas dimensões de responsabilidade, havendo a análise tanto da responsabilidade civil do agente como da responsabilidade administrativa. Da análise da responsabilidade civil resulta a obrigação de ressarcimento aos cofres públicos dos prejuízos causados.

Com efeito, Alexandre Noal dos Santos [13] aponta que no âmbito da jurisdição de contas, a solidariedade é amplamente aplicada, encontrando fundamento na própria Constituição Federal, diante da interpretação dos artigos 70, parágrafo único e 71, inciso II. Além disso, as alíneas “a” e “b” do §2º do artigo 16 da Lei nº 8.443/92, permitem que o TCU condene, de forma solidária, o gestor público e o “terceiro que, como contratante ou parte interessada na prática do mesmo ato, de qualquer modo haja concorrido para o cometimento do dano apurado”.

Ademais, em razão da ampla possibilidade de aferir a responsabilização civil dos gestores públicos e terceiros que causem dano ao erário, o Superior Tribunal de Justiça [14] entende que não configura bis in idem a coexistência de título executivo extrajudicial (acórdão do TCU ou TCE) e sentença condenatória em ação de improbidade administrativa que determinam o ressarcimento ao erário e se referem ao mesmo fato. Contudo, para que isso ocorra, o STJ exige que o valor da obrigação que for executada por primeiro, deverá ser deduzida do valor da segunda condenação. Tal raciocínio foi incorporado pelas alterações promovidas pela Lei 14.230/21 no artigo 12, §6º e no artigo 21, §5º.

Por fim, deve-se registrar que embora o ressarcimento ao erário possua natureza civil, nada impede que o Juízo da ação de improbidade delimite a quota de responsabilidade de cada agente, caso tal circunstância seja materialmente possível através das provas produzidas nos autos. Isso não significa que é vedado o regime solidário de recomposição do patrimônio público, caso contrário se admitiria uma atenuação ou mitigação do integral ressarcimento ao erário que é uma imposição extraída da própria LIA e da Constituição Federal (artigo 37, §4º).

Nessa linha de raciocínio, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [15] tem admitido que a responsabilidade é solidária até, ao menos, a instrução final do feito, momento em que se poderá delimitar a quota de responsabilidade de cada agente para o ressarcimento. Todavia, este mesmo Colendo Tribunal entende que a repartição da obrigação de ressarcir o erário só deve ocorrer quando for viável estabelecer uma correlação entre as condutas e as parcelas do prejuízo [16]. Portanto, se não for possível atribuir o nexo causal de cada ato das partes em relação ao prejuízo ao erário, a obrigação solidária deve ser mantida.

Dessa forma, é importante recordar que mesmo que o pedido de condenação em relação a prática de atos ímprobos esteja prescrito, de acordo com o STF [17] não existe impedimento para a continuação do processo em relação ao ressarcimento ao erário. Isso decorre justamente do fato que o ressarcimento ao erário representa uma consequência lógica do ato ímprobo e não uma sanção prevista na legislação.

Portanto, o ressarcimento ao erário não deve ser categorizado como uma sanção propriamente dita, mas sim como uma consequência obrigatória e imediata de um ato ímprobo, o que afastaria a aplicação do §2º do artigo 17-C ao ressarcimento ao erário.

 


[2] GAJARDONI, Fernando da Fonseca, et al. Comentários à nova Lei de Improbidade Administrativa, 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023 [livro eletrônico].

[10] BUSATTO, Leonardo Dumke; PEREIRA, Giovani Curioletti. O ressarcimento ao erário nas ações de improbidade administrativa: a permanência da solidariedade após o advento da Lei nº 14.230/2021. In: BONAVIDES, Samia Saad Gallotti (Org). MP, Justiça e Sociedade. Vol. 4. Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2022, pp. 233-255.

[14] STJ. 1ª Turma. REsp 1.413.674-SE, relator ministro Olindo Menezes (desembargador Convocado do TRF 1ª Região), relator para o acórdão ministro Benedito Gonçalves, julgado em 17/5/2016 (Info 584).

Paulo Rodrigo de Miranda é mestre em Direito pelo Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (PPGD/UFSM), especialista em Direito Público. Analista processual do Ministério Público Federal em Santa Maria/RS, integrante do projeto de pesquisa “A ressignificação do constitucionalismo: desafios para proteção dos direitos humanos/fundamentais” coordenado pela professora Valéria Ribas do Nascimento.

Consultor Júridico

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