Impende reconhecer: é mesmo controvertido o alcance da proibição de aplicabilidade da Lei nº 9.099/1995 em relação às infrações penais praticadas contra crianças e adolescentes. Isso em razão do novo artigo 226 do ECA, alterado pela Lei 14.344, de 24 de maio de 2022 (Lei Henry Borel), que agora dispõe:
“Art. 226. Aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal.
§ 1º. Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
§ 2º. Nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.”
Parece evidente que as contravenções penais praticadas contra crianças e adolescentes podem ser processadas no âmbito do Jecrim, pois o § 1º, acima transcrito, veda a aplicação da Lei nº 9.099/1995 aos crimes praticados contra aquelas pessoas. Essa constatação decorre da impossibilidade jurídica de se interpretar extensivamente, contra direitos e liberdades, normas de caráter penal (mesmo que híbridas) [3] bem como o de empregar analogia em desfavor do autor do fato.
A referida controvérsia, portanto, cinge-se sobre a aplicabilidade das disposições da Lei nº 9.099/1995 no que se refere a delitos praticados contra crianças e adolescentes não tipificados no ECA, conforme se dá com os maus-tratos.
Uma primeira corrente advoga a parcial impossibilidade de aplicação da Lei nº 9.099/1995 em relação aos crimes praticados contra crianças e adolescentes. Segundo esse respeitável entendimento, o § 1º complementa o caput do artigo 226 do ECA e a referida proibição apenas atingiria os crimes previstos “nesta lei”, qual seja o próprio ECA.
A corrente contraposta defende a completa impossibilidade da aplicação da Lei nº 9.099/1995 em relação aos citados crimes, independentemente de estarem ou não previstos no ECA. De acordo com ela, o § 1º do artigo 226 do ECA excepciona o caput desse mesmo dispositivo, proibindo, no âmbito do citado Estatuto, a incidência das disposições da Lei do JECrim, sem embargo de autorizar, como o faz no caput do mesmo artigo 226, a aplicação, no ECA, das normas havidas na Parte Geral do Código Penal e do Código de Processo Penal. Esta exegese sistemática confere coesão e coerência à totalidade do dispoigo 226.
Além disso, há um argumento de ordem constitucional, que parece ser decisivo. Se, de determinada perspectiva, poder-se-ia cogitar, por exemplo, de um suposto direito à transação penal em favor de autor de maus-tratos (ótica atrelada ao princípio da liberdade), por outro ponto de vista, crianças e adolescentes também têm o direito à segurança — vide artigo 5º, caput, da vigente Constituição da — bem como o direito de fazer valer a cláusula que lhes assegura proteção integral (vide artigos 1º e 3º do ECA), implícita desde o artigo 227, caput, da CR, que dita: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Existe, então, subjacente ao problema, um conflito de direitos fundamentais: o da “liberdade”, relacionado ao autor do fato, versus “todos aqueles demais direitos” assinalados no artigo 227 da CR, irrenunciavelmente alinhados em favor da vítima infanto-juvenil. O modo de resolver este choque de direitos fundamentais não pode ser outro senão pela realização de um juízo de ponderação.
Apenas pela quantidade de direitos previstos em favor das crianças e adolescentes, se comparado àquele pertinente ao autor do fato, já restaria axiomático que o resultado hermenêutico não socorre esse último. No entanto, há mais, agora por força do § 4º do já citado artgo 227, que impõe (sem grifos no original): “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
Ora, esse dispositivo é francamente incompatível com o espírito do JECrim e com a textualidade das disposições normativas da Lei nº 9.099/1995, pois nela prevalece tanto o escopo despenalizador quanto a intenção de afastamento de penas privativas de liberdade, mesmo contra autores de fatos penalmente relevantes perpetrados contra crianças e adolescentes.
Diante disso, pergunta-se: como dizer, sem açoitar a lógica, em “severidade” referida ao autor de maus-tratos infanto-juvenis que se vê agraciado com transação penal? Logo, da interpretação sistemática do ordenamento jurídico, percebe-se que parte da matriz constitucional e chega aos diplomas legais envolvidos no problema apresentado, não oferece, à luz da racionalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, estofo exegético suficiente à prevalência do entendimento que pretende apenas a parcial inaplicabilidade da Lei nº 9.099/1995 à coibição dos crimes praticados contra crianças e adolescentes.
A conclusão ora defendida é que nenhum delito praticado contra a criança ou contra o adolescente — previsto que seja no ECA, no CP ou em qualquer outra lei —, por força do novo artigo 226, § 1º, da Lei nº 8.069/1990 (introduzido no citado Estatuto pela Lei Henry Borel), jamais pode ser processado perante o JECrim, pois o novel dispositivo finalmente vivificou o artigo 227, § 4º, da CR, razão pela qual insistir com conciliações, composições de danos civis, pacificações sociais e transações penais em crimes perpetrados contra vítimas infanto-juvenis não só anula a máxima efetividade da CR como traduz afronta aos magnos princípios do juiz natural e do devido processo legal.
As razões de política criminal respeitantes à Lei Henry Borel são inconciliáveis com a hipertrofia da competência do JECrim, de molde a obstar esvaziamento das Varas criminais para conhecer desses mesmos crimes. Nesse sentido, cabe lembrar que no ordenamento jurídico não há antinomias; assim o artigo 23, parágrafo único, da Lei nº 13.431/2017 (cuja estrutura normativa é semelhante à Lei Maria da Penha), sem aludir à extensão da pena, dita que até a criação de Varas especializadas, delitos contra crianças e adolescentes serão processados nos juizados/varas especializadas em violência doméstica e temas afins [4]. Ora, se as causas com violência doméstica não tocam o Jecrim, as respeitantes ao público infanto-juvenil devem por aí seguir.
A Lei Henry Borel quis e quer proibir negociações geradoras de brandura penal para agressores de adolescentes e crianças (às vezes com apenas meses de idade…). De mais a mais, os crimes postos no ECA, processáveis no Jecrim, conforme a experiência e segundo nos parece, raramente ocorrem no plano das realidades.
Há, ainda, o argumento prático: quantas vezes os delinquentes contra crianças não transparecem anomalia psíquica? Quantas outras não se revela a necessidade da complementação de laudos de lesões corporais das vítimas, seguidos de sucessivas impugnações? Fosse pouco, em muitas ocasiões são imprescindíveis estudos sociais e/ou complexos acompanhamentos de ordem psicossocial em certos casos. Todas essas hipóteses traduzem diligências incompatíveis com a celeridade e a simplicidade exigidas pelos artigos 62 e 77, § 2º, ambos da Lei 9.099/1995 [5].
Quando a redação da lei abre espaços à sua aplicação incorreta, cabe a eliminação, por parte dos legisladores, da perplexidade em disputa. Só assim podem fazer valer o anseio social que ensejou a nova norma. Se tal fragmento da ordem jurídica está se revelando problemático, porquanto interpretado de forma errônea por um ou outro grupo de exegetas, em especial aqueles que militam no foro, compete aos criadores da norma ambígua publicarem-na novamente, com outra redação mais apurada, eficaz à corrigenda do ponto nebuloso. Eis o libelo que consubstancia este artigo.
[1] Nos incs. LIII e LIV do art. 5º, da CR, estão esculpidos, respectivamente, os princípios do Juiz Natural e do devido processo legal, assim redigidos: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” e “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Paulo Roberto Santos Romero é promotor de Justiça titular do Jecrim de Belo Horizonte (MG), mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais, ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.