Pedro Kenicke: A recusa do juiz mais antigo

O procedimento da recusa de promoção do juiz mais antigo é raro de ocorrer e, talvez, por isso mesmo, são também raros os escritos e a jurisprudência sobre a matéria. Este artigo serve para discutir um pouco sobre o assunto.

Somente com a Constituição de 1934 é que foi instituído o procedimento para vetar o juiz mais antigo na promoção por antiguidade. A história inscrita nos Anais da Constituinte de 1933, analisada nos arquivos digitais do site da Câmara dos Deputados [1], revela que, no período revolucionário daquela década, os legisladores constituintes desejavam evitar que os juízes indicados por governadores da Primeira República chegassem ao ápice da carreira da magistratura. Se a tal revolução quebrou com o sistema viciado da “República Velha”, era preciso evitar, também, que os magistrados nomeados por critérios “errôneos”, via preferências pessoais dos governadores, não pudessem chegar a ser desembargadores nos Tribunais de Justiça.

O instituto da recusa da promoção do magistrado persistiu. À exceção da Constituição de 1937, o veto permaneceu em todas as demais Constituições posteriores até chegar à atual de 1988, alterando-se apenas o quórum de votação para a recusa: desde três quartos na Constituição de 1946, até maioria absoluta e maioria simples nas Constituições de 1967 e 1969, respectivamente. Na sua redação original, o artigo 93, II, alínea “d” da Constituição previu dois terços para o quórum de votação e a necessidade de um “procedimento próprio” para que se fizesse a recusa. Veja-se: “d) na apuração da antigüidade, o tribunal somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto de dois terços de seus membros, conforme procedimento próprio, repetindo-se a votação até fixar-se a indicação”.

O “procedimento próprio” imposto pelo texto constitucional remete às regras estabelecidas pelo Tribunal que analisará a promoção. Está previsto em regimento interno e, a princípio, é analisado pelo Tribunal Pleno, mas, também, pode ser delegado para o Órgão Especial.

Com a emenda constitucional nº 45/2004, o artigo 93, II, alínea “d”, foi alterado para frisar a necessidade da garantia fundamental da ampla defesa no procedimento próprio de recusa do magistrado: “d) na apuração de antigüidade, o tribunal somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto fundamentado de dois terços de seus membros, conforme procedimento próprio, e assegurada ampla defesa, repetindo-se a votação até fixar-se a indicação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”. A ampla defesa garante, inclusive, a necessidade de sustentação oral do advogado constituído pelo magistrado que está com proposta de impedimento.

A relatora da proposta de emenda à Constituição que resultou na Emenda nº 45, a Deputada Federal Zulaiê Cobra, justificou que a alteração buscou reduzir as eventuais arbitrariedades cometidas pelo Tribunal ou, simplesmente, a mera preterição de candidatos. Afinal, se o procedimento de recusa ocorre quando Tribunal considera que o magistrado, embora cumpra todos os requisitos para ser promovido a desembargador ou removido para a substituição em segundo grau, não o deve assumir, o magistrado precisa ter conhecimento do motivo pelo qual não será promovido e precisa manifestar-se em sua defesa.

Nesse caminho, a recusa não pode ser utilizada como instrumento de perseguição ou discriminação, devendo estar baseada em critérios objetivos. Assim entende Alexandre Henry Alves, para quem “é preciso demonstrar que o juiz atrasa o julgamento de processos sem justificativa, que tem uma produtividade irrisória, que retém os autos em seu poder além do prazo legal etc. Essa fundamentação deve ser formalizada por escrito e ser acompanhada dos respectivos documentos, relatórios e outras provas que a embasam” [2].

Há evidente necessidade de efetiva motivação com “voto fundamentado”, segundo a previsão constitucional. O magistrado que consegue atingir o requisito para ser promovido por antiguidade somente pode ser recusado por motivos claros, transparentes e imprescindíveis. Daí porque não se trata de qualquer motivo.

Nesse sentido, até mesmo o juiz mais antigo que foi condenado em processo disciplinar não poderia ser impedido de ser removido por antiguidade, uma vez que inexistem vedações legais ou constitucionais para tanto, segundo a jurisprudência do Conselho Nacional de Justiça [3].

É importante fazer um paralelo com as hipóteses de promoção por merecimento. Mesmo no caso do juiz punido por pena igual ou superior à de censura, ele mesmo pode ser promovido por merecimento após passados 12 meses da sanção, conforme disposto na (artigo 3º, IV, da resolução nº 106/2010-CNJ  que trata dos critérios objetivos para aferição do merecimento); e, ainda, o juiz não vitaliciado pode ser promovido ou removido passado o prazo de um ano da data da punição de censura ou de remoção compulsória, nos termos da (artigo 23, §2º, da resolução nº 135/2011-CNJ  que dispõe sobre os processos disciplinares). Se existe abertura para a promoção por merecimento, a antiguidade deve ter igual tratamento.

