Pimentel e Arichielo: Juiz não pode se comportar como acusador

Um juiz não pode dar o pontapé inicial em um processo criminal. Todos sabem que a tarefa de oferecer a denúncia cabe ao Ministério Público. Ferindo essa lógica, o Superior Tribunal de Justiça acaba de decidir que o juiz criminal pode condenar o réu ainda que o Ministério Público peça a absolvição. Persistindo na metáfora futebolística, seria o mesmo que permitir ao árbitro bater o pênalti na hipótese de o atacante se recusar a chutar a bola.

Na decisão (REsp 2.022.413.), a 6ª Turma entendeu que o artigo 385 do Código de Processo Penal, que dispõe que “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição”, está em consonância com o sistema acusatório adotado no Brasil. Para os ministros, esse artigo não foi derrogado pela inclusão do artigo 3º-A no mesmo Código, segundo o qual “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Fato é que, ainda que se entenda dessa forma, não se pode esquecer que, quando o CPP foi promulgado, em 1941, vigia o sistema inquisitório do processo penal, com a visão de que ao juiz, representante do Estado, cabia posição de protagonismo.

A Constituição de 1988, contudo, instituiu o sistema acusatório, com a separação das funções de cada ator do processo penal. O juiz deixou de ser o detentor da verdade, não mais fazendo sentido o texto do artigo 385  que foi revogado tacitamente.

Ora, ainda que seja ele o destinatário das provas, se o Ministério Público, na condição de titular da ação penal pública, pede a absolvição, é contraditório que o juiz decida de forma contrária. Se o próprio acusador entende não haver motivos para uma condenação, o juiz, no sistema processual vigente, não pode contrariá-lo. É um contrassenso.

Não ignoramos as diferenças com outros sistemas pelo mundo, como o adversarial, adotado nos países de common law  por exemplo, Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. Nesses países, ao contrário do que ocorre no Brasil, o órgão acusatório pode desistir da persecução criminal a qualquer tempo sem qualquer tipo de validação pelo juiz. Não se pode esquecer, porém, da existência de um processo penal cada vez mais negocial, que se assemelha, em alguns aspectos, a esse sistema adversarial: no caso de Acordos de Não-Persecução Penal (ANPP), por exemplo, cabe ao juiz apenas analisar o cumprimento dos requisitos objetivos, e não o mérito da infração penal.

O juiz não pode, portanto, condenar quando o MP pede a absolvição, seja em razão de vedação expressa do artigo 3º-A do CPP, seja porque o artigo 385 perdeu sentido com um sistema acusatório, seja porque o titular da ação penal é o Ministério Público, que é quem, nesse contexto, deve avaliar as provas.

A “lava jato” nos ensinou, dentre várias outras lições, que um juiz não deve se comportar como um acusador. Preservar a imparcialidade do magistrado é fundamental para um processo penal saudável, eficiente e confiável.

Débora Pimentel é especialista em Direito Penal Empresarial e Compliance e sócia do escritório Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados.

Consultor Júridico

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