Pedro Moreira: Afinal, a quem tem servido o Direito Ambiental?

Este não é um artigo sobre Direito.

Feito tal esclarecimento, me parece válido recorrer aos ensinamentos de uma medicina fundamentada no olhar holístico, pelo qual não se pode fragmentar o indivíduo na busca de soluções pontuais para desarranjos fisiológicos que perturbam o paciente. Isso porque se a doença é tratada apenas em si mesma, outras doenças se apossarão da vítima que, não tendo as causas multifatoriais cuidadas, será acometida pela persistência da fuga da vitalidade.

Sendo assim, a melhor medicina diz a mim e a você que o ser humano é um ser sistêmico, sendo indelicado e indesejado qualquer setorização da vida, do corpo, da mente e do espírito. Desconsiderar o todo é permitir que o problema se aposse do sistema e leve a um fim não desejado.

Aqui, juristas e não juristas precisam reconhecer: existe mais complexidade e verdade na medicina holística que nas profundas teses e filosofias do Direito. Diz-se, portanto, da necessidade de um Direito holístico? Talvez sim, sem a pretensão de se acreditar que as muitas pompas da hermenêutica jurídica — que acomete a muitos, não a todos — permitiriam um Direito para além das paredes dos escritórios e gabinetes.

Dito isso, vamos ao problema: o Direito Ambiental.

Consagrado como ramo autônomo das ciências jurídicas, as discussões jurídico-ambientais se tornam mais profundas, presentes e necessárias na medida em que avançam as mudanças climáticas, a degradação ambiental e modelos predatórios de uso dos bens ambientais. Trata-se de importante instrumento para balizar os interesses econômicos, sociais e ecológicos. E aí reside uma inflexão.

Desde que as noções de desenvolvimento sustentável foram cunhadas — para o horror dos ambientalistas mais fervorosos e alívio dos desenvolvimentistas mais dedicados — a ponderação do Direito Ambiental deveria se centrar no equilíbrio do chamado tripé da sustentabilidade (em que pese não caber a este artigo, importante registrar ser uma noção um tanto ultrapassada, na medida em que já se consideram as dimensões ética e jurídico-política do conceito, no mínimo, para um tripé de múltiplos apoios). 

Todavia, a velocidade com que se aprofundam as mazelas ecológicas e a anunciada tragédia para a humanidade tem justificado um endurecimento do Direito Ambiental que, outrora, demandava flexibilidade. O que se vê é a escalada legislativa por normas mais restritivas, interpretações mais ácidas da lei pelo Judiciário e, para o horror da perspectiva holística, uma administração pública menos interessada em ajustar as demandas socioeconômicas às necessidades ambientais — centrada no rigor dos textos.

Eis que, tendo feito tal constatação, ocorre na mente a cena de dezenas de trabalhadores de uma fazenda perdendo seus empregos pelo indeferimento de um licenciamento ambiental. Também passa na memória um pequeno produtor rural que aperta suas finanças para arcar com a multa e obrigações de acordo em razão da penalização por intervenção ambiental irregular. E o que dizer dos comerciantes de uma pequena cidade cujo círculo de consumo dependia de empreendimento embargado? Ou, ainda, de uma comunidade indígena impedida de suas atividades socioeconômicas em razão do status jurídico que sobrepõe o território?

Longe de pretender defender a dispensabilidade do Direito Ambiental e de seu rigor — ao contrário — os casos acima ilustram bem as consequências do ambientalismo autoritário e pouco preocupado com as dimensões sociais e econômicas. Essa aplicação tem o inevitável fim que é a (re) vitimização de indivíduos que, por normas e decisões pouco holísticas, são levados ao afastamento da integração socioambiental.

Significa dizer que, quando o Direito Ambiental é elaborado e aplicado com viés puramente ecológico, são prejudicadas as relações estabelecidas no meio, o que esvazia a proposta da sustentabilidade e a própria noção de meio ambiente integral. Nessa realidade, o Direito Ambiental deixa de atender aos interesses e necessidades da presente e futuras gerações para satisfazer tão somente uma ideia: a de que deve permanecer intocada a natureza, objeto de contemplação.

Parece faltar um olhar holístico que considere a multiplicidade de contextos e a inviabilidade de aplicação de um Direito Ambiental padrão para realidades continentais — problema que decorre, com segurança, das equivocadas perspectivas construídas a partir dos Estados Nacionais. Perpetuar aplicações enrijecidas de normas em favor exclusivo do ecológico gera a manutenção do Direito Ambiental como instrumento hegemônico nas perspectivas socioeconômicas.

Com isso, saem perdendo todos. Mas perdem mais os que historicamente vêm tendo sua integridade solapada. Isso alimenta o ciclo de aprofundamentos de problemas sociais e econômicos, cujas consequências ecológicas são visíveis. Ou seja, em longo prazo, os efeitos de um Direito Ambiental não integral e integrado são inversos ao que se pretende.

Um ramo do Direito que sirva tão somente às ideias e sonhos de uma “sociedade verde” condena diversos à pobreza, às dificuldades sociais e à precarização da dignidade. Daí o que se propõe neste encerramento: um Direito Ambiental que sirva às pessoas de carne e osso.

Não se pode conceber normas e aceitar ações que deixem de considerar os impactos sociais e econômicos de uma decisão apoiada puramente em argumentos ecológicos. Não cabem noções maniqueístas da sociedade para penalizar a todos, sem considerar as subjetividades das realidades. Na mesma medida, não se pode negligenciar a importância da preservação ambiental, o que torna toda a dinâmica jurídico-ambiental complexa demais para ser desenvolvida dentro de salas.

Aqui fica claro: este texto não é sobre direito. Trata-se, antes de tudo, de uma reflexão a respeito das consequências da equivocada gênese do projeto de sociedade que se consolidou. Pensar, criar e aplicar um Direito Ambiental mais compromissado demanda compromisso com a  crítica das sociedades e, mais ainda, sensibilidade de campo e de vida.

Como anunciado no início das palavras, carece a todos nós uma perspectiva holística que alcance as ciências humanas e sociais aplicadas que, talvez, em algum momento da história, tenham perdido boa dose da crítica que as fundamentou — o que se atribui às dinâmicas de apropriação que são próprias da bio-necropolítica a que se referiram Foucault e Mbembe, seja pelos olhares no centro do mundo, ou às periferias do capitalismo. Tal qual avança a medicina holística, necessário o início de um Direito Ambiental holístico (ou sua ressurreição), sob pena de servir tão somente para a penalização e aprofundamento do ciclo de injustiças socioeconômicas.

Eis o caminho da área, que é o árduo trabalho pela Justiça ambiental, social e econômica, enquanto também construímos e esperançamos um Direito integral.

Pedro Henrique Moreira é advogado de Direito Ambiental, professor de Direito Ambiental e Indigenista, doutorando em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC) e pós-graduado em Direito Constitucional.

Consultor Júridico

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