Outro ponto que merece bastante atenção no procedimento próprio de recusa é o quórum de votação. A Constituição menciona a votação por dois terços dos votos dos membros do Tribunal. Isto é, a considerar todo o caminho e as garantias para se evitar que seja recusado o magistrado que pode ser promovido, a interpretação acertada é a de que os votos são retirados da plenitude dos membros da Corte. Se o procedimento descrito no regimento interno delega poderes para o Órgão Especial, é possível interpretar que o quórum abarca a plenitude desse órgão, e não apenas o quórum dos presentes na sessão ou a desconsiderar aqueles que estão eventualmente afastados, impedidos ou suspeitos de participar do julgamento.

Apesar disso, os julgados da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança nºs 31.357/DF e 31361/DF, de relatoria do ministro Marco Aurélio, publicados em 08/10/2014 e 16/10/2014, respectivamente, têm sido usados por Tribunais para afastar a interpretação em garantia do juiz mais antigo. A ementa é idêntica para ambos, tendo em vista terem sido julgados no mesmo dia:

“CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA  ATUAÇÃO. O Conselho Nacional de Justiça atua no campo administrativo, devendo ter presente a independência versada no artigo 935 do Código Civil. PROMOÇÃO  MAGISTRADO  ANTIGUIDADE  QUÓRUM  APURAÇÃO. O quórum de dois terços de membros efetivos do Tribunal ou de seu órgão especial, para o fim de rejeição de juiz relativamente à promoção por antiguidade, há de ser computado consideradas as cadeiras preenchidas e aqueles em condições legais de votar, observadas ausências eventuais”. (MS 31357, relator ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 05/08/2014, dje 08-10-2014).

Note-se que os julgamentos foram por maioria, votando com o relator os ministros Luiz Fux e Roberto Barroso, e vencidos os ministros Rosa Weber e Dias Toffoli. A centralidade da divergência se deu justamente por conta do quórum de votação. Para o relator, não haveria dúvidas de que o constituinte previu o quórum qualificado somente se contados votos favoráveis com base no “número de cargos de desembargador na estrutura do órgão de segunda instância”. Mas situação distinta é quando inexiste a “integralidade dos membros quando da realização das sessões nas quais discutida a progressão funcional de magistrado”.

São hipóteses em que há cargos de desembargador vagos ou que tenham “os ocupantes afastados cautelarmente do exercício da função jurisdicional”. São casos de desembargadores que “não mais pertencem ao tribunal ou não mais possuem as prerrogativas necessárias para exercer regularmente as funções inerentes ao cargo preenchido”. Dessa forma, aqueles que não estão em “condições legais de votar” são os cargos vagos e os afastamentos não eventuais.

Toda a argumentação do relator se baseou em precedente do Supremo Tribunal que julgou inconstitucional o parágrafo único do artigo 45 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional via Recurso Extraordinário nº 103.700, de relatoria do ministro Sydney Sanches. O dispositivo legal previa que o quórum seria “apurado em relação ao número de Desembargadores em condições legais de votar, como tal se considerando os não atingidos por impedimento ou suspeição e os não licenciados por motivo de saúde”.

Em reforço a essas razões, o ministro Marco Aurélio deixou claro que a relativização do quórum não comporta as hipóteses de magistrados que “por alguma circunstância de caráter efêmero, não podem desempenhá-las em determinada oportunidade. Neste caso, os agentes devem ser considerados como componentes do colegiado e a respectiva vontade computada para fins da verificação do pronunciamento do órgão”. Isto é, nessa hipótese é possível abarcar os exemplos de desembargadores que tenham impedimento ou suspeição no julgamento: eles devem ser contabilizados no quórum, embora não possam votar.

Em contrapartida ao entendimento do relator, a divergência da ministra Rosa Weber, acompanhada pelo ministro Dias Toffoli, interpretou que não há exceções para o quórum, levando em conta exatamente o número total de cadeiras do Tribunal. Compreende-se, por conseguinte, que o Supremo Tribunal Federal ainda não estabeleceu entendimento pacífico sobre a matéria, muito por conta, repise-se, da raridade dos procedimentos de recusa.

Em suma, ao contrário do que se pode interpretar como “condições legais de votar”, os julgados da 1ª Turma do Supremo Tribunal afastam a tese de que os desembargadores que estão com afastamentos eventuais, como impedimento, suspeição, licença saúde, férias, etc., não compõem o quórum de votação e, por isso mesmo, são desconsiderados do cálculo para se obter a maioria qualificada de dois terços.

Diante disso, se há preenchimento constitucional de todas as cadeiras, há condições legais para o trâmite do procedimento próprio de recusa. Num Órgão Especial de 25 desembargadores, por exemplo, ainda que haja quatro impedidos ou suspeitos participando do quórum de instalação da sessão, o quórum de votação exigido para se recusar o juiz mais antigo continua a ser dois terços de 25, isto é, 17 desembargadores. Se não forem atingidos os dois terços, o magistrado é promovido por antiguidade.

Portanto, embora o instituto esteja presente entre nós desde 1934, a matéria da recusa do juiz mais antigo ainda levanta questionamentos muito pertinentes. De modo que, a fim de se reafirmar a efetividade do procedimento próprio, com garantia de ampla defesa para o magistrado, como está expresso na regra constitucional desde 2004, é preciso levar em conta a totalidade do quórum de votação dos membros do Tribunal.

Pedro Gallotti Kenicke é mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), relator da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR, associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e sócio do escritório Dotti Advogados.

Consultor Júridico

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